domingo, 10 de fevereiro de 2013

Ainda sobre o nazifascismo: resposta ao leitor Pedro Mundim




      Muitos blogueiros e administradores de sites políticos simplesmente excluem de suas páginas os comentários críticos, seja para ostentar uma suposta irrefutabilidade de suas teses, seja pela pura falta de tempo ou de disposição para responder.  Eu mesmo já deletei, dezenas de vezes, falas que continham mais impropérios do que argumentos, assim como outras que no meu entendimento revelavam uma visível má intenção.  Há poucos dias, certo leitor anônimo, em um punhado de linhas escritas em tom raivoso e reacionário, simulou concordância com uma de minhas premissas para encaixar logo em seguida insultos aos judeus.  Jamais saberei se o indivíduo expressava estupidez autêntica ou se maliciosamente "plantava" o parágrafo discriminatório no blog para depois me acusar, saindo do anonimato, de abrir espaço para o antissemitismo.  O fato é que a excrescência verbal seguiu para seu destino inevitável: a lixeira.                
      Situações deste tipo à parte, não tenho dúvidas a respeito do caráter enriquecedor do embate entre visões opostas. Anteontem, após ler minha matéria Reabrindo os armários da direita: visões brasileiras sobre o nazifascismo, o leitor Pedro Mundim elaborou, como faz com alguma frequência, longas objeções, que foram publicadas nos comentários.  Conheço, desde os tempos recentes em que inseri alguns links no site Mídia Independente, a orientação política conservadora de Mundim.  Poderia, como em outras ocasiões, contestar suas afirmativas na mesma postagem.  Porém, levando em consideração o volume das críticas, bem como o elevado número de vezes em que encontro discursos praticamente idênticos ocupando espaços na Internet, julguei melhor responder através de dois novos textos.
     Aqui temos os dois primeiros dos quatro parágrafos de Mundim:           

Alguém que chama Hitler de "von Hitler" e define-o como monarquista, com certeza não sabia do que estava falando, o que é compreensível naqueles idos, quando a informação chegava muito mais penosamente via telégrafo e cabo submarino, e os jornais cometiam muito mais erros do que hoje em dia. De resto, é perfeitamente sabido que Hitler veio da plebe e nunca escondeu seu ódio e desprezo pela antiga aristocracia do império alemão, a quem ele culpava pela rendição em 1918 (embora tenha sido posteriormente forçado a manter em altos postos do exército alguns von-não-sei-o-quê, já que eles é que entendiam do assunto).
Hitler assumiu a liderança de um partideco de esquerda chamado Partido Nacional-SOCIALISTA dos Trabalhadores Alemães, e nunca eliminou a palavra socialista do nome do partido. Sempre definiu sua ideologia como socialista, com a ressalva de que socializava pessoas, e não bens (isso ele fez mesmo, obrigando as classes sociais a conviverem juntas nos acampamentos da juventude Hitlerista). A velha burguesia apoiou o nazismo porque considerava-o uma alternativa preferível ao comunismo soviético (e com certeza Hitler deliciou-se ao ver aqueles aristocratas a quem tanto desprezava virem lamber suas botas).


       Segundo um de seus principais biógrafos, John Lukacs, Hitler realmente não era um monarquista, ainda que, até a queda do Império Alemão, nunca tivesse expressado rejeição à dinastia Hohenzollern.  Ele se esquivava, na verdade (mesmo depois de assumir o cargo de chanceler), de emitir pronunciamentos antimonárquicos, pela necessidade de assegurar o apoio dos conservadores.  A maior prova da reprovação hitleriana à monarquia talvez tenha sido sua atitude após a visita oficial à Itália em maio de 1938.  Diante do cerimonial arcaico, da corrupção da nobreza italiana e das falhas de caráter de Vítor Emanuel III, Adolf Hitler expressou a seus assessores a opinião de que Mussolini errara ao aceitar dividir o governo italiano com o rei.  Entretanto, numa disputa interna de seu partido com Gregor Strasser, em 1926, Hitler se mostrou favorável à devolução das propriedades dos príncipes alemães, que tinham sido confiscadas em 1918¹.  Na mesma direção, como aponta Roderick Stackelberg, os nazistas enalteciam o "Império Hohenstaufen medieval", tal como os fascistas italianos se inspiravam no poderio do Império Romano². 
       Desta maneira, não é tão estranho que um jornal carioca, justamente em 1926, quando Hitler era pouco conhecido fora da Europa, lhe desse o rótulo de monarquista.  Mais significativo do que isto é a menção à abolição do direito de greve com pena de morte para os infratores, naquela altura uma inegável bandeira de extrema direita.  A propósito, Stackelberg demonstra com precisão o porquê da inclusão dos regimes fascistas nesta categoria:

