segunda-feira, 30 de maio de 2016

Os Tupacs



"O sistema da mita para as minas, manufaturas e obras públicas e as condições de trabalho dizimaram a população da colônia.  De cada cinco mitayos apenas um sobrevivia a esse serviço.  Crespo nos diz que ao trabalho das minas iam, em média, quarenta mil índios por ano.  Desses, não regressava senão a quinta parte.  Assim, a mita, em 250 anos, causou a perda de oito milhões de índios que pereceram vítimas do trabalho e da intempérie¹".   


            Durante o período da colonização espanhola, as populações indígenas andinas foram continuamente oprimidas pela mita, um sistema de trabalhos forçados que se organizou a partir de diversos decretos de Francisco de Toledo (1515-1582), vice-rei do Peru.  A mita consistia na obrigação, imposta a um sétimo dos índios adultos de cada vez, de cumprir ao longo de dez meses as tarefas determinadas pelo governo colonial.  Os índios mitayos deveriam receber um salário, que na época da criação do sistema equivalia a algo entre a metade e um terço do que cabia a um trabalhador livre.  Entretanto, a quantia já ínfima não teve reajustes nas gestões dos sucessores de Toledo, de maneira que seu poder aquisitivo desmoronou de vez². 
          Não havia legislação sobre jornada de trabalho nas minas dos Andes, o que permitia ao dono de cada uma delas explorar ao extremo a mão de obra ofertada pelas autoridades. Depois de passar a semana toda no local de trabalho, o mitayo podia, na maioria dos casos, sair somente aos domingos.  Mesmo dispondo apenas do salário miserável, era forçado a pagar tributos e comprar suas próprias ferramentas, o que resultava, inevitavelmente, em dívidas que impediam seu afastamento da mina.  Estas condições contribuíam para que sua expectativa de vida diminuísse ainda mais³.     
           Além da mita, os índios também estiveram sujeitos à encomienda indiana, regime pelo qual um proprietário de origem espanhola, intitulado encomendero, era encarregado pela Coroa da administração de uma certa quantidade de nativos "tributários", os quais se viam obrigados a lhe prestar serviços na mineração, na agricultura ou artesanato. Em contrapartida, o encomendero ficava responsável pela conversão de seus dependentes ao Catolicismo, o que favorecia a submissão dos conquistados 4, beneficiando diretamente a metrópole.
          Por volta de 1780, o vice-rei instalado em Lima governava o Peru e o norte do Chile, enquanto o território que na contemporaneidade forma a Bolívia estava subordinado ao vice-reinado do Prata, cuja capital era Buenos Aires. Existia em Chuquisaca (hoje Sucre) uma Audiência (Corte Suprema), denominada Audiência de Charcas, com autoridade para fiscalizar a atuação do vice-rei e, em caso de graves divergências, recorrer ao Conselho das Índias, sediado em Madri 5.  
      Os vice-reinados hispano-americanos se dividiam em províncias ou corregedorias, geridas por corregedores que compravam da Coroa sua nomeação para o cargo.  Como, nos termos de Marcelo Grondin, "queriam recuperar todos os gastos e acumular uma fortuna", inevitavelmente cometiam enormes abusos contra as populações administradas, fato que desembocou nas rebeliões iniciadas em 1780 [6]. 
           Durante a década de 1770, o peruano José Gabriel Condorcanqui manteve contatos com lideranças indígenas de várias partes dos Andes, tendo em perspectiva uma insurreição geral. Condorcanqui era, a princípio, um mestiço excepcionalmente bem colocado na sociedade colonial.  Detinha o cargo de cacique dos índios da localidade de Tinta, na província de Cuzco, posição que lhe permitia influir na política local, apoiando o bispo Moscoso em suas rusgas com o corregedor Arriaga. Entretanto, se tornaria célebre ao abandonar a face pública de "zeloso súdito de Carlos III" para assumir a identidade de Tupac Amaru II. O nome reverenciava um remoto ancestral, que conduziu entre 1570 e 1572 a última resistência dos incas contra a conquista espanhola. Tupac Amaru II coordenou um levante que, apesar de certa dificuldade de encontrar adeptos entre os criollos (brancos nascidos na América) e mesmo entre as castas (mestiços), entusiasmou um imenso séquito indígena 7.   
       Quando o cacique Tomás Katari, da província de Chayanta (atualmente em solo boliviano), iniciou uma revolta em 26 de agosto de 1780, Tupac Amaru foi forçado a adiantar seus planos. A 4 de novembro, se declarou em armas, inflamando povos distribuídos por um território que se estendia desde Cuzco, no Peru, até o norte da Argentina, e, na direção oposta, até o Equador 8. Os espanhóis conseguiram derrotá-lo e prendê-lo em abril de 1781, o que não significou, em absoluto, a retomada imediata do controle sobre os Andes. Em Puno, às margens do Lago Titicaca, a resistência se prolongou por todo aquele ano, ocorrendo o mesmo no Alto Peru, nome pelo qual era conhecida a área boliviana 9.                             



                                       Cédula peruana com a efígie de Tupac Amaru


             Ao contrário de Tupac Amaru, o índio aimará Julián Apaza, nascido na localidade de Sullcavi ou Ayo-Ayo, entre La Paz e Oruro, não era de origem nobre.  Citado por alguns como filho natural do sacristão de Ayo-Ayo, desempenhou a mesma função na casa do pároco de Sicasica, sede de sua província natal.  Trabalhou, em seguida, na mina de Oruro, não sendo certo se passou pela condição de mitayo ou se para lá seguiu como peão voluntário.  Mas tomou ciência, desta maneira, do sofrimento de seus companheiros, e, sobrevivendo ao tempo de serviço, voltou a Sicasica, onde foi padeiro e comerciante.  Viajava, então, entre a região dos Yungas e La Paz.  Acumulou numerosas relações em tais deslocamentos, que foram úteis quando decidiu empreender sua própria rebelião.  Após conhecer Tupac Amaru e Tomás Katari, adotou o nome de guerra Tupac Katari, que significa Serpente Soberana 10.





