sábado, 24 de março de 2012

A erudição contra a direita: Domenico Losurdo


“Em geral, a sua boca era demasiadamente grande, a expressão da sua figura era ignóbil e malvada [...]. A sua fisionomia manifestava aquela profunda depravação que pode derivar só de um prolongado abuso da civilização, e não obstante continuavam selvagens.  Aos vícios que haviam assimilado de nós mesclava-se algo de bárbaro e de incivil, que os tornava cem vezes mais repugnantes [...].  Os seus movimentos eram rápidos e desordenados, a sua voz aguda e desafinada, os seus olhares inquietos e selvagens.  No primeiro contato seríamos tentados a ver em cada um deles apenas um bicho das florestas ao qual a educação poderia ter conferido alguma aparência de humanidade, e no entanto permanecera um animal”.

                O discurso etnocêntrico que abre esta postagem foi escrito há mais de um século e meio e seu alvo é a população indígena dos Estados Unidos.  Nada contém de espantoso, se recordarmos que milhões de americanos, na época, viam a propriedade de escravos como um direito sagrado, em defesa do qual pegariam em armas, e julgavam que os seres de cabelos pretos, pele acobreada e olhos oblíquos que ainda se espalhavam por milhões de quilômetros quadrados entre o Mississipi e o Pacífico constituíam um estorvo a ser removido com a maior brevidade possível.  Entretanto, o texto não é de autoria de um missionário enraivecido com o chefe sioux que preferira o uísque falsificado ao seu proselitismo.  Tampouco de um caubói que tentava se justificar pelo assassinato de uma dúzia de apaches em troca de uma recompensa de cem dólares.
            São palavras do respeitadíssimo Alexis de Tocqueville (1805-1859), um dos mais celebrados teóricos da matriz política liberal.  Não proporei nesta crônica o linchamento moral de Tocqueville, que, é preciso lembrar, também se mostrou chocado diante do genocídio praticado por seus anfitriões na América do Norte, apesar da resignação com a inevitabilidade do processo, que podemos atestar em outra passagem:

“Parece que a Providência, colocando essas populações entre as riquezas do Novo Mundo, tenha dado a elas só um breve usufruto; de alguma forma, elas estavam lá só ‘à espera’. Aqueles litorais tão favoráveis ao comércio e à indústria, aqueles rios tão profundos, aquele inesgotável vale do Mississipi, aquele continente inteiro apresentavam-se então como o berço vazio de uma grande nação”.

