sábado, 30 de junho de 2012

O apartheid e suas articulações com o sistema capitalista


       Há dezoito anos, em abril de 1994, Nelson Mandela tornou-se o primeiro presidente negro da África do Sul.  Entretanto, quando se fala naquele país, muitos, talvez a maioria, ainda se recordam imediatamente do regime segregacionista denominado apartheid.  Também habitualmente, o racismo dos sucessivos governos da minoria branca é relacionado à herança colonial holandesa e inglesa, partindo-se do princípio de que os povos do norte da Europa, em regra protestantes de raízes germânicas, seriam menos tolerantes do que os latinos no trato com as "populações de cor". 
    Constituiria um equívoco, sem dúvida, subestimar o peso, no que se refere à formação do apartheid, da doutrinação racista imposta às comunidades de origem europeia desde os primórdios da colonização.  Ensinados na infância a crer no mito camítico, segundo o qual os negros descendem de Cam, filho amaldiçoado de Noé, os afrikaners, majoritários entre os brancos sul-africanos, consideravam justo o estabelecimento de um domínio político absoluto sobre seus antecessores na região do Cabo da Boa Esperança, fossem eles bantos ou hotentotes, bem como os sistemas de trabalho compulsório.  O próprio Daniel François Malan (1874-1959), governante que instituiu oficialmente o apartheid em 1948, foi pastor da Igreja Reformada Holandesa, difusora da ideia da inferioridade dos negros.   
       Todavia, quando se faz a justa e necessária condenação da segregação racial, frequentemente é deixado de lado o fato de que, sob a ideologia do apartheid, funcionava uma economia capitalista tida como moderna sob diversos aspectos.  Mais esquecidas ainda são as evidências de que tanto as primeiras leis segregacionistas, datadas do início do século XX, quanto as vastas expropriações territoriais impostas aos negros no século XIX, decorreram das conveniências do capitalismo que se consolidava na África do Sul.
            Elikia M'Bokolo esclarece que a expulsão dos negros das áreas que tradicionalmente ocupavam, promovida pelos afrikaners, descendentes de holandeses, atendia às necessidades do capitalismo agrário implantado pelos últimos.  Os negros desprovidos de terras, por sua vez, não raro se viam obrigados, para sobreviver, a trabalhar nas minas e nas indústrias controladas pelos britânicos.  Sua presença nas fábricas  servia como fator de controle ideológico sobre os operários brancos.      
                 

M'Bokolo 543/544

               A atuação de Cecil Rhodes (1853-1902), uma das figuras mais emblemáticas do imperialismo europeu do século XIX, demonstra que a expansão capitalista poderia conviver, sem problemas, com práticas típicas do escravismo, como os castigos físicos aplicados contra os trabalhadores.  Marc Ferro esclarece que Rhodes, ao se apoderar pela força de grandes extensões de terra, se preocupava em construir mecanismos destinados a assegurar o fornecimento de mão de obra barata para as minas sob domínio inglês.   


Ferro 107/108

             Meio século mais tarde, a sólida burguesia sul-africana continuava a dispor, sem conflitos ideológicos, de operários constrangidos a aceitar salários mais baixos segundo uma classificação de matriz étnica. 

Lopes 50/51

             Além da conivência dos capitalistas locais, o apartheid se beneficiou igualmente do apoio logístico de empresas multinacionais e, sobretudo, da tolerância dos países da OTAN, interessados na manutenção de um forte poder anticomunista na África Austral.


Arzalier 285/286

         É importante notar que somente após a instauração, na União Soviética, das diretrizes da glasnost, que reduziram as tensões decorrentes da Guerra Fria, as multinacionais instaladas na África do Sul  começaram a protestar contra as normas do regime que prejudicavam os seus negócios. 


Lopes 53/54
           
         Também vale nos lembrarmos de que a derrota das armas sul-africanas diante das tropas cubanas sediadas em Angola foi um fator de alta relevância na erosão do apartheid.  A África do Sul deixava de ser o bastião invencível do capitalismo regional, capaz de intimidar facilmente os governos marxistas estabelecidos em sua periferia.            
      

