quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Era uma vez a princesa que nunca teve escravos...


          
        A construção sistemática da imagem de uma Princesa Isabel heroína, em contraposição ao Zumbi dos Palmares cruel, não é exatamente uma estratégia nova dos ideólogos da direita brasileira.  Este discurso serve como poucos à manutenção da premissa de que as conquistas sociais resultam, ou devem resultar, de concessões vindas "do alto" e não das lutas do povo, tido como violento, vingativo e ignorante até dos próprios interesses.  O enaltecimento da Santa Isabel da Lei Áurea, portanto, convém não apenas às seitas cujos membros anseiam pelo improvável dia em que beijarão a mão de um chefe de Estado hereditário e vitalício, como também a alguns liberais sofisticados que muito se divertiriam, na intimidade, com os aspectos caricatos de um Terceiro Reinado.  O processo mencionado assumiu proporções inusitadas nos últimos anos, a partir da difusão da bibliografia dita "politicamente incorreta", que se caracteriza, entre outros defeitos, por uma singular ojeriza aos métodos científicos.  Já vulgares desde a origem, certas teses se desdobram na Internet em vulgarizações ainda piores.   
        As "narlocadas" e "kameladas" dos livros degeneram, por exemplo, em montagens como esta:     




         As mensagens breves e diretas, com forte apelo à emoção e nenhum à razão, deixam claro que se trata de uma ordinária peça de propaganda, de formação de opinião no sentido do conservadorismo.  Apesar de sua puerilidade, talvez em parte por causa dela, o quadro se alastrou com rapidez pela blogosfera e pelas redes sociais, como notamos nos links abaixo, entre grande número de possibilidades:   

http://homemculto.com/tag/princesa-isabel/
http://ferramula3.blogspot.com.br/2013/11/consciencia-lucida.html
http://www.bazingaonline.net/2013/11/uma-verdade-sobre-o-dia-da-consciencia.html
http://cinenegocioseimoveis.blogspot.com.br/2013/11/zumbi-e-o-dia-da-consciencia-negra.html

               
        Neste artigo, me limitarei à afirmativa inicial, a que mais contradiz dados factuais elementares:

[A Princesa Isabel] Nunca possuiu escravos.

      Não há como sustentar uma mistificação tão grosseira, pois qualquer pessoa bem informada sobre o Império do Brasil, ainda que "leiga", sabe que a Casa de Bragança dispôs da força de trabalho de muitos cativos, denominados "escravos da Nação". Assinalo, em antiga obra de um autor confessadamente monarquista e ferrenho entusiasta da figura de D. Pedro II, a seguinte passagem:

Mas a festa maior, esta só aconteceria no dia 10 de outubro, na Fazenda Nacional de Santa Cruz, lugar de concentração do maior dos contingentes de escravos da Nação espalhados pelo Brasil inteiro, ao aparecerem nela a Princesa Isabel e o Conde d'Eu e Rio Branco e todos os seus ministros, a fim de que presentes estivessem no instante em que o seu diretor, o Dr. José Saldanha, dissesse a todos eles:
-Escravos, agora, para vós, esta palavra não mais existe! Livres estão agora todos os escravos da Nação!¹

