sábado, 31 de março de 2012

31 de março de 1964: a ruína dos trabalhadores




           A expressão corrente “golpe militar”, aplicada ao movimento que derrubou, em 1964, o governo constitucional do presidente João Goulart (1919-1976), embora não seja exatamente incorreta, é imprecisa.  Ela oculta o papel desempenhado por numerosos civis durante o longo processo conspiratório que resultou na movimentação de tropas a partir de 31 de março.
            O que desejo salientar, a princípio, é que “nossa” última ditadura não foi, como definem alguns, o assalto de uma corrente de militares conservadores ao poder central, que julgavam mais seguro em suas mãos do que nas de civis corruptos ou “populistas”  (quando não tachados de “comunistas” e “criptocomunistas”).  O regime político estabelecido em 1964 expressava o sucesso de uma vasta articulação de interesses de classe, solidamente construída no interior de múltiplas instituições, que tinham em comum os objetivos de preservar o poder oligárquico e os valores elitizantes.
            Uma destas instâncias era, sem dúvida, a União Democrática Nacional (UDN), o partido mais nitidamente de direita que existia no país.  Costumamos pensar, e provavelmente com acerto, no eleitor udenista típico como integrante de uma classe média conservadora e urbana, com mediana ou elevada escolaridade, temeroso de que a ascensão econômica dos trabalhadores sindicalizados comprometesse o seu status.  A UDN, que surgiu na década de 40 como um mosaico de grupos políticos contrários ao varguismo, acabou por se consolidar como força aglutinadora daquele eleitorado, liberal no terreno da economia e conservador nas questões referentes à organização da sociedade. 
            Entretanto, se a viabilidade da representação parlamentar da UDN dependia dos votos daquele segmento da classe média, vários de seus dirigentes de maior expressão eram empresários muito ricos.  Um deles, Júlio de Mesquita Filho, proprietário do jornal O Estado de São Paulo (publicação chamada jocosamente de “alter-ego da UDN paulista”), em 1962 já elaborava um “Roteiro da Revolução” para ser seguido pelos militares anti-Goulart. Mesquita defendia em seus editoriais, além do alinhamento mais automático do Brasil com os Estados Unidos e com a Europa Ocidental, a adoção de um sistema econômico que privilegiasse a iniciativa privada e reduzisse, consequentemente, a intervenção estatal[1].  Outro, o banqueiro Herbert Victor Levy (1911-2002), também dono de jornais, participou ativamente das reuniões entre empresários, políticos e militares organizadas pelo IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e pelo IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), que também contribuíram expressivamente para o desfecho do golpe[2].  Ernani Sátiro (1911-1986), fazendeiro paraibano continuamente eleito pela UDN desde a Constituinte de 1945, confessou, em entrevista concedida a Maria Victoria Benevides no ano de 1977, ter recebido verbas do IBAD para suas campanhas políticas; na ocasião, alegou uma suposta justiça na estratégia de empregar o poder econômico contra o comunismo[3].
            A exposição de todos os exemplos possíveis consumiria muitas laudas. O que pretendo afirmar objetivamente é que, inspirado e incentivado por empresários, o regime ditatorial não poderia deixar de exprimir, em sua política econômica, as demandas da burguesia.  Sabe-se que os liberais mais ortodoxos foram frustrados, no decorrer das presidências militares, em suas expectativas de desestatização.  Porém, nada tiveram a reclamar no que se refere à implantação de um modelo radicalmente concentrador de renda, com enorme prejuízo para os assalariados.