Gott 313

              Como os demais derivados do nazifascismo, para além das questões "raciais" o apartheid sustentou interesses de classe.  Burgueses, essencialmente. 

Referências:

ARZALIER, Francis.  A África das independências e o "comunismo".  In: O livro negro do capitalismo/org. Gilles Perrault.  Rio de Janeiro: Record, 2000.
FERRO, Marc.  História das colonizações: das conquistas às independências, séculos XIII a XX.  São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
GOTT, Richard.  Cuba: uma nova história.  Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
LOPES, Marta Maria.  Apartheid: a ideologia do apartheid, as lideranças negras, as perspectivas da África do Sul.  São Paulo: Atual, 1990.  
M'BOKOLO, Elikia.  As práticas do apartheid.  In: O livro negro do colonialismo/org. Marc Ferro.  Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Fascistas por eles mesmos

Francisco Franco e Benito Mussolini 

        Os laços entre os partidos e regimes fascistas e a direita "convencional", liberal ou conservadora, são amplamente conhecidos.  Tratei do assunto em algumas matérias do blog, que dizem respeito à ascensão ao poder de Mussolini e Hitler.  Também é notório o empenho da grande maioria dos direitistas contemporâneos em negar ou minimizar a importância destas alianças, ainda que, com razoável frequência, sejam traídos pela mídia burguesa com notícias de que governantes neoliberais europeus compuseram maiorias parlamentares coligando-se com neofascistas e neonazistas.  Hoje não farei uso dos manuais de autoria dos especialistas em fascismo para realçar a verdade inconveniente, nem aos discursos de liberais que aderiram àquele movimento, a exemplo do filósofo Giovanni Gentile (1875-1944), ministro da Instrução Pública de Mussolini.  Cedo a palavra aos fascistas brasileiros contemporâneos, não tão raros quanto se pode imaginar, e organizados nas redes sociais. 
        Logo na descrição da comunidade orkutiana Fascismo, assumidamente apologética, temos o esclarecimento de que sua perspectiva doutrinária é de extrema direita:
                           


       Questionados em tópico sobre posicionamento ideológico, os participantes se declaram, em peso, direitistas, sendo que alguns acrescentam a este rótulo uma profissão de fé conservadora:   




          Localizamos com facilidade, entre esta militância, declarações de ódio à esquerda e aos valores e organizações categorizados como esquerdistas: 



            O desbocado Sergio Martorelli, da comunidade Benito Mussolini, é transparente em sua negação do princípio da igualdade.  Tal como um liberal do início da primeira metade do século XIX, contesta o sufrágio universal; numa versão grosseira da "religião de Von Mises", prega que trabalhadores braçais e pessoas sem instrução sejam abandonados à própria sorte.    


           Araújo, da Fascismo e Liberdade, relaciona seu extremismo de direita à intolerância diante dos menos "evoluídos":



         Já Pedro Henrique, da mesma comunidade, demonstra simpatia pela associação entre fascismo e conservadorismo religioso:


      
       Bem, isto é o que eles falam.  Como mero observador, digo que negar aos fascistas o seu óbvio e desejado pertencimento à direita é ... fascismo!   








quarta-feira, 27 de junho de 2012

Mitologia liberal: Mauá, o herói capitalista


             
                Desde que criei este blog, venho com uma certa frequência investindo na apresentação de fontes para desmentir discursos falaciosos.  Desta vez, farei praticamente o contrário: as fontes servirão para ratificar a desconstrução de uma mitologia antiga e ainda bastante viva.   A figura de Irineu Evangelista de Sousa, barão e visconde de Mauá (1813-1889), é uma das mais caras à intelectualidade liberal brasileira, pelas supostas qualidades de abolicionista e de empreendedor dinâmico e desatrelado do patrocínio de um Estado arcaico.
           Porém, em uma breve entrevista concedida no final de 2005, o historiador Carlos Gabriel Guimarães, professor da UFF, revelou muito sobre o verdadeiro Mauá, cujos laços com o escravismo, a partir do início de sua vida profissional, não podem ser desconsiderados.     

http://www.revistatemalivre.com/gabriel11.html

Falando no Irineu Evangelista de Souza, o futuro Barão e, depois, Visconde de Mauá, ele era caixeiro do João Rodrigues Pereira de Almeida, que o recrutou ainda muito garoto, em virtude do seu tio, que era o capitão de navio daquele negociante. O Irineu foi levado pelo seu tio porque perdeu o pai, e quando o Pereira de Almeida faliu, ele vai para a firma do Richard Carruthers.            