                      Selo boliviano que homenageia Tupac Katari e sua mulher Bartolina Sisa


         Embora seja muito menos conhecido pelo público em geral, e pelos próprios historiadores não especializados no tema, Tupac Katari expôs as autoridades espanholas do altiplano boliviano a perigos bem maiores do que os oferecidos por Tupac Amaru na zona peruana. Dando seu grito de guerra nos primeiros dias de março de 1781, ele assumiu a liderança sobre os índios das províncias de Pacajes, Omasuyos, Larecaja, Chucuito, Carangas e Yungas, que se reuniram e impuseram, em 13 de março, um primeiro cerco à cidade de La Paz, na época habitada por 20 mil pessoas.  O sítio durou 184 dias.  Desprovidos de armas de fogo, os índios usavam fundas para atirar por cima dos muros, em chamas, pedras e bolinhas de lã banhadas em óleo e pólvora.  Os rebeldes chegaram a derrotar em Sicasica, no mês de maio, uma tropa chefiada pelo capitão Ayerza, que pretendia desafogar La Paz.  Tomaram dos espanhóis fuzis e dois canhões, mas não sabiam como manejá-los.  A cidade sitiada estava prestes a cair, vitimada por dentro pela fome e por epidemias, quando um exército colonial de 2.700 soldados, tendo à frente o comandante Flores, venceu Tupac Katari em Sicasica.  As forças indígenas recuaram na direção de La Paz, mas não puderam impedir que os espanhóis rompessem o cerco 11.
           Todavia, muitos dos homens de Flores, cansados de lutar e satisfeitos com os saques que tinham realizado nos arredores da capital, desertaram.  O comandante precisou deixar La Paz para reorganizar seu exército, recrutando novos soldados em Oruro, Chuquisaca e Cochabamba. Disto se valeu Tupac Katari para promover um novo cerco, que se prolongou por 75 dias.  O líder aimará contava agora com reforços trazidos por outro chefe indígena, Andrés Tupac Amaru, que apresentou um plano para a tomada da capital: os atacantes represariam as águas do rio Choqueyapu, que banha a cidade, para depois soltá-las abruptamente, derrubando as fortificações.  Antes, porém, que a represa ficasse pronta, Tupac Katari recebeu a notícia do retorno de Flores, que vinha desta vez com 5 mil homens.  Os índios liberaram às pressas o fluxo das águas do rio, que inundou uma parte de La Paz e destruiu parcialmente suas defesas, mas não a ponto de permitir a entrada do exército rebelde 12.
          O comandante Flores salvou La Paz pela segunda vez em 17 de outubro de 1781.  Tupac Katari se retirou para a região de Peñas, disposto a persistir na luta com os 5 mil guerreiros ainda sob seu comando.  Vendo rejeitadas as ofertas de paz, e sabendo da impossibilidade de vencer por completo a rebelião dos índios em seu próprio meio, as altas montanhas bolivianas, o novo comandante espanhol, Reseguín, resolveu empregar um artifício.  Contratou os serviços de um traidor, Inca Lipe, conhecido como amigo pessoal de Tupac Katari, mas que facilitou sua prisão em uma cilada, a 18 de novembro.  O líder aimará foi executado por esquartejamento no dia seguinte. As autoridades metropolitanas, ao que parece, decidiram exterminar sua família: em 5 de dezembro de 1782 eram condenadas à morte Gregoria Apaza e Bartolina Sisa, respectivamente irmã e esposa de Tupac Katari.  Acredita-se que o filho de dez anos do casal, capturado em abril de 1783, também tenha sido morto 13. 
         A grande insurreição boliviana de 1781 não foi uma explosão desordenada de violência. Havia nela um nítido programa social, que pode ser reconstituído a partir da correspondência de Tupac Katari. Os rebeldes pretendiam estabelecer um governo dirigido por índios, obter a restituição das terras usurpadas pelos colonizadores, expulsar todos os espanhóis natos e instituir a língua aimará como obrigatória.  A Igreja Católica seria reformada, deixando de funcionar como braço auxiliar da opressão colonial para assumir uma posição de defesa das reivindicações indígenas 14. Embora soubessem muito bem o que queriam, Tupac Katari e seus seguidores não chegaram a governar de fato, exceto em uma parte do Alto Peru e por um curto período de tempo.  Assim como Tupac Amaru, não obtiveram sucesso na tentativa de agregar ao movimento todos os potenciais interessados em um virtual processo de independência. Como aponta Julio Cotler,


" (...) em um primeiro momento, Tupac Amaru representou a aglutinação de todos os setores provinciais dominados pelo sistema metropolitano: índios, forasteiros, mestiços e criollos.  Na medida em que a rebelião foi se convertendo em uma revolta popular anticolonial, os criollos e seus aliados foram abandonando-a" 15.


        A revolta aimará enfrentou obstáculos ainda maiores para atrair os segmentos não índios. Segundo o historiador argentino Halperin Donghi, ali houve apenas um episódio de "alianza estable entre elementos de castas distintas", quando mineiros criollos de Oruro, que passavam por dificuldades econômicas, iniciaram seu próprio levante contra os espanhóis. Além de recrutar nativos para a causa, passaram a adotar trajes indígenas em seu cotidiano 16. 
           Mais de duzentos anos após a morte dos dois Tupacs, exatamente em 22 de janeiro de 2006, o aimará Evo Morales chegou à Presidência da Bolívia, onde se mantém até hoje.  Seu partido, o MAS (Movimento para o Socialismo), tomou La Paz pelo voto e derrotou, com apoio popular, diversas tentativas de desestabilização política, incluindo iniciativas espúrias de separatismo.  No segundo mandato de Morales, para ódio e desespero das oligarquias e de seus adeptos elitistas e racistas, a Bolívia se transformou em República Plurinacional, concedendo às dezenas de etnias que formam a maioria indígena do país uma boa dose de autonomia interna, além da valorização efetiva de suas culturas.
           Como todos os regimes políticos fatalmente se desgastam, não é impossível que daqui a cinco ou dez anos a direita boliviana ganhe uma eleição e ponha na cadeira de Evo Morales um Aécio Neves, um Mauricio Macri, ou coisa ainda pior.  Mas é certo que as regras do jogo mudaram para sempre: o socialismo deixou de ser palavrão, as organizações populares avançaram em todas as direções, e a hierarquia étnica herdada da colonização e das administrações neocoloniais foi esgarçada de maneira a não poder mais se recompor, a não ser, talvez, com o emprego de violência letal em escala hitleriana. 
         Julgo que não me arrisco demais ao afirmar que o mesmo processo, em proporções variadas e, é claro, com muitas peculiaridades locais, já avançou significativamente em países como Equador, Nicarágua e El Salvador.  É bem possível que o sucessor do venezuelano Nicolás Maduro Moros seja um tecnocrata de Harvard ou um emergente de discurso neoliberal afiado, mas muito pouco provável que o operariado chavista e as populações de baixa renda beneficiadas pelos programas sociais do governo central aceitem retornar às posições que ocupavam na década de 1990.  Mesmo no aparentemente tranquilo Uruguai, o eleitorado não dá mostras de que pretende voltar à antiga polarização entre conservadores agrários e conservadores representantes do grande comércio e das finanças.  Talvez ainda nos deparemos, na próxima década, com a revista-panfleto do grupo Naspers saudando inesperadas glórias do capitalismo em Cuba; não creio, contudo, que os dirigentes anticastristas de Miami sejam carregados nas ruas de Havana como salvadores da pátria, ou que os filhos das classes trabalhadoras desistam de frequentar os bancos universitários em prol de uma nova burguesia, ou dos rebentos tardios da velha.   
          A direita latino-americana vibra, sem dúvida, com a queda do kirchnerismo e do governo Dilma, com a resignação de Maduro ao modesto propósito de se manter no posto até o final do mandato.  Até sinto uma espécie de alívio, nesta conjuntura, por não estar alistado entre os "historiadores do tempo presente".  Seria obrigado a tentar localizar, com enorme chance de erro, os protagonistas da vasta coalizão internacional que faz de tudo para instituir, em todo o continente, uma espécie de "Restauração", bem como seus métodos.  Confesso que, até agora, consigo ver apenas alguns de seus capatazes, além, é óbvio, de uma legião de bobos da corte que tentam se exibir como figuras de proa.  Figuro, assim, nas fileiras de uma tal "esquerda perplexa", conforme tem dito o "cristão novo" do neoliberalismo Cristovam Buarque.
        Ironias à parte, porém, no longo prazo "eles" tendem a perder.  Cada milímetro de desgaste que os milhões de pequenos e grandes Tupacs, notáveis ou anônimos, provocam no paredão do status quo ao longo dos anos, décadas e séculos, é um resultado que em geral se consolida e amplia.  Não por intervenção miraculosa do Santo Ernesto Guevara ou do Santo Antônio da Sardenha, mas por um motivo bem evidente: o conservadorismo só sobrevive, em qualquer latitude, com a ingestão de doses generosas de comodismo intelectual, de recusa à investigação profunda dos fenômenos, com a propagação intencional de um temor infantil da perda de referências sociais, mesmo que estas sejam as piores possíveis
          Cada indivíduo ou organização que questiona a subalternidade e a opressão dos pobres, das mulheres, dos homossexuais, dos negros, dos índios, do operariado ou do campesinato nas sociedades latino-americanas, ou que se insurge, seja de maneira hábil ou desastrada, contra as ordens oligárquicas, dá sua contribuição, maior ou menor, para o formidável tombo que a direita continental ainda há de levar de um Salto Ángel [17].  Espero presenciar o grandioso evento, que por si só constituiria razão para chegar à idade de um Oscar Niemeyer.                 


