quinta-feira, 22 de março de 2012

“Ditadura para salvar a democracia”: de volta a uma velha mistificação


“Nós, da UDN, nunca tiramos o pé do quartel. Atravessamos toda a luta com os pés no quartel, almoçando e jantando com generais, almirantes e brigadeiros. Esses oposicionistas bobocas de hoje, a primeira coisa que fazem é xingar os militares.  Não conhecem a realidade brasileira”.

José Bonifácio Lafayette de Andrada (1904-1986), ex-presidente da Câmara Federal (1968-1970) e ex-vice-presidente nacional da ARENA, em depoimento de 13 de março de 1980.

Ainda adolescente, na primeira metade dos anos 80, fui apresentado, por meio de diversos livros didáticos, além de notas de rodapé impressas nas agendas que se vendiam nas papelarias cariocas, a um discurso que poderia ser resumido numa frase: “Comemora-se, a 31 de março, a Revolução de 1964, que derrubou o governo do presidente João Goulart, cujas inclinações esquerdistas iam contra a índole democrática de nosso povo”.  Ninguém se espantaria com tal fato, durante a presidência de Figueiredo: mesmo exibindo muitos sinais de desgaste, o regime conservava o apoio de importantes forças políticas, as quais sustentavam a batalha pelas versões históricas que lhes convinham.
            Encerrado convencionalmente o período ditatorial com a eleição de Tancredo Neves, em janeiro de 1985, escassearam, na produção editorial brasileira, os textos que absolviam os participantes do golpe.   Afinal, se a cadeira presidencial era ocupada pelo antigo udenista e arenista José Sarney, o principal quinhão do poder na gestão que se iniciava cabia ao PMDB, herdeiro preferencial da agremiação que reunira, por mais de uma década, a oposição consentida à ditadura.  Não convinha mais à direita brasileira, exceto alguns núcleos extremamente reacionários, ter uma imagem associada à de generais, falecidos em sua maior parte, que haviam sido os responsáveis formais por “medidas de exceção”.
            Não faltam, na historiografia recente, obras que apontam para uma vaga empatia de seus autores diante dos protagonistas de 1964, apresentando a deposição de Goulart como resultante da ação de radicais de dois lados, igualmente descomprometidos com a democracia.  Todavia, salvo grave engano, nenhum historiador ou cientista político de alta ou mediana projeção se arrisca atualmente a redigir uma apologia ao golpe.  
O cenário é outro no mundo virtual. Em centenas ou milhares de blogs e comunidades das redes sociais, militantes de direita, enfurecidos pela vitória de uma ex-integrante da luta armada nas últimas eleições presidenciais, mas já bem ativos desde o primeiro triunfo de Lula, divulgam suas odes aos governos militares.  Não se limitam a reproduzir as cartilhas caducas que celebravam a derrocada da “subversão comunista”.  Vão adiante e enaltecem as cassações, as deportações, a censura, a tortura e os assassinatos.  Em panfletos mais simplórios, fala-se do período 1964-1985 como a época em que se perseguiu “vagabundos e terroristas” para proteger os homens de bem.  
Não me incomodaria tanto com o processo que descrevo se tudo partisse de viúvas da ditadura ou de conservadores septuagenários saudosos de um tempo em que, entre outras coisas, possuíam mais vigor físico.  Porém, preocupa e irrita ver numerosos jovens que não se lembram diretamente de nenhum acontecimento anterior à era FHC alimentando o mito de que foram salvos do totalitarismo pró-soviético por uma oportuna intervenção de natureza defensiva.
Nada do que direi deste parágrafo até o final terá originalidade.  Faço uso, na verdade, de vários manuais, alguns já com as folhas amareladas, para recuperar dados disponíveis em muitos lugares.  Não tenho a pretensão de converter a direita raivosa a uma visão de mundo progressista, mas apenas de fazer com que alguns de seus simpatizantes sejam confrontados com uma verdade: o espírito golpista dos grupos que promoveram e apoiaram 1964 era um elemento antigo, remontando pelo menos aos anos 40.  Muito antes do suicídio de Vargas, ou de Jango conseguir visibilidade nacional, liberais e conservadores autoritários já sonhavam com uma solução política que excluísse os trabalhadores ou seus eventuais representantes de qualquer interferência na direção do Estado. 
