A Assembleia Geral das Nações Unidas, em sessão de plenário ocorrida no dia 12 de novembro de 1974, praticamente transformou a África do Sul do apartheid em um país pária sob o ponto de vista diplomático. Por ampla maioria, foi aprovada a seguinte decisão:
"Baseado na consistência com que a Assembleia Geral tem regularmente recusado aceitar as credenciais da delegação da África do Sul, pode-se legitimamente concluir que a Assembleia Geral iria, do mesmo modo, rejeitar as credenciais de qualquer outra delegação autorizada pelo Governo da República Sul-Africana a representá-lo, o que testemunha dizer-se, em termos explícitos, que a Assembleia Geral se recusa a permitir que a delegação da África do Sul participe em seu trabalho".
Os votos se distribuíram da seguinte forma:
Sim
Afeganistão, Albânia, Argélia, Argentina, Bahrein, Bangladesh, Barbados, Butão, Botswana, Bulgária, Burma, Burundi, Bielorrúsia, República Centro-Africana, Chade, China, Congo, Cuba, Chipre, Checoslováquia, Daomé, Iêmen Democrático, Egito, Guiné Equatorial, Etiópia, Gabão, Gâmbia, República Democrática Alemã, Gana, Granada, Guiana, Guiné Bissau, Haiti, Hungria, Índia, Indonésia, Iraque, Costa do Marfim, Jamaica, Jordânia, Quênia, República Khmer, Kuwait, Laos, Líbano, Libéria, República Líbia Árabe, Madagascar, Malásia, Mali, Malta, Mauritânia, Ilhas Maurício, Mongólia, Marrocos, Nepal, Nigéria, Níger, Omã, Paquistão, Panamá, Peru, Filipinas, Polônia, Qatar, Romênia, Ruanda, Senegal, Serra Leoa, Cingapura, Somália, Sri Lanka, Sudão, Suazilândia, República Síria Árabe, Tailândia, Togo, Trinidad Tobago, Tunísia, Uganda, Ucrânia, União Soviética, Emiratos Árabes, República Unida dos Camarões, República Unida da Tanzânia, Alto Volta, Iêmen, Iugoslávia, Zaire, Zâmbia.
Abstenções
Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, República Dominicana, Equador, Fiji, Grécia, Guatemala, Irã, Japão, Lesoto, Malawi, México, Paraguai, Portugal, Espanha, Turquia, Venezuela.
Não
Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Costa Rica, Dinamarca, El Salvador, Finlândia, França, República Federal Alemã, Islândia, Irlanda, Israel, Itália, Luxemburgo, Holanda, Nova Zelândia, Nicarágua, Noruega, Suécia, Reino Unido, Estados Unidos.
Nota: Os dados factuais sobre as votações na ONU citadas nesta postagem e na anterior constam do livro Israel-África do Sul: a marcha de um relacionamento, organizado em 1976 por Richard P. Stevens e Abdelwahab M. Elmessiri, publicado originalmente por New World Press sob o título Israel-South Africa: The Progression of a Relationship.
Temos neste episódio mais uma comprovação do cinismo e das contradições do autodenominado "Mundo Livre", disposto a conceder sobrevida ao apartheid. Colocando-se contra a decisão, Estados Unidos e Reino Unido arrastaram consigo todos os demais fundadores da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN): França, Itália, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Dinamarca, Noruega, Islândia e Canadá. Mesmo Portugal, que no decorrer da Revolução dos Cravos acabara de reconhecer o direito das colônias à autodeterminação e a independência da Guiné Bissau, cedeu ao compromisso com o poderoso bloco militar, assim como a Alemanha Federal, que ingressou na OTAN em 1955. Os dois membros restantes da organização, Grécia e Turquia, se abstiveram.
Em contraste, notamos que virtualmente todos os países socialistas, filossocialistas e não alinhados voltaram a condenar inequivocamente o regime racista sul-africano. Entre os votos "sim", visualizamos as repúblicas soviéticas, acompanhadas por seus aliados do Pacto de Varsóvia (Polônia, Alemanha Oriental, Romênia, Hungria, Bulgária e Checoslováquia) e pelos outros países europeus cujos governos possuíam orientação marxista, a Albânia e a Iugoslávia. Encontramos igualmente na lista do "sim" China, Cuba, Mongólia, nações africanas e asiáticas cuja independência decorreu de revoluções nacionalistas ou de esquerda (Argélia, República Popular do Congo, Daomé, Iêmen do Sul, Etiópia), a Índia e a Líbia de Muammar Kadhafi (1942-2011).
O mundo muçulmano, com as exceções do Irã do xá e da Turquia, também cerrou fileiras contra o apartheid: além de países já citados, Afeganistão, Bahrein, Bangladesh, Egito, Iraque, Indonésia, Jordânia, Kuwait, Líbano, Malásia, Mauritânia, Marrocos, Omã, Paquistão, Qatar, Somália, Sudão, Síria, Tunísia, Emiratos Árabes e Iêmen votaram "sim". O mesmo ocorreu com a África Subsaariana, excluindo o Malawi, ao qual já nos referimos na postagem de ontem, e o Lesoto, incrustado na África do Sul, de que dependia por completo em termos econômicos; Botswana, Burundi, República Centro-Africana, Chade, Guiné Equatorial, Gabão, Gâmbia, Gana, Guiné Bissau, Costa do Marfim, Quênia, Libéria, Madagascar, Mali, Ilhas Maurício, Nigéria, Níger, Ruanda, Senegal, Serra Leoa, Suazilândia, Togo, Uganda, Camarões, Tanzânia, Zaire e Zâmbia reprovaram mais uma vez o segregacionismo.
Apreciando os votos latino-americanos, é fácil perceber que as nações então sujeitas às ditaduras de direita implantadas sob o pretexto do anticomunismo se viram empurradas para uma covarde abstenção, a começar pelo Brasil de Ernesto Geisel (1907-1996). A mesma postura foi adotada pela Bolívia de Hugo Banzer (1926-2002), pelo Chile de Augusto Pinochet (1915-2006), pelo Paraguai de Alfredo Stroessner (1912-2006), pela República Dominicana de Joaquín Balaguer (1906-2002) e pelo Equador de Guillermo Rodríguez. A Nicarágua de Anastasio Somoza Debayle (1925-1980) voltou a optar pelo "não". Países com sistemas representativos frágeis, como a Guatemala e El Salvador, sob forte pressão de militares adeptos da doutrina da contrainsurgência, também se esquivaram de votar contra a África do Sul. Entre os regimes conservadores ditatoriais e semiditatoriais da região, somente o Haiti da família Duvalier se posicionou pelo "sim", diante da inviabilidade de justificar perante seu povo a subjugação da maioria negra sul-africana. Mesmo entre os governos plenamente constitucionais, Colômbia, Venezuela, México e Costa Rica não ousaram desafiar os interesses norte-americanos e europeus ocidentais. Votaram "sim' apenas a Argentina, o Peru e pequenas repúblicas caribenhas de expressiva população negra, como Granada, Guiana, Jamaica, Panamá, Barbados e Trinidad Tobago.
A despeito da vasta propaganda que atribui à democracia liberal um protagonismo na destruição do apartheid, a verdade é que as potências capitalistas contribuíram em muito para a permanência das aberrantes relações segregacionistas até a primeira metade da década de 1990.