       Brasil Gérson se referia aos acontecimentos que se seguiram à promulgação da Lei do Ventre Livre, em 28 de setembro de 1871.  Basta ser alfabetizado, então, para compreender que a família imperial ainda era dona de escravos trinta e um anos após a ascensão de Pedro II ao trono, ocorrida em 1840. Desta maneira, tinha o imperador, nascido em fins de 1825, 46 anos incompletos quando abriu mão da propriedade sobre homens.  Uma eventual alegação de que os escravos da Nação serviam ao Estado e não ao monarca desmorona se lembrarmos que a Fazenda de Santa Cruz, situada em freguesia rural, a várias léguas da Corte, constituía uma das residências prediletas da Casa de Bragança. 
     Logo, nem o mais ingênuo dos leitores continuará a crer que Pedro II, Isabel e demais integrantes da dinastia não lidaram com cativos na posição de senhores, em relação sociojurídica idêntica, ou quase, à do plantador escravista mais iletrado e truculento com seus cativos do eito.  A insistência na atitude de compartilhar imagens como a que copiamos será, sem dúvida, uma mentira intencional. Só resta aos cultuadores da Santa Isabel, enfim, insistir na sentença de que a princesa era boazinha e caridosa com os subalternos, hipótese que, se admitida, em nada modificaria o que aponto nesta matéria.  
        Isabel possuiu, sem dúvida, muitos escravos, a não ser que se faça uso de sofismas cretinos baseados no fato de que aquelas pessoas não estavam, provavelmente, "no nome dela".  Compartilhem sem moderação.         
           

        

Nota:
1-Brasil Gérson.  A escravidão no Império.  Rio de Janeiro: Pallas, 1975, p. 234.  

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Mandela, Fidel e seus detratores mentecaptos


 
         Empenhado numa aproximação com o Ocidente, em 1987, o governo Gorbachev se afastava de antigos aliados dos soviéticos, como o MPLA, de Angola.  Aproveitando-se da conjuntura, os Estados Unidos de Ronald Reagan e a África do Sul (sob o apartheid) intensificavam seu apoio aos guerrilheiros direitistas da Unita, chefiados por Jonas Savimbi, que assim ampliaram seu controle sobre vastas áreas ao sul do território angolano.  Reunindo tropas no norte da Namíbia, os sul-africanos realizaram uma pesada ofensiva contra o MPLA em novembro do mesmo ano.  As forças governistas de Angola recuaram para a cidade de Cuito Cuanavale, situada em área de florestas.  A eventual queda daquela localidade deixaria todo o sul do país debaixo da ocupação sul-africana.  
           Sem contar com o auxílio soviético, o presidente angolano José Eduardo dos Santos pediu ajuda a Fidel Castro.  O dirigente cubano atendeu-o prontamente, enviando para Angola um general de sua confiança, Leopoldo Cintra Frías, que recebeu o comando na região meridional, e nove mil soldados, que desembarcaram no início de 1988.  O contingente cubano na África atingiu, então, a cifra de 50 mil homens.  Uma parte avançou para o norte, até as fronteiras com o Congo e Zâmbia, e outra tomou o rumo de Cuito Cuanavale.  


                                  Vemos Cuito Cuanavale na província de Cuando Cubango. 
          
            O ataque sul-africano àquele posto avançado, reforçado pela ação da Unita, ocorreu a partir de 14 de fevereiro de 1988.  Entretanto, após várias semanas de combates, as até então invictas forças armadas do apartheid foram batidas e retrocederam, abandonando Angola.  O enfraquecimento dos agressores teve desdobramento nas negociações que resultaram na independência da Namíbia, onde ascendeu ao poder a Organização do Povo do Sudoeste Africano (SWAPO), grupo guerrilheiro que antes fustigava a dominação racista¹.  Assumindo a presidência da África do Sul em setembro de 1989, Frederik de Klerk se viu obrigado a admitir a desmoralização interna e externa do regime e a afrouxar seus fundamentos, até promover, em 1994, o pleito que terminou com a eleição de Nelson Mandela. 


                                                        Soldados cubanos em Cuito Cuanavale 

                 