Recuando ao governo Dutra (1946-1950), durante o qual eclodiu a Guerra Fria, vemos o então tenente-coronel Humberto de Alencar Castelo Branco (1897-1967), que estabelecera relações estreitas com oficiais americanos durante a Segunda Guerra Mundial, atuar como testemunha no processo em que, após votação no TSE, foi cassado o registro do PCB.  Pouco depois, em 1948, surgiu a Escola Superior de Guerra (ESG), instituição que desempenharia papel fundamental nas articulações entre golpistas civis e militares e inspiradora da ideologia da Segurança Nacional.  Apesar de alguns sucessos na política externa, como o apoio de Dutra às intervenções inglesas no Egito e na Grécia e o não-reconhecimento da China Popular, esta vertente da direita amargaria dois importantes reveses: a continuidade da campanha pelo monopólio nacional do petróleo e o fracasso na tentativa de colocar o general Canrobert Pereira da Costa (1895-1955) como candidato oficial à sucessão de Dutra[1].
Em 1950, a chapa nacionalista que se lançou à disputa pela presidência do Clube Militar, formada pelos generais Estillac Leal (1893-1955) e Horta Barbosa (1881-1965), bateu nas urnas o anticomunista militante Osvaldo Cordeiro de Farias (1901-1981), comandante da ESG.  Entretanto, a direita fardada teria sua revanche: a publicação, na revista do Clube Militar, do artigo de um major que atribuía aos Estados Unidos a culpa pela Guerra da Coreia e pregava a neutralidade brasileira no conflito foi sucedida por um manifesto de seiscentos oficiais contra a perspectiva “russófila” da revista.  Os desdobramentos deste incidente enfraqueceram Estillac Leal, que se demitiu do cargo de Ministro da Guerra em março de 1952 (já no segundo governo Vargas) e acabou derrotado, dois meses depois, quando concorreu à reeleição no Clube Militar[2]
Daquele momento em diante, as posições nacionalistas dentro das Forças Armadas foram suplantadas pela tendência ao alinhamento automático com os Estados Unidos, quando não vistas como traição. O Clube Militar era controlado pela Cruzada Democrática, à qual se ligavam Juarez Távora (1898-1975), Cordeiro de Farias e o brigadeiro Eduardo Gomes (1896-1981), sendo o último candidato pela UDN à presidência da República em 1950, quando foi superado por Vargas.  Este movimento direitista, composto também por figuras que se destacariam no regime ditatorial, como os coronéis Antônio Carlos Muricy e os tenentes-coronéis Sylvio Coelho da Frota (1910-1996) e Golbery do Couto e Silva (1911-1987), estimulou, em fevereiro de 1954, a apresentação do Manifesto dos Coronéis, peça reacionária que criticava a proposta do ministro do Trabalho, João Goulart, de dobrar o valor do salário mínimo[3].  As pressões sofridas por Goulart provocaram sua saída do ministério, mas Vargas, para ira dos conservadores, anunciou a efetivação do pretendido aumento em maio do mesmo ano.      
Consolidada a base militar que sustentaria o golpismo, não lhe faltava uma ampla correspondência nos meios civis, especialmente no partido que, entre 1946 e 1964, constituiu em regra a maior força de oposição ao governo federal: a UDN.  Já em 1951, udenistas inconformados com a derrota eleitoral de Eduardo Gomes se voltaram para os quartéis para obstar a posse de Getúlio Vargas[4].  Não atingindo seus objetivos, se valeram periodicamente da propriedade de vários jornais com tiragem expressiva para pregar a destituição do presidente.  O principal destes meios era a Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda (1914-1977), na qual foi dito, em 5 de agosto de 1954, em plena crise que resultaria no suicídio de Vargas, que

“Sobretudo é preciso alijar Getúlio. Em primeiro lugar é preciso alijar Getúlio.  Erradicá-lo, extirpá-lo da vida nacional, como se faz, pela cirurgia, com as infecções e com os cancros[5].”