            Quando assumiram o comando da equipe econômica do governo Castelo Branco, Roberto Campos (1917-2001) e Octavio Gouveia de Bulhões (1906-1990) apontaram, ao redigir o PAEG (Plano de Ação Econômica do Governo), que as causas da altíssima inflação que assolava o Brasil eram o déficit público, o excesso de crédito para o setor privado e os aumentos salariais[4].  Este diagnóstico resultou, naquela gestão, na diretriz de promover uma forte contenção dos salários.  De início, Castelo Branco utilizou suas prerrogativas presidenciais para demitir de seus cargos os principais líderes sindicais, que perderam os direitos políticos e, em alguns casos, foram processados por subversão.  Desta maneira, ficavam bastante diminuídas as possibilidades de resistência.  Com as mãos livres, Campos e Bulhões impuseram ao setor público uma regra pela qual os salários teriam somente um reajuste anual, sistema mantido até 1979.  Como os aumentos do setor privado permaneciam acima do que fora estipulado como meta no PAEG, o governo obteve do Congresso, em 1965, a ampliação de sua faculdade de fixar salários.  Apenas em 1968, quando a conjuntura econômica foi considerada estável, restabeleceu-se a negociação coletiva[5].   
            Criando o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), em setembro de 1966, o governo liquidou também a estabilidade no emprego, prevista pela legislação anterior ao golpe.  Os empregadores adquiriram o direito de demitir livremente seus empregados, sem justa causa.  Os que ingressavam em novos empregos, por sua vez, se viam obrigados na prática a assinar um documento que, ironicamente, ficou conhecido como termo de opção.  Enquanto se mantinha a repressão contra os sindicatos, crescia a rotatividade da mão de obra, de acordo com a intenção da equipe econômica[6].
            Rebaixada a massa salarial, os trabalhadores precisaram recorrer a duas estratégias para reforçar sua renda: a busca por horas extras e o crescimento do número médio de pessoas que trabalhavam em cada família.  Isto gerou, além da expansão do trabalho infantil, a depreciação do próprio valor da mão de obra, em decorrência do excesso de oferta.  Enquanto isso, na medida em que a legislação estimulava as empresas a dispensarem empregados nos períodos próximos aos dissídios, contratando outros com custo menor, aumentou também a disparidade entre os salários maiores e os mais baixos[7].  Os funcionários, públicos ou privados, que detinham funções ligadas ao controle da produção ou nos altos escalões burocráticos, recebiam em média reajustes muito superiores aos do operariado.  Assim, a renda dos 20% mais ricos passou de 54% em 1960 para 62% em 1970 e 67% em 1976; a dos 50% mais pobres, inversamente, decresceu de 17,7% em 1960 para 14,9% em 1970 e 11,8% em 1976[8].
            Apesar da conjuntura extremamente desfavorável às mobilizações populares, o operariado não permaneceu passivo.  Entrando em greve em meados de 1968, os metalúrgicos de Contagem (MG) pararam a Siderúrgica Belgo-Mineira.  O movimento se alastrou e obteve a adesão de 15 mil trabalhadores, que ao final de dez dias arrancaram um acordo do patronato.  Na mesma época, em Osasco (SP), metalúrgicos e estudantes atuaram em conjunto para ocupar a Cobrasma, empresa fabricante de material ferroviário.  Desta vez, o governo enviou tropas para efetuar a desocupação, realizada com violência.  O Ministério do Trabalho interveio no Sindicato dos Metalúrgicos local, cujo presidente, José Ibraim, se refugiou na clandestinidade[9].
            Como se não bastassem a repressão e a política de arrocho, a ditadura era desonesta até na aplicação de suas próprias regras.  Em agosto de 1977, o governo admitiu em caráter oficial que os índices de inflação de 1973 e 1974 tinham sido manipulados no sentido de desvalorizar ainda mais os salários.  A defasagem apurada dos salários reais atingia 31,4%, o que levou os Sindicatos de Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema (SP) a exigir correção.  O processo desembocou nas greves de 1978 e 1979, nas quais milhões de trabalhadores cruzaram os braços[10].
            Poderíamos alinhar indefinidamente outros indícios de que os governos ditatoriais atuaram sistematicamente contra a maioria da população brasileira e favoreceram as oligarquias financeiras, industriais, comerciais e agrárias.  Hoje, dia 31 de março de 2012, constato que só há um fato a ser comemorado: a completa desmoralização da ditadura, cuja memória é renegada até por muitos dos que dela extraíram grandes vantagens. 