             Falecido Mandela, nos deparamos com uma intensa campanha de depreciação da sua imagem, efetuada por organizações muito bem articuladas, a julgar pela rapidez com que difundem "informação".  Mandela  é demonizado por não ter combatido com flores uma das ditaduras mais truculentas e irracionais que já existiram, e virtualmente por qualquer outra coisa, inclusive os atuais índices de contaminação por HIV da população sul-africana!  Esta orquestração desprezível dispõe do entusiasmo gratuito não só dos arautos de sempre, como também, no que diz respeito ao Brasil, de milhares de "pessoas comuns"; na maioria dos casos,  reacionários ressentidos que, lidando cada vez pior com as frequentes rejeições ao conservadorismo nas urnas, adotam uma postura de enaltecimento de tudo que vem da direita.  Inclusive o apartheid. 
            Um dos elementos centrais do "Dossiê Mandela" é a "denúncia" da amizade do ex-presidente da África do Sul com Fidel Castro.  Recuperando o contexto dos episódios que abrem esta postagem, tenho um gosto especial em transcrever as palavras que Mandela dirigiu a Fidel durante a visita oficial que fez a Havana, em julho de 1991:

"A derrota decisiva do exército racista em Cuito Cuanavale foi a vitória de toda a África... Possibilitou à África desfrutar a paz e estabelecer a sua própria soberania... [e] ao povo da Namíbia alcançar sua independência.  A derrota decisiva das forças agressivas do apartheid destruiu o mito da invencibilidade do opressor branco.  A derrota do exército do apartheid serviu como inspiração para o povo combativo da África do Sul"².
  
          Mandela, solto da prisão em fevereiro de 1990, na temporada seguinte voou até Havana para confraternizar com o povo que em boa parte foi responsável por sua liberdade, e com seus governantes.  Reconheceu, como em outras ocasiões, o papel de um exército popular e multirracial na derrocada do apartheid.  De quem "nossos" udenistas tardios gostariam que fosse amigo? Thatcher? Bush Senior? Carlos Menem? Não podem ser levados a sério.                   
1-Este processo é descrito com bom número  de detalhes em Richard Gott.  Cuba: uma nova história.  Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 311 a 314.   
2- Gott, p. 313.  

       

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

A juventude Mezzo Cérebro (segunda parte)


         
         Retorno, conforme o prometido, aos comentários sobre as pérolas de Daniel Mezzo Cérebro e seus amigos. Um deles, segundo mensagem que recebi, é o Sr. Péssimo Menezes.  Como estou sem tempo para tarefas de maior fôlego, deixo a sugestão de um estudo de caso para quem não tiver olfato excessivamente sensível.  


          Não me surpreende a constatação de que os gênios autodidatas ignoram o que é dialeto.  Ao mesmo tempo em que rotulam como "falácias de esquerda" tudo que não lhes convém, adotam sem o menor discernimento outros lugares comuns.  O jovem politicamente incorreto, esse iluminado, lê em alguma coleção de frases de efeito que "a África é uma Babel de dialetos" e, no piloto automático, converte qualquer idioma do continente em código primitivo acessível somente a mil aldeões selvagens.  Caso consultasse pelo menos a Wikipédia antes de escrever a primeira baboseira que lhe surge na mente, saberia que o iorubá, falado por dezenas de milhões de pessoas, tem status de língua oficial no país mais populoso da África. 


          Sobre o alegado caráter "ágrafo" do iorubá, confesso o meu espanto, pois já vi centenas de vezes, nas bancas do Rio de Janeiro, jornais e revistas das nações do Candomblé parcialmente redigidos naquela língua.  A fantasia de que um nigeriano, para se comunicar pela escrita, precisa se valer do inglês, parece saída da cabeça de um perfeito "garoto da bolha", de alguém que mal sai às ruas e vive restrito a um circuito de informações quase fechado.  Calculo qual seria a irritação do antropólogo Nina Rodrigues (1862-1906), que se queixava do desconhecimento a respeito das línguas africanas no Brasil, ao ver que mais de um século após a sua morte ainda são lidas ou ouvidas idiotices deste quilate.  Já que mencionei Nina, sigo com a imagem de um antigo açougue de Salvador, que consta do livro Os africanos no Brasil e, em fenômeno quase inacreditável, tinha o letreiro impresso numa língua "exclusivamente oral", de acordo com a família Mezzo Cérebro. O cúmulo da ironia é o fato de Péssimo Menezes ser baiano!!!       