            Cinco dias depois, Otávio Mangabeira, figura de proa da UDN, estimulava abertamente uma “revolução”, a ser liderada por Eduardo Gomes.  Com toda a arrogância que caracteriza os políticos elitistas, ele se investiu no papel de porta-voz da opinião pública:

“A Nação está exausta de tanta humilhação e sofrimento.  Somente as Forças Armadas podem acudir o país.  Unamo-nos como um só homem a seu redor, pondo nelas toda a confiança, obedecendo ao seu comando, como se estivéssemos em guerra[6].”   

             Entre os militares afins, em reunião de 11 de agosto no Clube da Aeronáutica, dirigida pelo próprio Eduardo Gomes, o brigadeiro Franco Faria endossaria Mangabeira:

“O Executivo é proprietário do Brasil, o Legislativo fica de cócoras e o Judiciário se omite.  A situação atualmente imperante no Brasil se deve ao fato de que nós, generais, não temos sabido cumprir nosso dever.  Não podemos transigir com certas coisas.  É preciso que os generais cumpram o seu dever[7]”.          

O conhecido desfecho da crise adiou o projeto de tomada do poder por vias ilegais, mas não abalou a vocação autoritária da UDN. Durante a campanha presidencial de 1955, o partido centrou seus ataques nos políticos getulistas, em particular contra João Goulart, tentando impedir que ele fosse candidato a vice na chapa de Juscelino Kubitschek.  Para isto, além do habitual discurso anticomunista, apelou-se a um expediente criminoso: Lacerda divulgou uma carta forjada, de autoria atribuída ao deputado argentino Antonio Brandi, sugerindo a Jango um plano de coordenação sindical entre os dois países e a criação de brigadas operárias de choque, com intercâmbio de armas pela fronteira, em Uruguaiana.  Anos depois de ser atestada a falsidade da carta em inquérito militar, um ex-membro da Cruzada Brasileira Anticomunista, Joaquim Miguel Vieira Ferreira, se ufanaria de ter sido seu inspirador[8].  
Vitoriosa nas urnas a aliança PSD/PTB, os udenistas tentaram reverter o resultado institucionalmente, alegando que Juscelino não obtivera maioria absoluta, que houvera fraudes e que eram inválidos os votos dos comunistas. Porém, também recorreram a mais uma rodada de pregação golpista.  Carlos Lacerda, que exigia a anulação do pleito, escreveu em 9 de novembro de 1955 que “Esses homens não podem tomar posse, não devem tomar posse, nem tomarão posse”.  No mês anterior, no enterro do general Canrobert, o coronel Jurandir Mamede definiu a iminente posse de Juscelino e Jango como “uma indisfarçável mentira democrática”, gerando uma crise militar: o general Lott, ministro da Guerra, quis puni-lo, sendo desautorizado por Carlos Luz, que ocupava interinamente a presidência devido ao enfarte sofrido por Café Filho, vice de Getúlio Vargas que assumira o cargo interinamente.  Finalmente, a 11 de novembro de 1955, tropas legalistas chefiadas por Lott assumiram o controle dos principais comandos militares do país, enquanto Luz e Lacerda se refugiavam no cruzador Tamandaré, esperando desembarcar em Santos numa conjuntura mais favorável, o que não ocorreu.  Estava assegurado o direito dos eleitos.  Cinicamente, em nota publicada quatro dias depois, a UDN negou ter envolvimento nas manobras contra a legalidade[9].  Nada disto impediu que o novo governo enfrentasse, em fevereiro de 1956 e dezembro de 1959 respectivamente, os levantes de Jacareacanga e Aragarças, por iniciativa de oficiais direitistas da Aeronáutica que mesmo se amotinando receberam anistia.
A turbulência política causada pela renúncia do sucessor de Juscelino, Jânio Quadros, em 1961, fez com que o udenismo, reforçado por outros conservadores, retomasse seus métodos usuais.  Os ministros da Marinha, Sílvio Heck, e da Aeronáutica, Grün Moss, ligados à UDN e íntimos de Carlos Lacerda, decidiram impedir a posse de João Goulart, que permanecia na vice-presidência, obtendo a concordância do ministro da Guerra, marechal Odílio Denys.  Ambos possuíam credenciais tenebrosas: Heck comandou, em 1955, o navio Tamandaré, que como vimos abrigou os elementos contrários à posse de Juscelino; Moss incentivou, no governo JK, os episódios de Jacareacanga e Aragarças[10].  Outra vez tiveram que recuar, pela ação do III Exército, sediado em Porto Alegre e comandado pelo general Machado Lopes (1900-1990).
Muito antes do anúncio das Reformas de Base por Jango, outros golpistas haviam se reunido, em 1959, no IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e, desde 1961, no IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), órgãos financiados por capitalistas nacionais e estrangeiros interessados em manter o status quo.  O ideólogo do IPES era Golbery, agora coronel.  A partir de 1962, IPES e IBAD intensificaram seu combate às propostas governamentais de viés reformista, associando-as ao comunismo.  A disposição para o golpe, nos textos, era mascarada com apelos retóricos à democracia[11].
A lista dos eventos que comprovam a inclinação autoritária de boa parte, senão da maioria dos direitistas brasileiros no período que analisamos seria muito longa.  Nela, estariam as providências adotadas durante a presidência de Jango por muitos empresários, fazendeiros e autoridades policiais, em vários estados, no sentido de estocar armas, munição e combustível para auxiliar os comandantes rebelados, na hipótese de que o golpe de 1964 desembocasse numa guerra civil.  Compor um dossiê completo, ou quase, iria muito além do razoável para uma matéria de blog.  Porém, temos mais do que o suficiente para demonstrar que a “defesa da democracia”, para os que construíram a ditadura, nada mais era do que a prevenção contra a entrada no jogo político de atores que julgavam indesejáveis.