[1] Cf. Maria Victoria de Mesquita Benevides.  A UDN e o udenismo.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, pp. 128/129.
[2] Idem, p. 127.
[3] Ibidem, p. 122.
[4] Ver Thomas Skidmore.  Brasil: de Castelo a Tancredo.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004 (8ª ed.), p. 69.
[5] Idem, pp. 80/81.
[6] Cf. Lincoln de Abreu Penna.  República brasileira.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 268.
[7] Cf. Sônia Regina de Mendonça e Virgínia Maria Fontes.  História do Brasil recente, 1964-1992.  São Paulo, Ática, 1996, pp. 26/27.
[8] Idem, pp. 31/32.
[9] Cf. Boris Fausto.  História do Brasil.  São Paulo: Edusp, 1998, p. 478.
[10] Idem, p. 499.

5 comentários:

  1. Já foi incorporado ao senso comum, e inclusive é ensinado nas escolas, que o regime de 1964 criou o "milagre brasileiro" à custa do arrocho salarial dos trabalhadores. A prova seria o aumento da concentração de renda que caracterizou o período. A idéia vendida é que os ricos ficaram mais ricos à custa de empobrecer os mais pobres. Mas isso é confundir relativo com absoluto. Em termos absolutos, tanto a renda dos ricos quanto a renda dos pobres aumentou, só que a renda dos ricos aumento mais, causando o aumento da concentração. Mas os salários dos trabalhadores melhoraram, também. A prova disto foi a quase ausência de trabalhadores nos movimentos que tentaram derrubar o regime: só se via estudante, intelectual, padre, sindicalista, operário mesmo era raro. E o próprio Lula, que naquela época ainda trabalhava, declarou em uma conhecida entrevista como foi testemunha das kombis das montadoras que assediavam os trabalhadores nas saídas das fábricas, perguntavam-lhes quanto ganhavam e ofereciam-lhes salários maiores. Era um verdadeiro leilão de mão-de-obra. Lula declarou com todas as letras: se naquela época tivesse eleição direta, o Médici ganhava de lavada.

    O trabalhador estava mal, mesmo, era em 1964, que foi um ano de recessão com a inflação comendo solta. É verdade que o salário mínimo em 1964 era maior, mas isso é outro falso argumento. O que importa não é QUANTO vale o salário, mas QUANTOS ganham aquele valor. Depois de 1964 o pessoal teve que se virar fazendo hora-extra? Mas então havia mais trabalho do que trabalhadores, né? Operário que se preza adora uma oportunidade de fazer hora-extra. E eu duvido muito que o trabalho infantil tenha aumentado naquele período. Desde o início do século 20 as fábricas não contratavam mais crianças.

    Foi também naquela época que foi instituído o FGTS. O pessoal mais novo nem sabe o que é estabilidade no emprego: antigamente, quem ficasse dez anos em uma firma era praticamente impossível de ser demitido. E as firmas tinham por hábito mandar para a rua os empregados quando completavam nove anos de casa. E os que ganhavam estabilidade muitas vezes se transformavam em tiranos folgados, não raro obrigando os empregados mais novos a trabalhar em seu lugar. E havia o famigerado passivo trabalhista: uma firma que tivesse muitos empregados antigos com estabilidade, só poderia demiti-los se pagasse indenizações exorbitantes. O resultado? Ninguém mais investia naquela firma ou tencionava comprá-la, pois sabia que teria que arcar com o passivo trabalhista, e ela ia à falência. Esse foi o fim de alguma firmas até conceituadas, como a Fábrica Nacional de Motores, que tornou-se obsoleta e acabou vendida por uma ninharia à Alfa Romeo. Fica a pergunta: de que adianta ter establidade no emprego, se quando a firma quebra todos vão para a rua de qualquer maneira, sem receber um tostão?

    Os militares não foram gênios em economia e cometeram muitos erros, mas também muitos acertos. A gestão de Castello Branco, por exemplo, foi um raro momento de liberalismo econômico em nossa história, tendo as finanças públicas sido saneadas tão bem que o país ganhou fôlego para o "milagre" logo em seguida. Mas depois voltaram os vícios de estatismo, inflação e endividamento. Castello Branco foi uma espécie de precursor de FHC, e felizmente o "milagre lulista" não está repetindo os velhos erros do milagre dos anos setenta.