.Dedico este texto a meu amigo Alexandre Soares, biólogo que cada vez mais vem se interessando por antigos entreveros.                             
  

Notas:

1-Marcelo Grondin.  A rebelião camponesa na Bolívia.  São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 39-40.
2- Cf. Julio Cotler.  Peru; Classes, Estado e Nação.  Brasília: Funag, 2006, p. 24.
3- Cf. Grondin.  Op. cit., p. 37-38.
4- Ver Cotler.  Op. cit., p. 23.
5- Grondin.  Op. cit., p. 43-44.
6- Idem, p. 45-46
7- Ver Tulio Halperin Donghi.  Historia de América Latina, 3 (Reforma y disolución de los imperios ibéricos, 1750-1850).  Madrid, Alianza Editorial, 1985, p. 66-68.
8- Ver Grondin, p. 74.
9- Donghi, p. 69.
10- Grondin, 66-67.
11- Idem, 76-78.
12- Ibidem, p. 78-79.
13- Ibidem, p. 79-80.
14- Ibidem, p. 70-73.
15- Cotler, p. 49.
16- Donghi. p. 69.
17- Catarata mais alta do mundo,situada no estado de Bolívar, na Venezuela.




terça-feira, 24 de maio de 2016

Nordestinos construindo São Paulo (como sempre)


Busto de Quintino de Lacerda (1839-1898), ex-escravo natural de Sergipe, líder do quilombo do Jabaquara, em Santos (SP)

"Por volta de 1850, Robert Slenes calcula que uma proporção de até 90% de africanos bantos não era incomum nas plantações cafeeiras, em rápida expansão no Rio e em São Paulo, e que suas identidades culturais e linguísticas eram bem maiores do que a pluralidade de nações africanas de origem parecia sugerir. [...] Os cafezais continuaram, no entanto, a se expandir para leste e para oeste, após 1850, e para isto precisavam adquirir escravos.  De há muito é sabido que o tráfico interno, antes que o crescimento natural, respondeu por esta continuada expansão¹".


          O deslocamento de grandes contingentes de cativos ocorrido a partir da metade do século XIX, que ficou conhecido como tráfico interno ou interprovincial, resultou na concentração da população escrava do Brasil nas províncias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.  As zonas cafeeiras da região que hoje conhecemos como Sudeste receberam ao longo de décadas um fluxo contínuo de mão de obra de partes do Império cuja economia se mostrava menos dinâmica. Nestas, em regra, outros sistemas de exploração do trabalho substituíam gradativamente a escravidão propriamente dita, enquanto se constituíam novas modalidades de relações de dependência pessoal entre os segmentos proprietários e não proprietários.  
          Segundo Boris Fausto, no decênio "entre 1864 e 1874, o número de escravos no Nordeste declinou de 774 mil (45% do total de escravos existentes no Brasil) para 435.687 (28% do total). No mesmo período, nas regiões cafeeiras, a população escrava aumentou de 645 mil (43% do total de escravos) para 809.575 (56% do total) e só na Província de São Paulo o número de cativos dobrou, passando de 80 mil a 174.622²". Apoiando-se nos estudos do mesmo Robert Slenes que embasam a citação inicial deste texto, Sidney Chaloub aponta que cerca de 200 mil pessoas escravizadas chegaram às províncias cafeeiras a partir de 1850 por meio do tráfico interprovincial.  Somente entre 1873 e 1881 foram quase 90 mil, funcionando os portos do Rio de Janeiro e Santos como principais centros distribuidores³. 
       Ao contrário do que acontecia nas áreas de ponta da cafeicultura, boa parte dos escravos trazidos do Norte (termo que então designava todas as províncias acima de Minas Gerais) para o Sul (que se estendia de Minas até o Rio Grande do Sul) havia nascido no Brasil, em alguns casos contando com várias gerações de antepassados no país.  Isto se dava porque desde as primeiras décadas do século XIX o tráfico negreiro rumo à primeira região passara por variações significativas para baixo, ainda que tivesse ocorrido uma certa "recuperação" na fase que se sucedeu ao acordo firmado entre o Império e a Inglaterra, em 1827, no sentido de suprimir o "comércio de carne humana". Enquanto as importações totais de africanos em direção ao Norte oscilaram, entre 1817 e 1823, na faixa entre 10 e 15 mil por ano, o porto do Rio recebeu uma média anual de 18.895 escravos novos de 1811 a 1820, cifra que se elevou a 30.189 no período 1821-1830 [4].
        Em certas províncias nortistas, como o Maranhão, atingido  pela queda dos preços do algodão no mercado internacional em 1819 [5], a situação de enfraquecimento da lavoura desencorajava a compra de mais cativos.  Mesmo em Pernambuco, em cujo território entraram 1.100 africanos novos por ano entre 1839 e 1850, o percentual de escravos crioulos (expressão utilizada para nomear os negros naturais do Brasil) era elevado: o censo local de 1842 demonstrou que 54% dos cativos da província tinham nascido na África, o que nos permite presumir, em relação às décadas seguintes, uma maioria cada vez mais ampla de crioulos 6.    
          Verificando tabelas construídas a partir dos números do Censo Nacional de 1872, noto que naquele ano Minas Gerais contava oficialmente com 370.459 escravos, e assim superava o Rio de Janeiro (341.576) e São Paulo (156.612).  Além das províncias grandes produtoras de café, apenas a Bahia (167.824) ultrapassava a cifra de cem mil cativos.  Todavia, no que diz respeito às porcentagens de escravos na população total, as posições se alteravam, cabendo ao Rio uma macabra liderança (32,3%), seguido pelo Espírito Santo (27.6%), Maranhão (20,9%), São Paulo (18,7%), Minas Gerais (18,2%), Rio Grande do Sul (15,6%), Sergipe (12,8%) e, em um surpreendente oitavo lugar, a Bahia (12,2%)7.               
         Porém, muito mais do que dados estatísticos, aqui me interessam algumas questões de conteúdo. A organização das redes do tráfico interprovincial em benefício da classe senhorial do Império foi altamente danosa, se pensarmos que, sem dúvida, deu ao escravismo brasileiro vários anos de sobrevida.  Por outro lado, foram trabalhadores escravos vindos da Bahia, de Pernambuco, do Maranhão, da Paraíba, do Ceará (também do Rio Grande do Sul, fato bem menos conhecido do público em geral) os homens e mulheres que, com a progressiva redução da quantidade de africanos nas senzalas, deram uma contribuição decisiva para o crescimento da produção brasileira de café no terceiro quarto do século XIX, e mesmo depois.  
          Apesar de uma idealização construída ao longo de gerações, muitas vezes refletida nos livros didáticos, acerca dos "fazendeiros modernos" do Oeste Paulista que teriam optado pelo trabalho livre dos imigrantes europeus em detrimento da escravidão desumana, a verdade é que o mito está longe de se sustentar.  Podemos recordar, com o recurso ao historiador carioca João Fragoso, que "até as vésperas da abolição, os porta-vozes do Oeste paulista no Parlamento e nos ministérios nacionais não abandonaram a defesa do trabalho cativo 8".  Relendo em seguida o paulista Boris Fausto, constatamos que "os fazendeiros paulistas não se voltaram para o imigrante porque acreditavam nas virtudes ou na maior rentabilidade do trabalho livre, mas porque a alternativa do trabalho escravo desaparecia e era preciso dar uma resposta para o problema 9". 
          Detesto o bairrismo, e além disto precisaria ser cego e surdo para não identificar, na cidade e no estado do Rio de Janeiro, uma forte carga de preconceito imposta aos nordestinos de modo geral.  Mais do que isto, porém, têm me irritado as manifestações, que parecem crescer, pelo menos conforme o que vejo em vários espaços da Internet, provenientes de anônimos que usando nicks patéticos como "Nação São Paulo", lançam milhões de impropérios contra "invasores" do Nordeste  ou "cangaceiros". Segundo esta perspectiva obtusa, os migrantes atravessam duas ou mais divisas estaduais só para parasitar o estado "locomotiva da nação" vivendo à custa de bolsas e, é claro, eleger prefeitos "petralhas".
         Há algum tempo, assistindo a um documentário sobre genética, me diverti quando o cientista norte-americano que dirigia certo laboratório disse qualquer coisa como "rio bastante dos racistas quando imagino o que eles falariam se vissem o que eu descubro aqui dentro".  Ele se referia, entre outros casos, à trajetória de sua própria família.  Ruivo, de pele muito branca e olhos azuis, encontrou ao fazer a análise de seu DNA uma dose considerável de genes ligados às populações indígenas dos Estados Unidos.  Intrigado, consultou parentes idosos e teve conhecimento de ancestrais cherokees propositalmente esquecidos por seus avós.  
          Penso o quanto seria engraçado ver mussolinistas de quinta como "Nação São Paulo" achando entre seus trisavós quilombolas baianos do Jabaquara.  Eles merecem, e eu não lhes negaria o privilégio.                 
                      