            Sendo caixeiro de João Rodrigues Pereira de Almeida, feito barão de Ubá em 1828, o jovem Irineu atuou na logística de uma firma dedicada ao tráfico negreiro, como se observa na listagem dos traficantes instalados na praça comercial do Rio de Janeiro, elaborada por Manolo Florentino¹:   


              Consultando a mesma obra, vemos que a família Pereira de Almeida se destacava naquela atividade: ao contabilizar os dados das expedições realizadas entre 1811 e 1830, Florentino atribuiu ao grupo a aquisição de 8.875 africanos escravizados².   
                    


             
             A mudança de patrão, para Irineu, não representou um rompimento dos vínculos com o tráfico.  Muito pelo contrário, como demonstra Carlos Gabriel:                       

O Mauá, como já chamei a atenção, com o retorno do Richard Carruhthers para a Inglaterra em 1837, ele vai ser o diretor da firma inglesa Carruthers & Company, e na década de 1840, a firma inglesa vai estar ligada ao tráfico negreiro, como destacam o Robert Conrad e o Luis Henrique Tavares, este último no livro “O comércio proibido de escravos”, quando estes trabalharam com a documentação inglesa do Public Record Office. Eles utilizam, principalmente, as correspondências consulares dos cônsules ingleses no Brasil. Lá estão os cônsules dizendo que várias firmas inglesas estão ligadas ao tráfico, jogando seus produtos para financiar o tráfico negreiro. A Carruthers & Company estava ligada ao grande negreiro Manuel Pinto da Fonseca. Eu achei o Manuel Pinto da Fonseca como sócio da Sociedade Bancária Mauá, MacGregor, e olha que ele foi expulso do Brasil em 1852 por causa do contrabando e, tinha como um dos testamenteiros um sócio e amigo pessoal do Mauá, o José Antonio de Figueiredo Júnior, pai do futuro Visconde de Figueiredo, que no final do Império, foi o organizador do Banco Nacional. O pai do Visconde de Figueiredo e o futuro Barão de Mauá estavam vinculados a um dos negócios mais lucrativos, que era o comércio de carne humana, como diziam os negreiros. E não só o Mauá estava ligado ao tráfico negreiro, mas várias firmas inglesas também, até mesmo os agentes dos Rothschilds no Brasil.

               Bem mais tarde, já como proprietário da fundição da Ponta da Areia, em Niterói, Mauá se comprometeria, de acordo com o depoimento de Luiz Pedreira do Couto Ferraz, presidente da província do Rio de Janeiro em 1849, a substituir gradativamente a mão de obra cativa existente naquele estabelecimento.  Este fato talvez tenha contribuído para alimentar uma imagem de crítico da escravidão³. 

                                                http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/779/000046.html



             Contudo, podemos atestar que a promessa não ultrapassou o campo da retórica.  Seis anos depois, o presidente Luiz Antônio Barbosa prestava alguns esclarecimentos sobre os trabalhadores da Ponta da Areia, dos quais 130 ainda eram escravos4:  

                                             http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u831/000050.html



         Vale a pena, igualmente, assinalar que Mauá foi proprietário de engenho de açúcar no município fluminense de Itaguaí, sendo difícil de crer que dispensasse, neste ramo, a força de trabalho de outros cativos5:

                                      http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/almanak/al1866/00000909.html



          A lenda do empresário que modificou a economia de um país contra a vontade de seus dirigentes retrógrados também não se sustenta.  Ministro do Império em 1850, o visconde de Monte Alegre apontou a fundição da Ponta da Areia como uma das "fábricas protegidas", "diretamente auxiliadas pelos cofres públicos"6.  