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  2. Sr. Mundim, infelizmente não há matemática que sustente as suas afirmações. Como os trabalhadores sairiam ganhando se durante a maior parte do período ditatorial prevaleceu a diretriz de reajuste anual, com cenários em que predominava uma inflação alta? Como (voltar ao texto)poderiam não ter perdas se o governo adulterava os índices oficiais de inflação no sentido de rebaixar os salários? Que tal, antes de exercer a conhecida mania de palpitar, verificar, por exemplo, os dados disponíveis sobre o valor de compra do salário mínimo?

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  3. Evidentemente, enumerar todos os artifícios empregados pela ditadura consumiria um tempo que poucos têm disponível. Vale, entretanto, relembrar mais alguns:

    "A elevação das taxas de juros em 1979 acentuara a corrida inflacionária. No diagnóstico governamental, parte da responsabilidade sobre a elevação dos preços cabia aos reajustes salariais constantemente pleiteados pelos trabalhadores. Em outubro de 1979 o governo federal conseguiu a aprovação no Congresso da Lei nº 6.708, a qual estabelecia reajustes superiores em 10% ao recém-criado INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor) para a faixa de menor renda (1 a 3 salários mínimos), iguais ao INPC para aqueles que recebiam entre 3 e 10 salários e de 80% desse índice para o patamar superior- mais de 10 salários mínimos. Os protestos sindicais e as alterações introduzidas no projeto inicial não mudaram sua concepção básica: com ele o governo reduzia a massa salarial, impedia a negociação salarial (apenas a produtividade seria negociada) e dividia os trabalhadores entre favorecidos e prejudicados pela lei".
    (Eduardo Noronha. A explosão das greves na década de 80. In: O sindicalismo brasileiro nos anos 80/Armando Boito Jr. (org.). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, pp. 106/107)

    "Nesse período [1983-1984], a política salarial passou a ser exercida por meio de cinco decretos-leis, todos com um ponto em comum: retiravam o ganho adicional de 10% do INPC concedido aos trabalhadores com renda de até três salários mínimos, tal como previam as leis anteriores- Leis nº 6.708, de outubro de 1979, e nº 6.886, de dezembro de 1980.
    Após diversas tentativas o governo, através de acordo com o PTB, obteve aprovação do decreto-lei (nº 2.065) que previa reajuste de 100% do INPC para a faixa de até 3 SM, 80% para até 7 SM, 60% até 15 SM e 50% para os assalariados de maiores rendas.
    O decreto aprovado impunha grandes perdas salariais e significava claro retrocesso em relação às leis e decretos anteriores. Sua vigência foi de um ano. Em outubro de 1984, por iniciativa do senador Nelson Carneiro (PTB-RJ), foi debatida a proposta de reajustes com base em 100% do INPC para todas as faixas. Aprovou-se, no entanto, o substitutivo do deputado Nelson Marchezan (PDS-RS) mantendo o reajuste integral apenas para a faixa de até 3 SM e fixando 80% do INPC para as classes de renda superiores".
    (idem, pp. 108/109)


    Fica difícil de entender como alguém acredita que os trabalhadores eram felizes nesta época, a não ser que todos houvessem feito voto de pobreza.

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  4. Nem um comentário sobre o desenvolvimentismo ou as crises do petróleo ... 84% de aprovação deve ter sido pq o povo era masoquista... Processo acelerado de urbanização também foi ignorado...

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  5. Gofof,em nenhum momento tive a intenção de analisar todos os aspectos do período ditatorial em dez parágrafos. Por outro lado, você investe em um reducionismo ainda mais radical: quando, exatamente, 84% dos brasileiros aprovaram a ditadura? Quando foi baixado o AI-5? Quando a inflação se tornou incontrolável, na presidência de Figueiredo? Suponhamos que a sua cifra diga respeito ao auge do "milagre brasileiro". Que instituto divulgaria dados que não agradassem ao governo Médici?
    Quanto ao crescimento da urbanização, seja realista: em que país, durante o século XX, a população das cidades não aumentou percentualmente? Se levarmos a sua argumentação ao extremo, alguém dirá que sem a Redentora hoje só seria possível ir do Rio a Niterói de canoa.

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