         

Notas:

1- Hebe Maria Mattos.  Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil Século XIX.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 108. 
2- História do Brasil.  São Paulo: Edusp, 1998, p. 204. 
3- Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte.  São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 43.
4- Ver Manolo Florentino.  Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro.  São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 65-66.
5- Ver Maria Januária Vilela Santos.  A Balaiada e a insurreição de escravos no Maranhão.  São Paulo: Ática, 1983, p. 41.
6- Cf. João Luís Fragoso.  O Império Escravista e a República dos Plantadores.  In: História Geral do Brasil/org. Maria Yedda Linhares.  Rio de Janeiro: Campus, 1990, p. 171. 
7- Ver História da Vida Privada no Brasil 2/org. Luiz Felipe de Alencastro.  São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 478-479. 
8- Ver Fragoso, op. cit., p. 165.
9- Fausto, op. cit., p. 203.
  

sexta-feira, 20 de maio de 2016

El Zorro: uma leitura coxinha



        Retornei ontem, enquanto era obrigado a esperar pela assistência técnica da Oi, ao meu arquivo morto de Maricá, que cada vez mais mostra o quanto está vivo.  Aliás, na semana passada fiquei sabendo pelo amigo Jorge Dias, arquivista do Museu Nacional, que a expressão "arquivo morto" é uma impropriedade.  Devemos dizer arquivo permanente!
         Resgatei das velhas estantes El Zorro, em versão paradidática da Editora Scipione para alunos de curso de espanhol.  Não me lembro a razão da compra, visto que jamais fiz matrícula em qualquer curso de espanhol.  Mas continua lá, em excelente estado, apesar da impressão datada de 2000.  Vários dos diálogos do livreto me recordaram as sátiras virtuais que mostram Cristo, depois de emitir algumas de suas mais célebres máximas, sendo atacado pelos ouvintes com falas do tipo "subversivo, vai pra Cuba!" ou "não adianta dar o peixe, tem que ensinar o pobre a pescar".
      Imaginei então como poderia ser a leitura simultânea e comentada de El Zorro por dois conservadores irados, um deles mais velho, com seus sessenta e cinco anos talvez, a quem dei o nome de Canrobert da Matta e Motta, o outro bem mais novo, um discípulo trintão chamado Leandro Fiúza. Pensei de início em produzir uma sequência de memes, mas isto me prenderia por muitas horas no Photoshop.  Assim, decidi apenas escanear parte de treze páginas, contrapondo a cada trecho os "comentários" da dupla coxinha.   
         Adaptações inspiradas, talvez eu nem precise dizer, são bem-vindas.         







Canrobert da Matta e Motta- Eu te digo outra vez que quem rouba é sempre bandido, não importa de quem roube!  Esse papo de justiça social é coisa de invejoso e preguiçoso! 

Leandro Fiúza- Também acho: o pior tipo de ladrão é esse, que não rouba pra si mesmo, pra trocar de carro, pra mandar a filha pra Disney, pra comprar tênis, que seja, mas pro Foro de São Paulo!





LF- Essa história da esquerda de dar terra pra índio, quilombola e sem-terra desgraça cada vez mais a vida de quem só quer produzir! 

CMM- E tem sempre uns padrecos vermelhos junto!  Por isso que de uns tempos pra cá o Malafaia é meu segundo ídolo, abaixo só do capitão Bolsonaro!




CMM- Tá vendo? O Don Diego é mais um desses caras da esquerda caviar, como já dizia aquele garoto que a Veja mandou embora, acho que se chama Rodolfo Constantino.

LF- O safado deve tomar só vinho caro, comer escargot e tirar férias em Paris, no meio das sedas e dos frufrus, enquanto diz que defende os miseráveis!  O único Diogo bom é o Mainardi, que não aguentou o avanço da comunização e saltou fora do Brasil!