            O que desejo destacar, de início, é que não encontrei estas citações no site do Instituto Ludwig Von Mises, na coleção Os Pensadores ou em qualquer comunidade do Orkut dedicada ao culto à personalidade de Tocqueville.  Cheguei até elas, e a muitas outras notas indefensáveis, da lavra de numerosos “campeões da liberdade” e varridas para o mundo subterrâneo por seus admiradores, senão desconhecidas até destes mesmos, através de um mestre: Domenico Losurdo.
            Nascido no ano de 1941 em Sannicandro di Bari, na região da Puglia, sul da Itália, Losurdo, professor de Filosofia da História na Universidade de Urbino, é um dos intelectuais mais fecundos do continente europeu.  Fiel ao pensamento marxista e às correntes políticas que se mantêm realmente à esquerda, rejeita visceralmente o compromisso com a visão conformista de que, no mundo pós-Guerra Fria, quase nada há a fazer além de reconhecer o triunfo do laissez-faire e do modelo político liberal.
            Losurdo se alinha entre os poucos filósofos contemporâneos de relevo que não somente prosseguem na luta contra a exploração do homem pelo homem, como também denunciam as hierarquias de gênero, etnia e origem religiosa e/ou regional que caracterizam as sociedades inspiradas no liberalismo ao longo de séculos de existência.  Boa parte de sua vasta produção já foi publicada em português.  Em Fuga da História?  A Revolução Russa e a Revolução Chinesa vistas de hoje (Rio de Janeiro: Revan, 2004), o autor faz um corajoso inventário das conquistas sociais e tecnológicas alcançadas pelos socialistas no século XX, sem deixar de empregar munição pesada contra a direita, como no trecho em que demonstra quanto o supostamente pacífico Dalai Lama pode ser íntimo de mercenários do Sudeste Asiático colecionadores de orelhas de comunistas.  Em Democracia ou Bonapartismo (Rio de Janeiro: UFRJ, 2004), ele reconstrói a crônica da longa resistência das forças liberais à implantação do sufrágio universal, para depois constatar o quanto este mecanismo democrático, nas sociedades capitalistas da atualidade, se mostra esvaziado em seu conteúdo essencial, incapaz de expressar uma representação popular autêntica.
            Mas, de todos os livros de Domenico Losurdo, meu preferido e primeiro a ocupar lugar em minha estante é Contra-História do Liberalismo (Aparecida do Norte: Idéias & Letras, 2006).  Através de uma vasta pesquisa histórica, seguida de penetrante análise, Losurdo elabora uma gênese dos mecanismos de exclusão nas sociedades liberais, relacionando seus fundamentos ideológicos às ações discriminatórias correspondentes. Percorrendo questões como a prolongada sobrevivência da escravidão na América do Norte, o não-reconhecimento dos direitos dos índios, a opressão da Inglaterra sobre os irlandeses católicos e das metrópoles europeias sobre os súditos das colônias, o filósofo prova com clareza que as garantias típicas do sistema liberal só se aplicam, em sua total extensão, aos que são reconhecidos como parte da “comunidade dos livres”.
Tanto na América quanto na Europa, as classes proprietárias autodefinidas enquanto liberais tenderam a se ver como uma aristocracia natural, uma espécie de raça eleita, formada por homens portadores do “sangue da liberdade”.  No caso anglo-saxão, este orgulho de classe logo se fez acompanhar por uma perspectiva racista.  O letrado Benjamin Franklin (1706-1790) enalteceu os “ingleses situados nos dois lados do Atlântico” como o povo mais puramente branco do mundo, que por esta mesma razão seria o mais apto a viver em liberdade.  John Stuart Mill (1806-1873), para quem a Índia necessitava de uma direção despótica, não tinha melhor conceito sobre os países do sul da Europa, em sua opinião habitados por gente indolente e invejosa, cuja natureza era incompatível com a economia industrial. Investigando acerca da genealogia destas ideias, Losurdo chega à Inglaterra de John Locke, segundo o qual havia três categorias de homens: os escravos propriamente ditos, negros provenientes da África, os livres e os servos brancos.  Os últimos, embora fossem consanguíneos dos livres, deveriam ficar sujeitos à disciplina imposta pelos amos às suas famílias.
Iconoclasta implacável, Domenico Losurdo revela aos leigos que Thomas Jefferson (1743-1826), um dos Pais da Pátria norte-americana, foi decidido adversário da independência do Haiti, por temer que o exemplo dos escravos emancipados por conta própria contagiasse os negros do sul dos Estados Unidos.  Que Thomas Macaulay (1800-1859), notável poeta, historiador e político inglês, negou em seus escritos o direito dos judeus de tomar assento entre os parlamentares do reino. Que Tocqueville, desta vez sem atenuantes, apoiou irrestritamente o colonialismo francês na Argélia, rejeitando a priori qualquer relação de igualdade entre europeus na África e “súditos muçulmanos”. Que Benjamin Disraeli (1804-1881), primeiro-ministro britânico célebre pelas diretrizes expansionistas, via a igualdade entre os homens como uma “doutrina perniciosa”, opondo a ela a superioridade das “puras raças caucásicas”.  Losurdo conclui, ao julgar no conjunto os clássicos do liberalismo, que os mesmos rejeitaram, infalivelmente, o avanço da democracia, tido como intervenção violenta contra o pacto social.
Dos horrores do colonialismo e da escravidão, Losurdo passa ao século XX, onde demarca, na década de 20, os múltiplos apoios desfrutados por Mussolini, por ocasião de sua tomada do poder, entre direitistas de perfil tradicional, muitos deles liberais convictos.  Benedetto Croce (1866-1952), filósofo liberal e senador, chegou a saudar a ascensão do fascismo como uma volta ao liberalismo puro, contrário ao liberalismo democrático.  Ludwig von Mises (1881-1973), um dos maiores entusiastas do laissez-faire em todos os tempos, enxergou naquele movimento a salvação da civilização europeia, supostamente ameaçada pela ação dos sindicatos e pelas influências socialistas sobre o liberalismo.  Em 1927, Mises proclamaria categoricamente que “o mérito adquirido desta forma pelo fascismo viverá eternamente na história”. 
Observando de perto os regimes nazifascistas, Losurdo é impelido a olhar, de novo, para a América do Norte: torna-se inevitável o paralelo entre a Ku Klux Klan americana e os camisas pretas e marrons.  Os negros sulistas, vítimas preferenciais de um duríssimo sistema penitenciário, eram socialmente segregados de acordo com um ideal de pureza racial absoluta, pelo qual uma única gota de sangue não-branco excluía o indivíduo da comunidade branca.  Regra que, objetivamente, ultrapassava em radicalismo a definição de judeu adotada pelos nazistas.  O racismo institucionalizado nos Estados Unidos perdeu fôlego a partir dos anos 50, mas ainda assim, parcialmente, por razões de Estado: temia-se que a denúncia da discriminação racial favorecesse a difusão do comunismo e a descrença internacional na relação do país com a democracia.  Todavia, Losurdo não se detém na simples catalogação dos crimes e das contradições ideológicas dos liberais.  Comprometido com a ação política, ele chama à atividade “os que estão empenhados em superar as cláusulas de exclusão do liberalismo”.
Longa vida ao mestre!  Que continue se valendo, para nossa satisfação e desgosto dos elitistas, do conhecimento de muitas línguas e do acesso a textos “proibidos”; estes, para nós latino-americanos, quase tão inacessíveis quanto as “abomináveis ideias francesas” que as autoridades coloniais se empenhavam em manter do outro lado do oceano.  Que chegue à idade de Oscar Niemeyer com a energia de Manoel de Oliveira, o centenário cineasta português!   
              

Um comentário:

  1. Faz mais posts sobre o Losurdo, Professor! Vou insistir até que você faça! HAHAHAHA
    Abraços!

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