                   
             A tentativa de negação do caráter racializado que a escravidão possuiu no Brasil chega a dar pena.  Caso eu fosse o dono de uma máquina do tempo, enviaria Mezzo Cérebro & Péssimo ao Parlamento imperial de 1826.  Ali, Bernardo Pereira de Vasconcelos, que mais tarde se tornaria um dos principais nomes do conservadorismo no país, afirmou categoricamente, ao defender a atitude dos tripulantes de um navio que trataram negros livres como se fossem escravos, que "a presunção é que um homem de cor preta seja sempre escravo".  (ver Octavio Tarquinio de Sousa.  História dos fundadores do Império do Brasil, vol. V: Bernardo Pereira de Vasconcelos.  Rio de Janeiro: José Olympio, 1957, p. 49-50. 
             Dentro de uma lógica semelhante, após a Revolta dos Malês de 1835 os "homens de cor livres" da Bahia, nas viagens pela província, ficaram sujeitos ao uso de passaportes, numa violação brutal do princípio da igualdade perante a lei registrado na Constituição de 1824 (ver Paulo César Souza.  A Sabinada: a revolta separatista da Bahia, 1837.  São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 142-143).




            Não custa nada lembrar que um "a" craseado antes de "pão" quebra toda e qualquer firma.  O pior deste trecho, porém, é o retorno à velha construção da escravidão suave, adocicada, mesmo que limitada a um grupo seleto.  João José Reis, que estudou minuciosamente a Revolta dos Malês, fez a seguinte observação sobre os participantes daquele movimento:

No interior de casebres, lojas e quartos pobres e superpovoados, libertos e escravos tentaram redefinir como viver de maneira mais independente de senhores e autoridades.  Isto, é claro, não foi possível para todos os escravos, pois nem todos os senhores permitiam que seus escravos se afastassem em demasia do raio em que seu poder se exercia.  
(Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835.  São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 416)      

          O mesmo autor recupera uma conclusão de Kátia Mattoso, para quem 90% dos moradores livres de Salvador [área onde mais havia escravos malês no Brasil] viviam no limiar da pobreza (idem, p. 29).  As pesquisas do próprio Reis demonstram que a concentração de renda na cidade era tão alta que os 10% mais ricos detinham, na primeira metade do século XIX, 66,9% da riqueza total (ibidem, p. 30-31).  Falta, portanto, uma explicação sobre a mágica que permitia que uma sociedade miserável tratasse nababescamente uma parte de seus escravos.  Talvez, nos delírios da família Mezzo Cérebro, os proprietários dos malês dessem filé mignon aos cativos enquanto comiam dobradinha. 
          É significativa a informação de que o líder mais eminente da revolta, Pacífico Licutan, era um simples enrolador de fumo, escravo de aluguel, que ao ser interrogado pela polícia declarou sofrer "mau cativeiro" por  parte de seu senhor, um médico (ibidem, p. 287-288) 
       Sobre a presumida "discriminação" dos malês contra os outros negros, podemos compreender pela leitura da mesma obra  que o rancor dos primeiros contra os escravos nascidos no Brasil, inclusive os mulatos, girava em torno da suspeição de que os últimos seriam "vendidos ao sistema" (expressão do autor), coniventes com os senhores (ibidem, p. 387).  Por outro lado, os nagôs, que formavam a maioria entre os rebeldes malês, souberam se aliar a africanos de outras etnias no ataque à ordem escravista. A hipótese da "aristocracia escrava" esnobe e excludente não passa de uma abobrinha infantil. 



                 
         Como têm na ponta da língua o discurso sobre norte-africanos que puseram grilhões em europeus, os editores daquele blog, para ganhar ainda mais credibilidade, deveriam explicar que quesitos inferiorizavam os franceses, espanhóis, italianos e ingleses escravizados na Idade Moderna pelos "piratas da Barbária", na comparação com seus escravizadores "mouros".  Não me arrisco a adivinhar.     



