quinta-feira, 29 de março de 2012

Fábulas do Reino de Vassouras (II)



1885

O início da legislatura foi agitado. Em dois meses Dantas percebia sua fraqueza, e um voto de desconfiança o derrubava do poder. Poderia ainda dissolver a Câmara, mas o imperador não o apoiou desta vez. Ao chamá-lo para organizar o Gabinete que sucedeu ao de Saraiva, D. Pedro perguntara ao chefe baiano o seu programa. Dantas não vacilara:

- A abolição, majestade.

E Pedro II, bonachão:

- Pois seja, senhor Dantas. Mas se o senhor correr eu o seguro pela aba do casaco.

(Márcio Tavares D’Amaral (texto). Rodrigues Alves [coleção A vida dos grandes brasileiros]. São Paulo: Editora Três, 1974, p. 51.



            Conforme prometi, hoje me reporto a um segundo vídeo do “herdeiro do trono que não há”.  Prepare mais uma vez, caro leitor, seu aparelho digestivo, pois a produção é tão ruim quanto a precedente, como podemos presumir já pelo título, “Dom Bertrand responde sobre a raça negra e a escravatura”:


            É impossível, e provavelmente indesejável, expulsar todos os mitos do imaginário da humanidade, mas penso que crer em Papai Noel depois dos seis anos de idade sempre traz seus prejuízos.  Bertrand incorre exatamente nisto, ao iniciar a exposição (generosamente abro mão das aspas) com um dos clichês mais simplórios,  infelizmente muito vulgarizado, de que se tem notícia:

“Perdeu o trono porque libertou os escravos”.

            Sim: o cardeal da TFP faz mesmo coro à matriarca de todas as balelas, sabidamente produzida por um intransigente escravocrata, o barão de Cotegipe, de que ao assinar a Lei Áurea a princesa Isabel, por extensão, renunciava à perspectiva de um Terceiro Reinado.  Devo, então, sem correr o risco de escrever quinze ou vinte cansativas páginas, trazer à tona alguns dados inconvenientes para o Bragança:           

1)A Lei Áurea foi uma peça jurídica debatida no Parlamento e aprovada na Assembleia Geral com cerca de 90% de votos favoráveis.  As manifestações contrárias partiram, na quase totalidade, dos representantes dos fazendeiros das áreas mais antigas da cafeicultura fluminense, em acentuada decadência, que tinham grande percentual do seu patrimônio expresso na propriedade dos escravos que ainda conseguiam manter.  Isabel poderia ter se negado a sancionar a lei?  Teoricamente sim, mas por que o faria contra a esmagadora maioria da opinião pública e contra a tendência dominante entre a própria classe política do país?

2)A vontade política pró-abolição de Isabel é um dado no mínimo discutível.  Ela não compareceu, por exemplo, ainda que fosse convidada por lideranças do movimento, à reunião da Confederação Abolicionista do Rio de Janeiro que foi marcada para o Teatro Polytheama, em agosto de 1887.   Para piorar a situação, o gabinete Cotegipe, que tentava sistematicamente impedir as reuniões públicas (na verdade proibindo-as), mobilizou a polícia para atacar a plateia.  Vencidos os guardas na luta corporal e corridos a pedradas, o teatro foi invadido por soldados de cavalaria e infantaria.  Os organizadores do evento desistiram dele para evitar um banho de sangue.  Isabel, que detinha as prerrogativas do Poder Moderador, nada fez contra o governo arbitrário[1].     

3)O propalado abolicionismo de Pedro II também é muito discutível.  Somente pela Lei do Ventre Livre (28 de setembro de 1871) os escravos “pertencentes à Nação”, bem como os “dados em usufruto à Coroa”, obtiveram liberdade formal.  Isto significa que, três décadas depois de coroado, o imperador, tivesse ou não questões de consciência quanto ao fato, ainda dispunha de mão de obra servil.  A posição de Pedro II sobre o fim da escravidão pode ser melhor compreendida por meio de uma declaração feita por ele ao jornalista argentino Hector Varella:

“Alguns me atacam com tão clara injustiça, crendo que eu retarde a hora mais feliz do meu reinado, aquela em que eu pudesse anunciar ao mundo que já não existe um só escravo em minha pátria e que o último desses desgraçados é tão livre como eu ... Mas a abolição imediata, hoje, agora, não se poderia decretar senão consultando as nobres e generosas impressões do coração, de que participamos todos. Há que prepará-la, para que a liberdade repentina concedida aos escravos não fira profundamente grandes interesses, que devem ser respeitados[2]".

