A construção sistemática da imagem de uma Princesa Isabel heroína, em contraposição ao Zumbi dos Palmares cruel, não é exatamente uma estratégia nova dos ideólogos da direita brasileira. Este discurso serve como poucos à manutenção da premissa de que as conquistas sociais resultam, ou devem resultar, de concessões vindas "do alto" e não das lutas do povo, tido como violento, vingativo e ignorante até dos próprios interesses. O enaltecimento da Santa Isabel da Lei Áurea, portanto, convém não apenas às seitas cujos membros anseiam pelo improvável dia em que beijarão a mão de um chefe de Estado hereditário e vitalício, como também a alguns liberais sofisticados que muito se divertiriam, na intimidade, com os aspectos caricatos de um Terceiro Reinado. O processo mencionado assumiu proporções inusitadas nos últimos anos, a partir da difusão da bibliografia dita "politicamente incorreta", que se caracteriza, entre outros defeitos, por uma singular ojeriza aos métodos científicos. Já vulgares desde a origem, certas teses se desdobram na Internet em vulgarizações ainda piores.
As "narlocadas" e "kameladas" dos livros degeneram, por exemplo, em montagens como esta:
As mensagens breves e diretas, com forte apelo à emoção e nenhum à razão, deixam claro que se trata de uma ordinária peça de propaganda, de formação de opinião no sentido do conservadorismo. Apesar de sua puerilidade, talvez em parte por causa dela, o quadro se alastrou com rapidez pela blogosfera e pelas redes sociais, como notamos nos links abaixo, entre grande número de possibilidades:
http://ferramula3.blogspot.com.br/2013/11/consciencia-lucida.html
http://www.bazingaonline.net/2013/11/uma-verdade-sobre-o-dia-da-consciencia.html
http://cinenegocioseimoveis.blogspot.com.br/2013/11/zumbi-e-o-dia-da-consciencia-negra.html
Neste artigo, me limitarei à afirmativa inicial, a que mais contradiz dados factuais elementares:
[A Princesa Isabel] Nunca possuiu escravos.
Não há como sustentar uma mistificação tão grosseira, pois qualquer pessoa bem informada sobre o Império do Brasil, ainda que "leiga", sabe que a Casa de Bragança dispôs da força de trabalho de muitos cativos, denominados "escravos da Nação". Assinalo, em antiga obra de um autor confessadamente monarquista e ferrenho entusiasta da figura de D. Pedro II, a seguinte passagem:
Mas a festa maior, esta só aconteceria no dia 10 de outubro, na Fazenda Nacional de Santa Cruz, lugar de concentração do maior dos contingentes de escravos da Nação espalhados pelo Brasil inteiro, ao aparecerem nela a Princesa Isabel e o Conde d'Eu e Rio Branco e todos os seus ministros, a fim de que presentes estivessem no instante em que o seu diretor, o Dr. José Saldanha, dissesse a todos eles:
-Escravos, agora, para vós, esta palavra não mais existe! Livres estão agora todos os escravos da Nação!¹
Brasil Gérson se referia aos acontecimentos que se seguiram à promulgação da Lei do Ventre Livre, em 28 de setembro de 1871. Basta ser alfabetizado, então, para compreender que a família imperial ainda era dona de escravos trinta e um anos após a ascensão de Pedro II ao trono, ocorrida em 1840. Desta maneira, tinha o imperador, nascido em fins de 1825, 46 anos incompletos quando abriu mão da propriedade sobre homens. Uma eventual alegação de que os escravos da Nação serviam ao Estado e não ao monarca desmorona se lembrarmos que a Fazenda de Santa Cruz, situada em freguesia rural, a várias léguas da Corte, constituía uma das residências prediletas da Casa de Bragança.
Logo, nem o mais ingênuo dos leitores continuará a crer que Pedro II, Isabel e demais integrantes da dinastia não lidaram com cativos na posição de senhores, em relação sociojurídica idêntica, ou quase, à do plantador escravista mais iletrado e truculento com seus cativos do eito. A insistência na atitude de compartilhar imagens como a que copiamos será, sem dúvida, uma mentira intencional. Só resta aos cultuadores da Santa Isabel, enfim, insistir na sentença de que a princesa era boazinha e caridosa com os subalternos, hipótese que, se admitida, em nada modificaria o que aponto nesta matéria.
Isabel possuiu, sem dúvida, muitos escravos, a não ser que se faça uso de sofismas cretinos baseados no fato de que aquelas pessoas não estavam, provavelmente, "no nome dela". Compartilhem sem moderação.
Isabel possuiu, sem dúvida, muitos escravos, a não ser que se faça uso de sofismas cretinos baseados no fato de que aquelas pessoas não estavam, provavelmente, "no nome dela". Compartilhem sem moderação.
Nota:
1-Brasil Gérson. A escravidão no Império. Rio de Janeiro: Pallas, 1975, p. 234.