            Os recursos da família Mezzo Cérebro, devo admitir, não se limitam ao uso indiscriminado do chutômetro.  Nesta passagem aprendemos que a melhor defesa contra uma relação social desfavorável  é fazer de conta que ela não existe.  Deixem de notar que o batalhão X só mata negros, e aos poucos ele deixará de matar!  Parem de reclamar que a empresa Y não contrata negros, e logo haverá uma maioria afro-mestiça no seu quadro de funcionários!  A proposta é tão boa que já estou pensando em adaptá-la para as populações que habitam áreas sujeitas a terremotos, erupções vulcânicas e tsunamis: -Só existe catástrofe se você quiser acreditar nisto!!!  A senhorita Ortografia também agradece pelo "Engove" que lhe foi fornecido com o rótulo em "irorubá".      



        Temos aqui um novo atentado à língua.  Só posso dizer que poucas coisas são mais engraçadas do que lidar com sujeitos que se consideram cercados de analfabetos e ignorantes por todos os lados enquanto produzem sentenças como "os sofrimentos (...) não respeita".   


            O acento em tofu revela alguma coisa.  Nosso idioma oficial, se pudesse se exprimir como uma pessoa, usaria a mesma palavra para definir sua condição atual nos arraiais da nova direita.  Para fechar com chave de ouro, descobrimos também que o freguês de um self service que escolhe comer somente estrogonofe, arroz e fritas em determinado almoço incorre em prática discriminatória contra os outros 27 pratos que tem à disposição naquele dia.  Encerro lamentando o solene desprezo dedicado pela família Mezzo Cérebro ao sistema de ensino oficial.  Que teses de Sociologia eles não seriam capazes de parir!!!  
    

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

A juventude Mezzo Cérebro

       

     Os programas humorísticos da segunda metade dos anos 70 figuram entre as melhores lembranças da minha infância e do começo da adolescência.  Jô Soares sobressaía, na época, como o mais talentoso criador de personagens que muitas vezes serviam como instrumento para uma sátira desconcertante da ditadura.  Recordo-me hoje de um tipo burguês arrogante, interpretado por Jô, que ridicularizava em festas, perante seus amigos, as falas de garotos supostamente desinformados.  A cada rodada de "pérolas", seguia o bordão "A ignorância da juventude é um espanto!".  Entretanto, a graça do quadro estava em constatar que o homem de meia idade que se julgava culto proferia asneiras em grande quantidade para "desmontar" as afirmativas corretas dos jovens.
      Encontro uma situação diametralmente oposta ao visitar a página do Facebook e o blog do grupo intitulado "Meu professor de História mentiu para mim", que segundo investigações independentes conta com três editores, um dos quais já razoavelmente conhecido no mundo virtual pela alcunha de Daniel Mezzo Cérebro.  Muito jovens, eles se distinguem pela algo divertida pretensão de humilhar diante de não poucos seguidores uns 90% da sociedade, em particular a militância de esquerda e os professores de História maduros, que consideram os agentes disseminadores, por excelência, de lugares comuns "progressistas" e multiculturais.  Não satisfeitos em reproduzir em grande escala a literatura de tipo narlochiano e todos os clichês da propaganda reacionária contemporânea, alimentam a ambição de construir seu próprio conteúdo, como vemos neste link:       

http://meuprofessordehistoriamentiupramim.blogspot.com.br/2013/11/tudo-que-seu-professorzinho-do-mequi.html

       Não discutirei por ora a lamentável tentativa de banalizar ou descaracterizar os preconceitos de origem e etnia.  A Internet está superpovoada de elementos cínicos ou desequilibrados o suficiente para sustentar que a melhor alternativa para o cidadão chamado quase diariamente de paraíba, crioulo e termos equivalentes, servindo ainda de alvo preferencial da polícia e de quadrilhas neonazistas, é juntar uma tonelada de dinheiro e passar do time dos discriminados para o dos discriminadores.  Podemos criticá-los a qualquer instante, coisa que continuarei fazendo, mas meu foco neste momento é a quantidade de disparates e dados inventados que Mezzo Cérebro e seus sócios reúnem em tão pouco espaço.  Para não tornar a matéria longa demais, e digo isto sem ironia, decidi fracioná-la em dois blocos.  Vamos, então, ao primeiro, composto por quatro citações.        

