sexta-feira, 24 de abril de 2015

Também quero "comemorar"

       

         Durante o último final de semana, assisti, em decorrência de uma circunstancial falta de opção, alguns trechos das comemorações dos 50 anos da Rede Globo.  Não deixei de me surpreender um pouco com o empenho demonstrado por William Bonner e outros empregados da emissora em livrar a empresa do estigma de pilar da ditadura de 1964.  Veio à minha lembrança, logo nos primeiros momentos, um episódio em que Roberto Irineu Marinho, gestor do grupo desde 2003, manifestou grande irritação pela exibição de um programa em que, segundo ele, aquele regime foi retratado como se não tivesse feito "nada de bom".  Aliás, agradeço desde já a quem se dispuser a localizar o incidente no tempo e no espaço.  Não custa nada, e é bastante prazeroso, refrescar um punhado de memórias e destroçar certas ilusões.
          Caso ignorasse o papel do jornalismo "global" como mais poderoso agente na formação da opinião pública no país, eu riria muito das tentativas de vários repórteres de destacar as estratégias que supostamente empregaram, na juventude, para se esquivar da conjuntura de arbítrio das décadas de 70 e 80. Um deles, de quem omito o nome por simples esquecimento, chegou a declarar que "nós dávamos a versão oficial porque éramos obrigados".  Não pretendo, entretanto, inquirir nenhum jornalista sobre como, apesar de seu fervoroso espírito democrático, alcançou degraus tão elevados e tão bem remunerados na carreira.  Desejo, ao invés disto, participar modestamente, ao meu estilo, da entusiástica celebração do cinquentenário.
        Muito já se disse, em obras acadêmicas e discursos políticos, sobre a associação permanente entre as Organizações Globo e os múltiplos poderes oligárquicos, ou a respeito de seu servilismo diante de uma série de interesses, principalmente estrangeiros.  Não tendo pesquisa própria que acrescente qualquer coisa de relevante ao tema, resgato então, para os novos e para os velhos, duas páginas de um clássico de Nelson Werneck Sodré (1911-1999).  O texto revela de maneira magistral a extensão dos danos causados pelo controle dos meios de comunicação de massa por um pequeno número de famílias que ocupam quase todos os espaços e ditam a quase todos os profissionais do ramo sua linha editorial. Em suma, o modelo que a militância conservadora, na prática, se apresenta para defender até a morte em nome da liberdade.                        
           
     Em depoimento numa cadeira de televisão e rádio¹, o deputado João Calmon revelou que, "de fevereiro até novembro de 1965, o Grupo Time-Life tinha remetido ao Grupo Roberto Marinho (TV-Globo) nada menos que 2.838.613,28 dólares, correspondendo, em moeda brasileira, a, aproximadamente, 6 bilhões e 145 milhões de cruzeiros! Uma média de quase 700 milhões por mês!" Revelou, mais: "Ante a demora do Governo em dar solução aos acordos Globo-Time-Life, o sr. Nascimento Brito procurou fazer coisa idêntica com o grupo radiofônico da ABC, ou da CBS, tenho a impressão de que com o ABC, norte-americano.  A nossa campanha constitui-se, para o sr. Nascimento Brito², um desastre, e daí o fato de ter-se aliado, de imediato, ao Grupo Globo contra nós.  A verdade é que esse último estava atolado num mar de dólares, e o primeiro preparava-se para mergulhar no mesmo mar".  Em outro trecho: "Disse-me, ao telefone, o sr. Brito que os coronéis invadiriam os escritórios dos jornais, revolveriam os livros de contabilidade, pesquisariam a escrita.  Eu lhe respondi que quem não tem podres não tinha por que se apavorar.  Ele declarou que não tinha podres e eu adiantei que então não tinha por que temer a devassa".  Uma delícia, como se vê.  Pois o Jornal do Brasil levara a sua adesão ao problema da instalação de imprensa genuinamente estrangeira aqui ao limite de escrever que "se o New York Times resolvesse imprimir no Rio de Janeiro, para distribuição gratuita, uma edição em português com os anúncios autorizados em Nova Iorque", sua resposta seria "Quem tem eficiência pode competir em qualidade.  Que venha o New York Times".  Presunção, ignorância ou cinismo?
       Aludia o deputado João Calmon, também, à forma como o capital da TV-Globo fora integralizado: "Inicialmente, esse capital foi de 500 milhões e passou, depois, a 650 milhões.  A quota inicial do sr. Marinho era de 300 milhões, que ele integralizou de forma um tanto pitoresca, para não dizer escandalosa: um equipamento completo de estação de TV, RCA Victor, no valor de 160 milhões de cruzeiros, especificado na licença de importação nº DG/60-7 484 18 056.  Esse equipamento fora adquirido com câmbio privilegiado, pagando apenas 1/3 da cotação do dólar concedida às demais estações de TV.  Roberto Marinho deu, como parte da sua quota, um bem que não era seu, mas sim da Rádio Globo S.A.  E continua não sendo dele porque continua sendo da Rádio Globo S.A., conforme se vê no Diário Oficial de 5-5-65, que publicou a isenção de imposto para importação desse material da TV-Globo.  E a relação do material está encimada por este subtítulo: "Relação do material a ser importado pela Rádio Globo S.A."  Essa proeza do sr. Marinho não foi superada, até hoje, por ninguém.  Mas eu vou, como deputado, pedir informações sobre esse caso.  Aliás, Marinho integralizou sua quota de capital com valores curiosos, como 150 toneladas de ferro, 3 mil sacos de cimento, 2500 tábuas, 400 m³ de pedras, 400 m³ de areia, 500 kg de arame preto, 660 de pregos, 2 betoneiras e 10 martelos a 700 cruzeiros cada um..."  Repetia-se, pois, o caso da velha rotativa Goss...
          O caso das ligações de O Globo com o consórcio norte-americano Time-Life, que motivou a campanha comandada pelo deputado João Calmon vinha coroar situação que se iniciara, entretanto, muito antes, nos fins de 1965, quando começaram a transpirar as compras de jornais, emissoras de rádio, oficinas de impressão, estações de televisão, por grupos estrangeiros.  Em S. Paulo, antigo criador de aves e ovos, Otávio Frias de Oliveira, tornava-se, por singular passe de mágica, proprietário da empresa jornalística Folha de S. Paulo, que mantinha três diários dos mais importantes da capital paulista.  As operações em torno das emissoras de televisão e de rádio- redes inteiras passando, da noite para o dia, às mãos de testas de ferro de grupos econômicos estrangeiros, já não eram mantidas em segredo.

Notas:

1-Segundo o autor, a entrevista foi publicada n'O Cruzeiro de 2 de abril de 1966, que serviu de fonte para o livro.
2-Manuel Francisco do Nascimento Brito era proprietário do Jornal do Brasil

(Ver Nelson Werneck Sodré. História da imprensa no Brasil, 4a edição.  Rio de Janeiro: Mauad, 1999, p. 439-440)