LF- Os comunas não respeitam nada, pra mim quem ataca um homem de farda no exercício da função tem que sofrer a pena de morte na mesma semana!

CMM- Note que são três as coisas que eles mais odeiam: a Família, a Igreja e as Forças Armadas!  Senta a borracha nele, González!







CMM- Veja só: é por isso que a esquerda quer o desarmamento, desde a época do psicopata carequinha, o Vladimir Lênin!

LF- Exatamente: o cidadão de bem sem sua arma de fogo fica à mercê da bandidagem!  O delinquente que mata e estupra como quem pega Coca-Cola na geladeira deita e rola!







LF- O tempo todo eles atacam a família, o casamento tradicional!  O cara vai casar só pra poder herdar o dinheiro do pai e entregar pra subversão continental!

CMM- Enquanto isso, vão incentivando a tal da ideologia de gênero, o casamento gay e outras aberrações!  Daqui a pouco só vai ter chinês, hindu, africano e turco nesse mundo, pois ninguém mais quer ter filho do lado de cá!



LF- Novelinha sem vergonha de comunista que exalta a criminalidade, ao invés do trabalho! A mocinha esquerdista de família rica apaixonada pelo marginal!  O nome disso é Síndrome de Estocolmo.

CMM- É rapaz, o Avancini e o Dias Gomes foram pro colo do capeta, porém deixaram os secretários! Mas foi por isso que o México perdeu aquelas terras todas pros americanos.  Enquanto os governantes mexicanos deixavam os bandoleiros soltos, fazendo o que queriam, os americanos eram sérios, mandavam essa ralé toda pra forca!





LF- Comuna não respeita mesmo nada! Chutar a bunda de um jovem oficial!  Tem mais é que morrer!

CMM- Eles sabem, em todos os países, que o Exército é a reserva moral da Nação, que guarda os verdadeiros valores da Pátria, então ficam cheios de ódio, querem destruir e desmoralizar a qualquer custo!








CMM- Quem sabia da vida desses defensores de bandido de batina era o Nelson Rodrigues, que há sessenta anos atrás já descia a lenha nos padres de passeata brasileiros, que eram ainda mais vermelhos do que esse frei.

LF- Isso, e enquanto a Teologia da Libertação ajuda transformar o país numa Cuba gigante a Igreja Católica vai perdendo milhões de fiéis e as catedrais viram museus! 






CMM- Que maneira peculiar é essa?  O Don Diego é uma bichona, um queima rosca, faz meinha com o criado índio que não pode contar os podres dele depois!

LF- É por isso que ele acha o casamento “aburrido”!  A não ser o casamento entre pessoas do mesmo sexo!!!





CMM- Era assim que faziam o Che Guevara, o Lamarca e o Marighella: justiça sumária contra as pessoas distintas!  A alma de um comuna é sempre assassina!

LF- Onde os comunas tomam o poder todo homem de bem está praticamente condenado ao Gulag ou ao paredón!  Depois da matança e do açoite, eles botam qualquer um pra ser juiz, reitor de universidade, diretor de hospital! Isso quando não botam motorista de ônibus e torneiro mecânico na presidência da República!  






LF- É por essas e outras que eu digo que a esquerdalha é hipócrita.  Eles sempre se lembram da meia dúzia de terroristas que o Brilhante Ustra e o Fleury esfolaram, o que foi muito pouco...

CMM- É o que eu falo! Mas sempre se esquecem dos bons cidadãos que os amiguinhos deles executaram a sangue frio, até em fila de banco!  Se eles fizessem a revolução matavam setenta milhões de brasileiros, igualzinho à União Soviética do Stalin!




CMM- Rapaz, o governador fingia que era do lado da ordem, mas soltou o bandido e confraterniza com ele na mansão!

LF- Mais um bolivariano de bosta, e foi desse jeito que uns vinte países da América Latrina caíram nas garras do comunismo!  Isso enquanto os Estados Unidos continuam com aquele muçulmano comunista na Casa Branca, o senador mais à esquerda que o Congresso de lá já teve, um cara que nem nasceu no país!       

domingo, 15 de maio de 2016

Um futuro retrógrado




“Vejo bem claro agora o nosso erro e, embora reconhecendo as queixas que a mulher tem do macho, também reconheço que sem o concurso dele nada valeríamos no mundo.  Bastou um momento de divórcio para que a raça branca se visse nesta horrível situação: apeada do domínio e à mercê de uma raça de pitecos que, essa sim, tem contas terríveis a justar conosco...”¹


        Não julgue, caro leitor, que o título deste artigo diz respeito às minhas expectativas quanto ao governo Temer, embora seja quase inevitável que eu as exponha em breve.  Tampouco a citação inicial foi recortada do último manifesto de alguma militante antifeminista empenhada em unir seus esforços aos de “white pardos” arianistas de Campinas, São Bernardo do Campo ou Niterói.    
Neste começo, somente a expressão “raça de pitecos” é exatamente o que parece.  Mesmo assim, a ofensa não saiu do teclado de alguma coxinha ensandecida, e sim da caneta do grande escritor José Bento Monteiro Lobato (1882-1948). Insisto: nada de conclusões apressadas. Monteiro Lobato, ao que se sabe, jamais construiu um alter ego feminino como a Suzana Flag de Nelson Rodrigues.
As duas frases transcritas foram extraídas do discurso de Miss Astor, uma das três principais lideranças políticas dos Estados Unidos no ano de 2228, personagem do romance O Presidente Negro ou O Choque das Raças (São Paulo: Clube do Livro, 1945).  Não descreverei o contexto da fala, muito menos o enredo completo da obra.  Lembro-me que um excelente professor de Português, Mário Jesus Alexandre, me ensinou a gostar de Literatura Brasileira na distante temporada de 1981, mas lamento até hoje o dia em que o mestre resumiu, com talento, a história de Dom Casmurro.  Foi decepcionante, já na idade adulta, ler o melhor livro de ficção produzido no Brasil sabendo tudo que iria acontecer. Compre, quem tiver curiosidade, O Presidente Negro, que a propósito está para Dom Casmurro, na minha opinião, como a seleção brasileira dos fatídicos 7 x 1 para a que conquistou o tricampeonato mundial no México.
Comprei-o pela Estante Virtual há dois ou três anos, a preço irrisório, a fim de entender um pouco mais sobre a discussão, na época bem exaltada, acerca do racismo presente nos escritos de Lobato.  Entretanto, alguma sobrecarga de trabalho, ou talvez o interesse maior por outra leitura, me fez relegar O Presidente Negro ao arquivo morto, em armário quase abandonado de Maricá.  Casualmente, reencontrei-o neste final de semana e resolvi ler.  Já tive em mãos artigos acadêmicos que estabelecem as conexões intelectuais entre Monteiro Lobato e teóricos eugenistas como Artur Neiva e Renato Kehl.  Apesar disto, o conteúdo do livro não deixou de me surpreender, e sem dúvida para mal.
Como já indiquei, O Presidente Negro é contemporâneo dos embates finais da Segunda Guerra Mundial.  O prefácio do editor Mario Graciotti é datado de 1º de abril de 1945.  O protagonista Ayrton Lobo, em certa passagem, faz alusão ao automóvel Ford que adquiriu, apesar da escassez de recursos que enfrentava, como um “novo pecúlio, com tanto esforço acumulado depois do desastre germânico” (O Presidente Negro, p. 11).  Porém, ao contrário de um Oliveira Viana, o mulato arianista que praticamente varreu as teses racistas de seus ensaios após a derrocada do Eixo, Monteiro Lobato se manteve alinhado com os ideais de eugenia e, em O Presidente Negro, parece obcecado pela expectativa, relativamente comum entre os eugenistas das primeiras décadas do século XX, de favorecer ou pelo menos "torcer" pelo desaparecimento, identitário ou mesmo físico, dos negros do continente americano.
Um diálogo entre Ayrton Lobo e Miss Jane (p. 81-82) resgata o choque entre duas vertentes do pensamento racista, a “otimista”, que previa o fim do negro pela diluição gradativa de seu patrimônio genético, e a “pessimista”, que pretendia, tendo como inspiração o modelo norte-americano, investir nas políticas de segregação.  Não se estabelece, nestes trechos ou em qualquer outra parte do livro, qualquer contraponto ao supremacismo ariano, e os estereótipos “raciais” empregados pelo autor chegam a depor contra sua reconhecida inteligência.