      Apesar de todo o entusiasmo do trio politicamente incorreto, simples dados factuais arrasam a fábula.  Constatamos que na Inglaterra do século XI, há muito cristianizada, os escravos continuavam desempenhando um papel significativo na produção: 
Pela metade do século XI, o governo escandinavo havia sido derrubado e um reino anglo-saxão recentemente unificado fora restaurado.  O campesinato por esta época consistia geralmente de rendeiros semi-dependentes, exceto nas áreas de antiga colonização dinamarquesa mais a nordeste, onde havia muitos lotes alodiais de proprietários jurisdicionais.  Os escravos ainda existiam, compreendendo uns 10 por cento da força de trabalho; eram mais importantes economicamente nas regiões ocidentais mais remotas, onde a resistência céltica à conquista anglo-saxônica fora mais demorada, e os escravos compreendiam um quinto ou mais da população.
(Perry Anderson.  Passagens da Antiguidade ao Feudalismo.  São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 155)
     Descartemos da Europa, talvez, esta Inglaterra excessivamente "bárbara".  Os civilizadíssimos bizantinos, na mesma época e até mais tarde, reduziam ao cativeiro, em elevada proporção, populações cristãs dos Bálcãs. 
A ocupação bizantina [na Bulgária] durante os séculos XI  e XII levou a um rápido aumento das grandes propriedades e à intensificação das extorsões sobre o campesinato.  Pela primeira vez foi introduzida na Bulgária a instituição da pronoia e  multiplicadas as comunidades ekskousseia.  Números crescentes de antigos camponeses livres caíam na situação de paroikoi dependentes, e a escravidão se expandia contemporaneamente graças ao cativeiro de prisioneiros de guerra. 
 
(Passagens da Antiguidade ao Feudalismo, p. 277) 
           Muito além dos limites da Idade Média, John Locke poderia ensinar a Mezzo Cérebro & Cia., através das Constituições Fundamentais da Carolina, que o fato de um escravo frequentar a igreja de sua preferência em nada afetava os direitos do senhor sobre sua pessoa:   
(...) no plano civil, os escravos, como todos os outros, podem legitimamente se registrar e aderir à igreja ou confissão que cada um deles julgue a melhor e dela se tornar membros, tão plenamente como acontece com qualquer homem livre.  Entretanto, nenhum escravo deixa por isso de se submeter ao poder civil que seu dono exerce sobre ele e, em todos os aspectos, cada um permanece no mesmo estado e na mesma condição de antes.
(Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos: ensaio sobre a origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil.  Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco; Petrópolis: Vozes, 2006, p. 315. 

 

           A família Mezzo Cérebro, cujos integrantes não são formados em História, está obviamente desobrigada de saber que o Cristianismo chegou ao reino de Axum, situado em terras dos atuais Etiópia e Sudão, ainda na Antiguidade, transformando-se em religião oficial.  Também podem ignorar à vontade que as terras da Núbia "medieval" estiveram repartidas entre os Estados cristãos da Nobácia, Macúria e Alódia, que tiveram certo êxito, por alguns séculos, na contenção da expansão islâmica.  Mas, sobretudo, devem aliviar o mundo virtual da sua fábrica de balelas!!!