[1] Ver Pedro Estevam da Rocha Pomar.  A democracia intolerante: Dutra, Adhemar e a repressão do Partido Comunista (1946-1950).  São Paulo: Arquivo do Estado; Imprensa Oficial do Estado, 2002, pp. 30/31.
[2] Cf. Boris Fausto.  História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1998, p. 408.
[3]Cf. Vivaldo Barbosa.  A Rebelião da Legalidade: documentos, pronunciamentos, noticiário, comentários.  Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002, pp. 180/181.
[4] Ver Jorge Ferreira.  O carnaval da tristeza.  In: Vargas e a crise dos anos 50/org. Ângela de Castro Gomes.  Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 67.
[5] Idem, p. 66.
[6] Ibidem, p. 69.
[7] Ibidem, p. 69.
[8] Ver Luiz Alberto Moniz Bandeira.  O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964.  Rio de Janeiro: Revan; Brasília: UnB, 2001, p. 58.
[9] Cf. Maria Victoria de Mesquita Benevides.  A UDN e o udenismo.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, pp. 96 a 99.
[10] Cf. Vivaldo Barbosa.  Op. cit, pp. 41/42.
[11] Ver Lincoln de Abreu Penna.  República brasileira.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, pp. 253/254.

Um comentário:

  1. Ola Gustavo conheci o seu blog atraveis da comunidade Olavo de carvalho nos odeia,essa defensa ao golpe seja a ser cínica,recentemente perguntei a um neo-con quais as provas que ele tinha de que o governo Jango estava implantando uma ditadura comunistas ele me mostrou um trecho em que Jango defendia a reforma agraria agora defender a reforma agraria virou revolução comunista

    Da uma olhada na caixa de comentários:http://lucianoayan.com/2012/04/04/os-chiliques-de-yuri-grecco-contra-os-herois-de-64-ou-estudando-um-macaco-esquerdista-de-laboratorio/

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