- A nossa solução foi admirável.  Dentro de cem ou duzentos anos terá desaparecido por completo o nosso negro em virtude de cruzamentos sucessivos com o branco.  Não acha que fomos felicíssimos na nossa solução?
(...)
- Não acho, disse ela.  A nossa solução foi medíocre.  Estragou as duas raças, fundindo-as.  O negro perdeu as suas admiráveis qualidades físicas de selvagem e o branco sofreu a inevitável piora de caráter, consequente a todos os cruzamentos entre raças díspares.  Caráter racial é uma cristalização que às lentas se vai operando através dos séculos.  O cruzamento perturba essa cristalização, liquefa-a, torna-a instável.  A nossa solução deu mau resultado.
(...)
- Não há mal nem bem no jogo das forças cósmicas.  O ódio desabrocha tantas maravilhas quanto o amor.  O amor matou no Brasil a possibilidade de uma suprema expressão biológica.  O ódio criou na América a glória do eugenismo humano.


Mais adiante (p. 90-91), um espantado Ayrton descobre que o Brasil dos séculos vindouros tinha dado origem a dois novos países: o sul arianizado, constituído pelos estados da bacia platina, havia se unido a Argentina, Paraguai e Uruguai.  As regiões tropicais, impossibilitadas de dar solução ao “erro inicial da mistura de raças”, permaneciam unidas “a sofrer o erro e suas consequências”.  A culpa destas mazelas é lançada sobre o elemento português, argumento que se repete em outros textos de Monteiro Lobato². 


-Mas por que dividiram o Brasil? perguntei ainda mal consolado.  Era só povoar o norte da mesma maneira que o sul...
-Um país não é povoado como se quer, senhor Ayrton, ou como apraz aos idealistas.  Um país povoa-se como pode.  No nosso caso foi o clima que estabeleceu a separação.  Dos europeus só os portugueses se aclimavam na zona quente, onde, graças às afinidades com o negro, continuaram o velho processo de mestiçamento, acabando por formar um povo de mentalidade incompatível com a do sul.


           Conhecedora do futuro, Miss Jane também mostra a Ayrton os largos progressos obtidos pela eugenia no Terceiro Milênio (p. 87-88), em particular nos Estados Unidos.  O tom apologético adotado por Monteiro Lobato é óbvio, e se associa a uma fantasia de livrar a Terra da maior parte de sua população.


-  (...) A lei Owen, como era chamado esse Código da Raça, promoveu a esterilização dos tarados, dos malformados mentais, de todos os indivíduos em suma capazes de prejudicar com má progênie o futuro da espécie.  Só depois da aplicação de tais leis é que foi possível realizar o grandioso programa de seleção que já havia empolgado todos os espíritos.  Os admiráveis processos hoje em emprego na criação dos belos cavalos puro-sangue passaram a reger a criação do homem na América.
-E lá se foram os peludos! ...
-Exatissimamente... Desapareceram os peludos- os surdos-mudos, os aleijados, os loucos, os morféticos, os histéricos, os criminosos natos, os fanáticos, os gramáticos, os místicos, os retóricos, os vigaristas, os corruptores de donzelas, as prostitutas, a legião inteira de malformados no físico e no moral, causadores de todas as perturbações da sociedade humana.


             Dando continuidade à fala de Miss Jane, o autor deixa transparecer apreensão diante da possibilidade de um futuro marcado pelo predomínio numérico dos negros; em poucas linhas, Monteiro Lobato realiza uma transposição do quadro que por certo visualizava no Brasil dos anos 40 para a América do Norte fictícia do século XXIII (p. 88).


- Apesar de submetida aos mesmos processos restritivos dos brancos, a raça negra começou desde logo a apresentar um índice mais alto de crescimento.  A proporção do negro puro relativa ao branco subiu a um quinto, a um quarto, a um terço e por fim chegou à metade... Quer isso dizer que o binômio racial, desprezado na era do crescimento imigratório e descurado no início do regímen seletivo, passou a entrar na fase aguda do “resolve-me ou devoro-te”.


                Tamanho horror, é claro, precisava ser exorcizado, o que Lobato torna explícito pela voz de um dos ministros do 87º presidente dos Estados Unidos, Mr. Kerlog, então prestes a perder a reeleição para o candidato negro Jim Roy (p. 121). A “solução negra” mencionada abaixo seria a divisão do país em duas partes, o norte branco e o sul negro. 


-É impossível protelar por mais tempo com paliativos ilusórios a solução do binômio racial.  Ou expatriamos os negros já, ou dentro de meio século seremos forçados a aceitar a solução negra, asfixiados que estaremos pela maré montante do pigmento.


             Emerge do livro uma irritante misoginia.  Monteiro Lobato, que também era bastante hostil ao legado da Revolução Francesa, chega a emitir um comentário depreciativo (p. 134) sobre os movimentos que, na época da sua juventude, haviam lutado em prol do voto feminino.


Um tropel reboou nos corredores.  Era o bando elvinista que entrava com miss Astor à frente.  Kerlog empalideceu.  Os extremismos daquela facção eram tantos que ele previu qualquer coisa semelhante aos assaltos histéricos da antigas sufragistas britânicas.  E apertou o botão da campainha de alarma, chamando a postos os guardas.


              Coerentemente, digamos assim, o criador do Marquês de Rabicó constrói uma imagem genérica da mulher como ser irreflexivo que, ao se intrometer no mundo da política, só pode gerar desastres.  Logo depois de viabilizar a vitória do candidato Jim Roy por puro ressentimento contra seus maridos, as eleitoras norte-americanas se arrependem unanimemente e voltam a apoiar Kerlog (p. 130).