            Traduzindo para uma linguagem mais vulgar: “sou intelectualmente a favor da abolição, mas só a permitirei quando tiver a certeza de que meus ouvidos sensíveis não serão feridos pelos impropérios de nenhum dos meus conselheiros”. Convinha posar de esclarecido e progressista em cima do muro.

4)Não há nada de mais incoerente do que afirmar que os ex-senhores de escravos contrariados derrubaram a monarquia.  O regime sofria com a erosão de suas bases de apoio há duas décadas, mais precisamente desde que Pedro II, desastradamente, impôs ao país o gabinete chefiado por Itaboraí, praticamente com respaldo zero do Parlamento.  O próprio Quinze de Novembro, enquanto evento, foi promovido por setores urbanos.

            Para concluir o assunto, vale, sem desmerecer em nada a atuação dos militantes abolicionistas incondicionais, aqueles que se expuseram às pauladas da polícia e à discriminação social dos escravocratas, o parecer de um analista insuspeito de qualquer radicalismo, Ruy Barbosa (1849-1923):

O escravo teve um papel autonômico na crise terminativa da escravidão. Abaixo da propaganda multiforme, cuja luz lhe abriu os olhos ao senso íntimo da iniqüidade, que o vitimava, ele constitui o fator determinante na obra de redenção de si mesmo. O não quero dos cativos, esse êxodo glorioso da escravaria paulista, solene, bíblico, divino como os mais belos episódios dos livros sagrados, foi, para a propriedade servil, entre as dubiedades e tergiversações do Império, o desengano definitivo[3].

            Sigamos com as bobagens de Bertrand.  Ele volta a biologizar questões que são étnicas e sociais ao comentar sobre o quanto é “interessante” que Neguinho da Beija-Flor tenha mais “sangue europeu” do que “sangue africano”.  Imaginemos, então, que no calor de um protesto de rua certo sargento do batalhão de choque aponte para um homem de pele escura e cabelos encarapinhados e grite para seus subordinados: “Pau naquele crioulo ali!”.  Sei que isto nunca aconteceu nem aconteceria na democracia racial brasileira, mas pensem em Bertrand sugerindo à vítima que responda aos perseguidores nos seguintes termos: “Senhores, eu não sou tão negro assim, meu bisavô era português!”. 
            Mais aberrante ainda é a “tese” sobre a formação do Brasil, tosca até pelos padrões da República Velha.  O “príncipe” acredita, em 2012, que “raças humanas” têm qualidades psicológicas inatas, da mesma forma que um pit bull tende a morder os estranhos enquanto um golden retriever abana a cauda.  Não à toa, nesta categorização cabe ao negro entrar com a força física e a bondade para a constituição do brasileiro, tal como nas velhas cartilhas que diziam que o índio indomável fugira da escravidão para as florestas, enquanto o africano dócil se submetia ao eito.
            Quem segue uma liderança como a de Bertrand de Orléans e Bragança não precisa de adversários.  O monarquismo brasileiro só pode, com efeito, caber por inteiro em dois vagões de metrô.



[1] Ver Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves e Humberto Fernandes Machado. O Império do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, pp. 377/378.
[2] Citado em Araken Távora. D. Pedro II e o seu mundo através da caricatura. Rio de Janeiro: Bloch, 1976.
[3] Citado em Jacob Gorender.  A escravidão reabilitada.  São Paulo: Ática, 1991, p. 82.

3 comentários:

  1. É como se a miscigenação na verdade fosse boa porque, na realidade, o negro ficou "melhor" por tal motivo. Como se pode hoje falar algo desse tipo, e o pior de uma forma publica. Defendendo uma ideia racista como essa.

    E a "fé dos portugueses" e a "força dos negros", como isso é possível?

    O vídeo postado aqui realmente tem um conteúdo que nos leva a pensar até que ponto as pessoas não usam a história para justificar e pautar os próprios preconceitos?

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  2. Quem me garante que D. Pedro II disse isso ao conselheiro Dantas? Há algum documento, gravação?

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    1. Gravação não há. Mas note que partiu de uma fonte bastante conservadora.

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