                                           http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1722/000020.html


       O próprio Mauá, em sua autobiografia, confirma estes dados, relatando ter recebido com  a concordância do Parlamento um empréstimo de trezentos contos de réis para viabilizar o funcionamento da fundição7, o que estava totalmente fora do alcance dos que não contassem com excelentes relações políticas com o governo.  Lembremos que o orçamento anual da Família Imperial era de oitocentos contos.    




Liquidando a mitologia, Carlos Gabriel traça um perfil realista de Mauá:


Outro grande problema do mito do Mauá é aquela associação dele como industrial, pois isto na verdade não aconteceu. O Mauá organizou algumas empresas, mas tiveram curta duração. O Estaleiro Mauá, por exemplo, que seria uma referência de estaleiro moderno, tem que ter cuidado. Era um conjunto de oficinas, tinha muitos escravos. Ora, cadê o maior abolicionista que os biógrafos e que o filme fala? Não tem nada de abolicionista! O Mauá industrial? Que indústrias ele teve? O Estaleiro Mauá, curta duração. A Luz Esteárica, curta duração. E mais, com muita subvenção do governo imperial. Mas o Mauá sempre foi, como esta lá no registro de matriculas do Tribunal do Comércio do Código Comercial, negociante de grosso, e depois, quando ele organizou os bancos, banqueiro. É o negócio dele, o negócio dele foi o comércio. Com o fim do tráfico negreiro, aqueles capitais de origem negreira vão ser direcionados para a atividade comercial do Rio de Janeiro.

              
            O capitalismo não tem heróis; se os tivesse, no mínimo deveriam ser plenamente capitalistas!            


Referências:

1- Manolo Florentino.  Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX).  São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 254. 
2- Idem, p. 242.
3- Relatório do presidente da província do Rio de Janeiro, 1849, p. 48.
4- Relatório do presidente da província do Rio de Janeiro, 1855, p. 48.
5- Almanak Laemmert, 1866, província, p. 233.
6- Relatório do Ministério do Império, 1850, p. 20.
7- Visconde de Mauá.  Autobiografia: Exposição aos credores e ao público seguida de O meio circulante no Brasil.  Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, p. 102. 




segunda-feira, 25 de junho de 2012

A direita e a conquista: a colonização nos Andes


       Retorno ao tema da colonização espanhola, em parte motivado por uma matéria promocional, publicada na revista Veja, sobre um dos livros de Leandro Narloch.  Apresento abaixo um trecho diminuto, mas suficiente para entendermos os propósitos do autor e da agência extra-oficial de notícias do tucanato. 


              Salvo grave distorção cometida pelo redator da resenha, Narloch e seu parceiro Duda Teixeira sugerem que a conquista do Império Inca pelos espanhóis funcionou para muitos dos súditos daquele Estado como uma verdadeira libertação, pois teriam ficado isentos da prestação compulsória de serviços.  Qualquer bom aluno de sétimo ano do Ensino Fundamental se lembraria de que os índios andinos, sob a administração colonial, estiveram submetidos a dois sistemas de trabalho de tipo servil, a mita e a encomienda.  Entretanto, me irrita saber que milhares de incautos, na verdade desejosos de exibir algum embasamento para seus reacionarismos, repetirão citações deste gênero como se fossem leis da Física amplamente comprovadas em laboratório.  Forneço, então, um pouco de munição para quem se dispuser à divertida tarefa de refutá-los.   
               Longe de abolir os serviços compulsórios preexistentes, os espanhóis reorganizaram-nos segundo seus interesses.  Pela leitura de Julio Cotler, notamos que ao longo do período colonial o caráter exploratório da mita se intensificou.  O regime era mortal para a maioria dos administrados: a combinação entre marchas prolongadas e trabalho exaustivo tornava os índios ainda mais vulneráveis às doenças vindas do Velho Mundo.                           