Depois de 87 presidentes brancos surgia o primeiro negro, eleito por 54 milhões de votos.  Miss Astor obtivera 50 milhões de meio e Kerlog 50 milhões e pico.  Apesar de disporem de um eleitorado quase duplo do contrário, os brancos perdiam a presidência graças à cisão entre os dois sexos provocada pelo elvinismo...
Foi instantânea e radical a mudança que se operou nas mulheres.  Apreenderam num relance todas as consequências possíveis do golpe negro e tomaram-se de furiosa crise de sentimentalismo amoroso pelo homem branco, ser mau, opressivo, injusto, não havia dúvida, mas, afinal de contas o marido milenar da mulher.  Mal com ele, pior sem ele.  Estava tão longe o hipotético sabino...


     
            Apesar da notória associação entre a figura de Monteiro Lobato e um determinado tipo de nacionalismo, O Presidente Negro também é uma obra americanófila.  Enquanto a velha Europa é apontada como futuro túmulo do homem branco (p. 52), os Estados Unidos despontam como uma espécie de farol da raça, destinado a concentrar os melhores tipos da humanidade (p. 79-80). 


-Por que catástrofe?  Tudo que é tem razão de ser, tinha forçosamente de ser; e tudo que será terá razão de ser e terá forçosamente de ser.  O amarelo vencerá o branco europeu por dois motivos muito simples: come menos e prolifera mais.  Só se salvará da absorção o branco da América.
(...)
-E o mundo americano não podia deixar de ser assim, senhor Ayrton, continuou ela [Miss Jane].  Note apenas: que é a América senão a feliz zona que desde o início atraiu os elementos mais eugênicos das melhores raças europeias?  Onde a força vital da raça branca, senão lá?
(...)
Ondas sucessivas dos melhores elementos europeus para lá se transportaram.  Depois vieram as leis seletivas da emigração, e as massas que a procuravam, já de si boas, viram-se peneiradas ao chegar.  Ficava a flor.  O restolho voltava...



            Entretanto, piores do que as teorias raciais, ilustradas por “chutes” que podem ser classificados como pura Antropologia de botequim, são alguns dos delírios ficcionais de Monteiro Lobato.  A certa altura da narrativa, Miss Jane conta a Ayrton Lobo (p. 112-113) que a tecnologia do futuro resolvera o “problema” da tez escura dos negros, ainda que restassem outras características fenotípicas indesejáveis:


-Havia uma pedra no sapato americano: o problema étnico.  A permanência no mesmo território de duas raças díspares e infusíveis perturbava a felicidade nacional.  Os atritos se faziam constantes e, embora não desfechassem como outrora nas violências da Ku Klux Klan, constituíam um permanente motivo de inquietação. A ideia do expatriamento para o vale do Amazonas tinha um ponto fraco: só podia ser voluntária e o negro não se mostrava inclinado a trocar a cidadania americana por outra qualquer.  O processo científico de embranquecê-los aproximava-os dos brancos na cor, embora não lhes alterasse o sangue nem o encarapinhamento dos cabelos.  O desencarapinhamento constituía o ideal da raça negra, mas até ali a ciência lutara em vão contra a fatalidade capilar.  Se isso se desse, poderia o caso negro entrar por um caminho imprevisto, a perfeita camouflage do negro em branco. 


               
          Retornando ao século XXIII, notamos que enquanto Mr. Kerlog buscava reverter no campo da política a ascensão iminente dos negros ao poder central, um homem de ciência contribuía para seu projeto de maneira decisiva (p. 167-168).


John Dudley havia resolvido enfim o difícil problema capilar.  Os raios Ômega, de sua descoberta, tinham a propriedade miraculosa de modificar o cabelo africano.  Com três aplicações apenas o mais rebelde pixaim tornava-se não só liso, como ainda fino e sedoso com o cabelo do mais apurado tipo de branco.  Os raios Ômega influíam no folículo e destruíam nele a tendência de dar forma elíptica ao filamento capilar.  Vencido este pendor para a forma elíptica, cessava o encarapinhamento, que não passa de mera consequência mecânica.
(...)
Já o pigmento fora destruído e, embora o esbranquiçado da pele não se revelasse cor agradável à vista, tinham esperança de obter com o tempo a perfeita equiparação cutânea.  Vir agora, e assim de chofre, o resto, o cabelo liso e sedoso, a supressão do teimoso estigma de Cam, era, não havia dúvida, sinal de um fim de estágio.  Reduzidas desse modo as duas características estigmatizantes da raça, o tipo áfrico melhorava a ponto de em numerosos casos provocar confusão com o ariano.  Entre a miss naturalmente branca e loura e a negra despigmentada e omegada pelo processo Dudley, era quase nula a diferença.



             A estupidez das mulheres não é a única generalização sugerida pelo livro.  Os negros que se mobilizavam para desmontar o multissecular domínio branco  sobre a América do Norte eram os mesmos que, por unanimidade, desejavam se converter em perfeitas figuras caucásicas (p. 169 e 181).



As negras, sobretudo, viviam num perpétuo sorrir-se a si próprias, metidas dentro de um céu aberto.  Passavam os dias no espelho, muito derretidas, penteando-se a despenteando-se gozosamente.  O seu enlevo ao correrem as mãos pelas macias comas omegadas levava-as a esquecer o longuíssimo passado da humilhante carapinha.  Brancas, afinal!  Libertas afinal do odioso estigma!
(...)
A fúria desencarapinhante dos negros fê-los se esquecerem completamente da política.  Datava de três meses a entrada em cena dos abençoados raios Ômega e pelas estatísticas oficiais 97% da população negra já estava omegada.  Mais uma semana, e os últimos postos se fechariam por falta de carapinha a alisar.



Lobato, nas derradeiras páginas da obra, alcança o clímax da fantasia.  Sem as inconveniências da miscigenação e sem derramamento de sangue, Mr. Kerlog  e seus aliados acham o meio infalível para fazer dos Estados Unidos uma nação exclusivamente branca (p. 190-191).


Meses depois do aparecimento dos raios Ômega o índice da natalidade negra caiu de chofre.  Março, precisamente o nono mês a datar da abertura dos primeiros postos desencarapinhantes, acusava uma queda de 30%.  Esta porcentagem subiu ao dobro em abril e chegou a 97 em maio.  Em junho as estatísticas só registravam 122 negrinhos novos.
(...)
O problema negro da América está pois resolvido da melhor maneira para a raça superior, detentora do cetro supremo da realeza humana.



                Apesar da superficialidade desta pesquisa, posso sem dúvida engrossar o coro dos que, se reportando a um período em que o Racismo Científico ainda desfrutava de imenso prestígio, veem em Monteiro Lobato um autor mais racista do que o homem médio de seu tempo.  Também era machista e tinha (piedade não é o meu forte) espírito de colonizado.  Isto não significa que partirei agora para a casa de minha mãe para incinerar os volumes (ainda hoje em bom estado) de Caçadas de Pedrinho e Reinações de Narizinho que me entretiveram por muitas horas na infância. Levaria, de imediato, merecidas paneladas.  Tampouco sugerirei a qualquer direção de escola um boicote ao conjunto da obra de Lobato.
           Somente quero afirmar que toda blindagem é nociva e que toda mitificação de indivíduos, vivos ou mortos, tende à fraude.  Toda reputação pode ser discutida, e, em particular, todos os heróis, especialmente os autoproclamados e os “pais da pátria” (seja ela qual for), devem ser submetidos a críticos realistas e imunes ao ufanismo. 


