segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O Estado imperial contra negros, índios e ciganos


                     
                  Uma certa mitologia, ainda popular entre os conservadores brasileiros, alinha entre as "realizações" do regime monárquico a abolição da escravatura, não obstante o fato de que, durante 65 anos e 8 meses, o braço escravo tenha sustentado a produção econômica fundamental do país.  Nesta versão, o suave cativeiro dos africanos e seus descendentes no Brasil prolongou-se até 1888 pela extrema necessidade da maioria dos fazendeiros, aliás generosos, salvo poucas exceções, para com seus dependentes.  A vontade de todos deixava de se concretizar para evitar que a economia nacional quebrasse. Não é impossível, até, encontrar quem glorifique a lentidão das medidas emancipacionistas, amortecendo prováveis conflitos, em contraste com o que ocorreu nos Estados Unidos entre 1861 e 1865.  Coloca-se no centro da lenda imperial a dinastia reinante, capaz de arriscar o próprio trono contra os interesses do setor mais reacionário dos plantadores escravistas.
              Recorro ao relatório do Ministério da Justiça do ano de 1887, assinado por Antônio Ferreira Vianna (1833-1903), não somente para mais uma vez desconstruir a mitologia bragantina da Lei Áurea, como para comprovar o caráter intrinsecamente racista de uma sociedade estruturada sobre hierarquias de classe, gênero e também de etnia.  Os leitores mais interessados na História do Brasil provavelmente têm ciência das fugas coletivas do ano de 1887, nas quais escravos, libertos e livres abolicionistas uniram esforços no sentido de desorganizar o sistema escravista.  Boa parte deste movimento se concentrou na província de São Paulo, onde um grande quilombo, o Jabaquara, nas imediações de Santos, abrigou milhares de cativos auto-emancipados.
                Pelo relato de Ferreira Vianna, um membro do mesmo Partido Conservador que seria levado pela marcha dos acontecimentos a promover o 13 de maio, percebemos que o aparato repressivo pró-escravidão estava intacto na segunda metade de 1887.  O grupo de fugitivos que cruzou Itu em outubro daquele ano, combatido inicialmente pela polícia do município, foi perseguido sem sucesso por forças provinciais.  Em seguida, o governo central prestou solidariedade aos proprietários, mobilizando tropas regulares e um navio de guerra.  A retórica do ministro deixa claro que, para o Estado imperial, a propriedade sobre homens continuava a constituir um direito reconhecido.                            


                                        http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1881/000037.html
                                        http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1881/000038.html

       Diriam os adeptos do mito da democracia racial, com sua dose de razão, que há diferença entre atacar escravos fugidos e discriminar os negros em geral.  Prossigamos, então, na leitura do documento.  Relatando ocorrências policiais da província de Goiás, Ferreira Vianna deixa transparecer o preconceito, difundido na sociedade, porém aberrante como discurso oficial, contra os ciganos.  O termo "malta", sinônimo de associação de malfeitores, serve de rótulo para um grupo étnico que por seus costumes nômades tinha reputação de criminoso.    


          O ministro da Justiça, em relação às populações indígenas não integradas, se revela ainda mais preconceituoso, além de fazer coro a numerosos relatórios similares que apontam o índio sempre como agressor dos "civilizados" e jamais como vítima, mesmo que seu número declinasse progressivamente na maior parte do Império.  O índio, segundo Ferreira Vianna, é o "bugre", o "selvagem", a reclamar, alternadamente, a presença do monge, do policial e do soldado.     









            Antônio Ferreira Vianna foi um homem de seu tempo, me diriam liberais, conservadores, monarquistas de todas as tintas.  Um fascista anônimo talvez acrescentasse: que pena não ter mandado matar mais negros, índios e ciganos!  Não é minha intenção promover o julgamento da ossada de Ferreira Vianna, até porque outros, bem mais perversos em seu racismo, exigiriam prioridade.  Desejo apenas relembrar que há muito a se fazer pelas igualdades de fato no Brasil, quase tanto quanto em 1887, e que a mera igualdade jurídica do constitucionalismo liberal, desde a Carta de 1824, já provou que nunca atenderá à demanda.   

9 comentários:

  1. Vc não pode caracterizar a sociedade brasileira como racista tomando por base só meia dúzia de pessoas do século passado... ¬¬

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    1. É verdade, mas as pessoas às quais eu me refiro, além de serem milhares, eram as que detinham a direção do Estado. Percorra o blog e verá muitas outras fontes no mesmo sentido. Por fim, eu registraria que a sociedade brasileira de hoje me parece menos racista, e menos preconceituosa em geral, do que a do século XIX, mesmo tendo recebido desta uma herança tenebrosa. Tampouco afirmei que a sociedade é inteiramente racista, ou racista de forma homogênea.

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  2. 25 posts sobre a "direita", 10 sobre "conservadorismo", mais 10 sobre "imperialismo"..

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  3. Claro que a sociedade era racista. Inclusive índios e caboclos, com um racismo empedernido durante o processo colonial em sua ânsia de se distanciarem dos negros escravos. Agora a imagem do governo imperial abolicionista é algo que sempre esteve presente no imaginário nacional popular, ás vezes contra a elite anti-monárquica, após a proclamação da república. Antonio Conselheiro em seus discursos menciona a "santa Princesa Izabel" que libertou os escravos.

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    1. Como na grande maioria dos casos, o imaginário foi construído de cima para baixo e é de difícil sustentação, se recordarmos que o Estado imperial fez uso do trabalho forçado dos africanos livres até fins da década de 1860 e a própria família imperial teve escravos até os primeiros anos da década de 1870.

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  4. Claro que um racismo extremamente peculiar, o brasileiro, pois entre outros fatores, admitia cruzamentos entre raças e ascensão social de mulatos...

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  5. Façamos mais algumas ressalvas:
    1-A miscigenação muitas vezes era negada nos "estratos superiores" da população.
    2-Apesar da ausência de legislação que proibisse as uniões "interraciais", a expectativa oficial era a da formação de uma nação de perfil europeizado.
    3-Os mulatos que se tornavam deputados, senadores, ministros, barões, viscondes, assumiam infalivelmente uma identidade branca. Conheço uma única exceção: Antônio Pereira Rebouças, que se dizia "o representante da população mulata" na Câmara. Algum outro?

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  6. "Como na grande maioria dos casos, o imaginário foi construído de cima para baixo"
    Sim, mas não podemos imaginar que o povo não seja responsável também pelo imaginário ou ideologia que compactua, ou apenas passível diante dela, inclusive muitas vezes ele seleciona nas classes altas aquilo que quer como parte de sua visão, ou mentalidade diante de conveniências e tabus. A vacina obrigatória por exemplo era algo que fazia parte da cultura das classes dirigentes e foi radicalmente contestada pelo povo. Pode-se dizer também que após a República o imaginário de exaltação da monarquia, contra o ideal republicano de sociedade, era algo, naquele momento, muito mais próximo do povo do que das elites dirigentes...
    Sobre a miscigenação, estou longe de negar o racismo que a acompanhou, por isso disse ser um racismo empedernido, mas sobre a ascensão de diversos mulatos em várias áreas sociais (claro que quanto mais claros, mais fácil era, assim como sua procedência familiar, mas mesmo isso é muito peculiar) no século XIX vide o último capítulo de Sobrados e Mucambos e os documentos ali citados.

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