Cotler 24/25

                  O depoimento do frei Loayza, testemunha ocular da mita, não deixa dúvidas sobre o fato de que naquela região, tomando de empréstimo uma expressão de Darcy Ribeiro, girava com rapidez um "moinho de gastar gente".  

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             Além de pagarem salários miseráveis aos mitayos, os colonizadores contaram com um auxílio inusitado em seu propósito de diminuir os gastos com a mão de obra.  Incentivando a produção e controlando a comercialização da coca, puderam reduzir a quantidade dos alimentos consumidos pelos índios.  
                     

Wachtel 219/220

              A imposição pelos espanhóis de tributos pagos em mercadoria era um estímulo a mais às rebeliões. 

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                 Sob tal nível de opressão, a resistência militar no Peru se estendeu até a década de 1570.  Não faz sentido a crença de alguns na imediata e completa submissão dos incas, impotentes diante dos canhões, cavalos e armaduras dos invasores, aos poucos soldados de Pizarro.   

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                  Ao contrário do que gostariam os conservadores, a implantação do catolicismo hispânico  nos Andes também dependeu de uma significativa dose de truculência.  Métodos inquisitoriais, entre os quais o incentivo à delação, foram empregados para reprimir os que se mantinham ligados às antigas crenças.  Os "heréticos" ficavam sujeitos a humilhações públicas e castigos físicos, como o açoite.    


Bernand 179/180


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             Tal como ocorrera nas Antilhas, a colonização da região andina pela Espanha resultou na formação de uma sociedade com relações fortemente racializadas, em prejuízo de todos os grupos tidos como não-brancos.  Os indivíduos considerados índios puros, aos quais se impunham muitas proibições, sofriam uma autêntica segregação.     

Cotler34

            Seus descendentes mestiços, ainda que escapassem dos tributos diretamente derivados da conquista, se alojavam, com poucas exceções, nos degraus inferiores da hierarquia racial do Império Espanhol.           

Cotler35


Poloni-Simard 217

            A despeito do tosco revisionismo que se tenta difundir, seja ele conservador ou neoliberal, não há como suavizar os crimes da colonização.

Referências:

BERNAND, Carmen.  Imperialismos ibéricos.  In: O livro negro do colonialismo/org. Marc Ferro.  Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
COTLER, Julio.  Peru: classes, Estado e nação.  Brasília: FUNAG, 2006. 
POLONI-SIMARD, Jacques.  A América espanhola: uma colonização de Antigo Regime.  In: O livro negro do colonialismo.
WACHTEL, Nathan.  Os índios e a conquista espanhola.  In: História da América Latina: A América Latina colonial, volume 1.  São Paulo: Edusp; Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 1998.

sábado, 23 de junho de 2012

A direita e a conquista: mistificação ao extremo

Monumento a Hatuey, em Cuba

         Uma das bandeiras da direita contemporânea, sobretudo das correntes que dão mais ênfase ao fator religioso do que à política formal, mas não exclusivamente destas, é a reabilitação das colonizações.  Podemos localizar na Internet, com muita facilidade, trabalhos cujos autores minimizam a destruição imposta, entre os séculos XV e XX, às sociedades americanas, africanas, asiáticas e australianas pelas respectivas metrópoles europeias.  Nesta produção, sobressaem os textos e vídeos que enaltecem a conquista espanhola na América, não raro apresentada enquanto libertação de povos indígenas oprimidos por governantes e sacerdotes sanguinários.  Mesmo que tenham perdido o autogoverno e sofrido com os excessos de alguns indivíduos cruéis, os índios poderiam considerar o estabelecimento da administração colonial como um processo benéfico, visto que passaram a dispor de leis mais justas e do ingresso na "verdadeira fé".
          Dentro dos limites aceitáveis para uma postagem de blog, copio três parágrafos sobre a tomada do México pelos espanhóis, breve trecho que representa com perfeição a tendência acima descrita. A autora, Márcia Helena Alvim, dá a entender que, com exceção dos astecas batidos na guerra, os índios mesoamericanos desejaram a dominação espanhola, facilitando sua difusão por toda a área mexicana.  Desta aliança, teria surgido uma "sociedade mestiça", cuja hierarquia étnica, convenientemente, não é mencionada.              