Em tempo:

Este texto é dedicado à minha filha Isabela, feminista de carteirinha, negra, cientista social iniciante, mas que em breve combaterá muito, e sem tréguas, o conservadorismo decrépito que julga ainda poder dar as cartas na política brasileira e fazer o país retornar às relações sociais vigentes na Era Collor.

                               

1- Ver O Presidente Negro ou O Choque de Raças, p. 131.
2- Entre outras pérolas de racismo tosco, Lobato resumiu o jornalismo carioca, em 1938, na alegoria do "mulatinho fazendo o jogo do galego".


   

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Soneto Petrarquiano¹



Um jornal velho te recordará
Das pilantragens daqueles dias
Fiz campanha pro gato angorá
Depois fechei c’um tal de Farias

Fui pau mandado de um tourinho
Porém do tipo que mais emerge
Disto gostou o monstro marinho
Caiu-me no colo a Telerj

Virei de vez homem de esquemas
Escrevi um belo aditivo
Que me carregou lá pro tribunal

Se tens padrinhos, então não temas
Confessem todos como sou vivo

Engavetaram na cara de pau

1- É aquele que contém quatro estrofes, sendo dois quartetos e dois tercetos.  Escrito por Gustavo Moreira ou outros amadores, costuma sair meio estropiado, mas, ainda assim, petrarquiano sempre é melhor do que cosentino!

terça-feira, 3 de maio de 2016

Um desabafo despretensioso



         Meu falecido orientador Théo Lobarinhas Piñeiro (1955-2015), quando exposto a certas pérolas dos doutores pós-modernos que cada vez mais infestam as universidades brasileiras, costumava fazer uso de um divertido bordão: -Para eles, o concreto não existe!  O riso dos amigos e orientandos era compulsório.  Sou forçado a reconhecer, por outro lado, que este tipo de percepção é uma via de mão dupla.  Há alguns anos, frequentei um curso que se revelou decepcionante: a professora, reconhecida por mim no começo da década de 1990 como lúcida especialista em História Política, tinha enveredado no Terceiro Milênio pelos caminhos de um delirante pós-modernismo.  Mantive frequência integral, me comportando com toda a cordialidade possível, mas ela logo percebeu que eu não embarcava nas suas viagens pela maionese e não me empolgava com suas realidades virtuais.  Durante uma sessão vespertina, a veterana historiadora me fitou, soltou um suspiro de tédio e disparou: -Não adianta, você é todo do concreto, né?
            Infelizmente, viajar na maionese não é privilégio de intelectuais pós-modernos.  No final da tarde de hoje, decidi percorrer a pé os cinco quilômetros e meio que separam o Museu Nacional de minha casa; parte da batalha inglória contra os quilos em excesso e a taxa limítrofe de colesterol.  Já no último quinto do trajeto, na esquina das ruas Conde de Bonfim e Pinto de Figueiredo, aguardava o sinal verde para pedestres quando, na direção contrária, apareceu um grupo grande de estudantes da rede municipal, todos uniformizados, totalizando talvez cinquenta adolescentes. 
          Nada faziam que mereça nota: no máximo, produziam muito barulho, fato mais do que compreensível em se tratando de gente situada entre os treze e os quinze anos.  Não ouvi sequer um palavrão trivial, ninguém parecia querer brigar, mas, antes que todos pudessem atravessar, uma voz feminina à direita tratava meus ouvidos como latrina: -Abriram a porta da jaula!  Um bom conhecedor do Rio de Janeiro diria, com precisão, que andando pelo coração da conservadora Tijuca estou sujeito diariamente a incidentes do gênero. 
Porém, ao virar o pescoço na direção da criatura, não enxerguei uma dondoca tijucana insolente, ou uma representante incontestável das oligarquias porcas que os bajuladores de plantão preferem tratar como “elites brasileiras”.  Era uma mulher de cinquenta e tantos anos, pequena, de cabelo mal pintado, roupas baratas e surradas, situada a algumas dezenas de léguas do fenótipo caucasiano.  O sábio indiano Vasyayana, autor do Kama Sutra, registrou com acerto naquela obra que “os sinais externos são enganosos”, mas, caso me visse obrigado a tentar desvendar o cotidiano da desagradável transeunte, apostaria que se tratava de uma pessoa de classe C, sobrevivendo a duras penas em bairro de classe média numa casa herdada de pais ou avós mais favorecidos em termos de renda.
Não tenho prazer em citar o ex-deputado e ex-presidiário Roberto Jefferson, mas a “reacionária sem capital” conseguiu mexer com meus instintos mais vis.  Já estava, sem dúvida, em estado de irritação silenciosa, derivada do conhecimento de certas movimentações políticas que ocorrem, digamos assim, no meu quintal, e o primeiro impulso foi o de despejar, bem alto, generosa leva de impropérios.  Foi bom ter desistido: seria uma reação muito desproporcional, e talvez a vizinhança se indignasse com tanta agressividade contra uma senhora à primeira vista frágil.
Também poderia, se estivesse com a cabeça menos quente, tentar trazê-la por instantes para o mundo real, demonstrando em poucas frases que a única distância visível entre a “turba ameaçadora” que cruzava a rua no sentido oposto e sua vítima em potencial era o contraste entre as idades.  Isto me renderia senhoras gargalhadas, nesta noite e no almoço de amanhã, além, é claro, de ser um retorno justo a tamanha imbecilidade.  Mas decidi, em décimos de segundo, deixar o silêncio como única resposta, e ela também, não encontrando na minha expressão a solidariedade que desejava, ficou para trás sem falar mais nada.
Não me considero um pessimista; no máximo, um fatalista que vê o mundo com boa dose de crueza.   Entretanto, a circunstância de ter observado ou participado de centenas, talvez milhares, de situações como a de hoje me leva a nada esperar da pequena burguesia. Também nada espero, o que é pior, de uma falsa pequena burguesia, bem numerosa, empenhada em ostentar posições aristocráticas ilusórias, cuja face mais caricata se expressa na formação de células neonazistas das periferias do Rio e de São Paulo.
       Penso que compreendo cada vez melhor qual era o sentimento de Marilena Chauí quando proferiu a desastrada sentença “eu odeio a classe média”, tão intensamente explorada pela histriônica fauna virtual de fãs da “revista” Veja.  Conheço, é claro, e poderia listá-los em muitas laudas consecutivas, indivíduos de classe média, média alta, média média, média baixa, “emergentes”, que destoam em suas palavras e ações do perfil descerebrado da turba [aqui sem necessidade de aspas] que elege Bolsonaros com votações recordes. Quanto ao resto, não me causará qualquer surpresa quando for em peso à Vieira Souto (e à Conde de Bonfim!!!) em apoio à revogação da Lei Áurea.