            
         Quanta bobagem em tão poucas linhas!  Alguns colegas maliciosos dizem que na verdade foi o próprio professor de História que desistiu desta turma.  Vou adiante e assinalo que Mezzo Cérebro & Cia. brigaram também com o professor de Português, como se nota no trecho "dO norte da África, que tinha sido aculturadA", a não ser que retruquem afirmando que toda a África foi "aculturada" por muçulmanos, sepultando de vez a realidade para retocar a gramática. 
      Não me atrevo a adivinhar qual é o conceito de tecnologia dos prodigiosos jovens conservadores, mas caso tivessem lido superficialmente qualquer manual de História para crianças da antiga quinta série (sim, daqueles aprovados pelo MEC!) saberiam que o trabalho do homem com os metais antecedeu em muito a feitura dos primeiros sinais cuneiformes na velha Mesopotâmia.  Em outras palavras, um bom Mario Furley Schmidt iria salvá-los de uma opinião estúpida como a de que não há tecnologia sem escrita. 
        Para arrematar a obra, o autor do "texto" nos garante que nenhuma língua da África Subsaariana possuía representação escrita antes da expansão do Islã, empregando ainda caixa alta para dar mais destaque à asneira.  Vou poupá-lo de bibliografia vinda do MEC, mas preciso apresentá-lo à escrita meroíta, usada na antiga Núbia, que já possuía uma versão alfabética quando boa parte dos habitantes do norte europeu sequer imaginava o que era um alfabeto. 


 
 
  

 
     
         Temos aqui novos chutes, tão ruins quanto os anteriores e com o agravante das referências absurdas.  A África de Mezzo Cérebro brota, sem dúvida, de filmes da série Indiana Jones ou das reprises de Allan Quatermain.  Sobre um dos mencionados impérios de "primitivos que dançavam em volta da fogueira", escreveu João Carlos Rodrigues que

O principal governante do Mali foi Kankan Mussa, ou mansa Mussa (1312-1332), irmão e sucessor de Abubakar que alcançou celebridade internacional ao empreender, em 1324, uma peregrinação a Meca.  Sua estada no Cairo causou rebuliço pela quantidade de ouro que distribuiu e pela suntuosidade do seu séquito.  O historiador Al-Omari escreveria dele em 1336 na sua obra África sem o Egito: "É o mais importante dos reis negros muçulmanos; seu reino é o maior, seu Exército, o mais numeroso; é o mais poderoso, o mais rico, o mais temido pelos inimigos e o mais capaz de boas ações".  De volta da Arábia, Mussa trouxe consigo numerosos teólogos, cientistas e artistas- entre eles o quase lendário arquiteto andaluz Al-Saheli, autor da mesquita Djinger-Ber, em Timbuctu, e outras obras características do esdrúxulo [!] estilo sudanês.  Seu reino marcou o apogeu do Mali. 

(Pequena História da África Negra.  São Paulo: Globo; Brasília: Biblioteca Nacional, 1990, p. 34)     

      Para seguir  com a esdrúxula (sem exclamação) tese da família Mezzo Cérebro, precisaríamos conceber o mito do rei que importava intelectuais e técnicos qualificados para ... nada, já que seus súditos eram todos selvagens!
       Sobre o "Dahomey", atual Benin, o mesmo Rodrigues relata que durante o reinado de Agajá (1708-1727) havia uma organização de governo bastante elaborada, em que "cada funcionário administrativo tinha como correspondente ou duplo uma mulher encarregada de controlá-lo e denunciá-lo ao Estado em caso de irregularidades" (Pequena História da África Negra, p. 94).  Não muito longe dali, na cidade de Bigu, em território que hoje corresponde à República de Gana, Alberto da Costa e Silva informa que existia, já em meados do século XV, "um importante centro têxtil, de produção de ferro e trabalho no marfim e no cobre". ( Ver A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, p. 195) 

       Apesar do estilo, e dos outros defeitos da página, um público superior a 50 mil pessoas manifesta aprovação a "Meu professor de História mentiu para mim".  Não cultivo a ilusão de ser o único que enxerga em um mundo de cegos: é evidente que muitos dos que "curtem" identificam as invenções, distorções e generalizações primárias dos editores.  Todavia, quando se trata de defender o indefensável, uma mentira a favor vale mais do que uma verdade contrária.  Concluo em breve...