                    
           Para expor o caráter falacioso deste tipo de discurso, não recorro, por ora, ao exemplo do México, mas sim à crônica da região em que se verificaram os primeiros contatos entre europeus e índios. As Antilhas, no final do século XV, não eram tão densamente ocupadas quanto o planalto mexicano.  Mesmo assim, abrigavam uma população considerável, da qual os taínos constituíam o grupo mais numeroso.  Este panorama mudou bruscamente em poucas décadas.  Apesar da imagem de humanista à frente de seu tempo que de hábito é associada à figura de Cristóvão Colombo, suas viagens às ilhas foram um prenúncio do caráter predatório da colonização que se iniciava.  Percebendo a inviabilidade do projeto de construir uma economia centrada na mineração, Colombo não apenas enviou índios como escravos para a Espanha, como inaugurou, no âmbito local, um sistema de trabalhos forçados.


Elliott 149


Elliott 151

          Sucedendo o genovês no comando das forças espanholas, o frei Nicolás de Ovando consolidou o domínio colonial sobre a Hispaniola, ilha atualmente compartilhada por haitianos e dominicanos.  Praticamente indefesos ante doenças infecciosas banais entre os europeus, os taínos sofreram um intenso morticínio.  Os que não eram massacrados diretamente na repressão às inevitáveis revoltas contra a servidão pereciam sob condições desumanas de trabalho ou em epidemias.

                                                 
                                                                   Elliott 153

                    Desapareceram enquanto etnia em pouco mais de um século de colonização.

Grondin 24
Grondin 26

            Uma parte dos taínos da Hispaniola se refugiou em Cuba, habitada por gente da mesma origem.  Entretanto, a experiência acumuladas nos combates anteriores foi insuficiente para deter os invasores.  O cacique Hatuey, que tomara para si o comando da resistência, sofreu o suplício reservado aos hereges.

Gott 28
Gott 29

        Contra a determinação dos índios cubanos de não se submeterem, os espanhóis empregavam seus cavalos e suas armas superiores.  Com muito sangue, a ilha inteira era conquistada.  

Gott 29
Gott 30

      Em pouco mais de vinte anos, os índios que tinham sobrevivido à guerra e às caçadas humanas promovidas pelos espanhóis estavam submetidos ao trabalho servil ou refugiados nas partes menos acessíveis do território.  Seu número, a exemplo do ocorrido na Hispaniola, declinou vertiginosamente.


Gott 30

             Pressionados pela escassez de mão de obra, os colonizadores traziam prisioneiros de outras partes da América, que também morriam pelas mesmas causas.

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Gott32
Gott33

             As estatísticas disponíveis sobre os indígenas de Cuba comprovam a sua quase extinção ao longo do século XVI.  A população autóctone da década de 1540, já muito reduzida em consequências dos processos mencionados, em duas gerações perdeu quatro quintos do seu quantitativo.

Gott 35
 Fraginals 67

        A mestiçagem entre europeus e índias não foi estranha à colonização espanhola das Antilhas.  Todavia, com exceção de poucos indivíduos privilegiados que lograram ser reconhecidos como brancos, os mestiços se viram relegados aos espaços mais subalternos da sociedade colonial.       

Fraginals65
Fraginals 66

               Prosseguiremos, em muitas outras oportunidades, na constatação de que nenhuma dominação é boa para os dominados.  Fato que todos os entusiastas do colonialismo, do neocolonialismo e do imperialismo se esforçam em encobrir. 


Referências:

ELLIOTT, J. H.  A conquista espanhola e a colonização da América.  In: História da América Latina: A América Latina Colonial, volume 1.  São Paulo: Edusp; Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 1998.
FRAGINALS, Manuel Moreno.  Cuba/Espanha, Espanha/Cuba: uma história comum.  Bauru: Edusc, 2005.  
GOTT, Richard.  Cuba: uma nova história.  Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
GRONDIN, Marcelo.  Haiti: cultura, poder, desenvolvimento.  São Paulo: Brasiliense, 1985.