"É importante conceituar o fascismo como um regime de extrema direita, não apenas porque era dedicado à destruição do marxismo e comunismo (afinal, dois movimentos de extrema esquerda, o maoísmo chinês e o comunismo soviético, podiam também ser violentamente opostos um ao outro), mas também por causa de sua oposição fundamental ao valor da igualdade.  Os fascistas consideravam o igualitarismo sob qualquer forma, mas em particular na forma de igualdade racial, como a fonte da ruína da humanidade.  Era essa oposição à igualdade e à democracia que tornou os fascistas tão compatíveis com as elites tradicionais de direita, de cuja ajuda dependiam para conquistar o poder.  Na percepção de seus contemporâneos, o fascismo era um movimento de extrema direita³"                 

      Sobre a pretendida ojeriza de Hitler aos aristocratas, voltemos a Lukacs, insuspeito de qualquer esquerdismo:

"Não temos prova de que, antes de 1919, ele demonstrasse qualquer profunda insatisfação com a ordem da sociedade alemã, exceto, talvez, pelo desejo de ver certos elementos (socialistas, judeus, internacionalistas) excluídos de posições influentes"4.

       O mesmo autor revela que desde a explosão de ressentimento que vivenciou em 1919 Hitler identificou que seus aliados potenciais estariam, em grande número, "nas classes nacionalista e conservadora"5, e nos dois anos seguintes se entrosou nos "círculos conservadores de Munique"6.
       O argumento de que Adolf Hitler assumiu a liderança de um "partideco de esquerda" é completamente descabido.  De acordo, novamente, com Stackelberg, desde o fim da guerra ele estava imbuído das "fantasias da direita radical", segundo a qual o conflito havia sido fomentado pelos judeus para enfraquecer o czarismo, regime de natureza anti-semita.  Em setembro de 1919, foi incumbido pelo próprio Exército de monitorar as ações do pequeno Partido dos Trabalhadores Alemães, uma das muitas organizações criadas no pós-guerra com a finalidade de "atrair trabalhadores para a causa nacionalista".  Tornando-se líder do partido, no ano seguinte mudou seu nome, efetivamente, para Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães.  Ainda em 1920, Hitler se alinhou com as forças que apoiavam o governador da Baviera, o conservador (e monarquista) Gustav von Kahr, no sentido de derrubar a República de Weimar7. 
        A alusão ao objetivo de "socializar o povo", tão difundida na Internet, também parece imprecisa.  Lukacs narra que diante da acusação de que desejava nacionalizar a indústria alemã, Hitler disse: "Por que deveria nacionalizá-la?  Eu nacionalizarei o povo"8.  Creio que não preciso recorrer aos dicionários para convencer o instruído Pedro Mundim de que socializar e nacionalizar são termos com campos semânticos bem distintos.  Mas suponhamos que se trate de um grave erro de tradução.  Em discurso de 1937, o chanceler do Reich declararia, deixando clara sua opção pela "livre iniciativa":

"Se os industriais alemães me dissessem: 'Nós não podemos fazer isso', eu responderia a eles: 'Ótimo.  Vou me encarregar disso, porque terá de ser feito'. Mas, quando a indústria me diz, 'Podemos fazer isso', então fico muito satisfeito, por eu mesmo não ter de fazê-lo"9. 

       Quanto ao apoio de conservadores, burgueses ou aristocratas, ao nazismo, não custa lembrar que temos em perspectiva uma relação de mão dupla.  Robert Paxton aponta que o único Land (estado) alemão a dar maioria absoluta aos nazistas foi o Schleswig-Holstein na eleição de julho de 1932, quando aquele partido recebeu 51% dos votos.  Esta vitória se deveu basicamente ao voto rural (64% pró-nazismo), sendo que os nazistas, depois dos maus resultados de 1924 e 1928, tinham se voltado para os fazendeiros.  Diante da situação de crise, com a queda radical dos preços de seus produtos, os agricultores locais, que tradicionalmente votavam no Partido Nacionalista Conservador (DNVP), se bandearam para o lado de Hitler. 
        Peço desculpas pela relativa demora em responder, motivada pelo andamento da minha tese e não por excessos carnavalescos.  Prosseguirei o mais breve possível.               
              

Notas:

1-John Lukacs.  O Hitler da História.  Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 76-77.
2- Roderick Stackelberg.  A Alemanha de Hitler: origens, interpretações, legados.  Rio de Janeiro: Imago, 2002, p. 25.
3- Idem, p. 31-32. 
4- Lukacs, p. 68. 
5- Idem, p. 68-69.
6- Ibidem, p. 72. 
7- Stackelberg, p. 109-110.
8- Lukacs, p. 75.
9- Idem, p. 75.
10-Robert O. Paxton.  A anatomia do fascismo.  São Paulo: Paz e Terra, 2007, p. 115-116.

2 comentários:

  1. Vejo que a discussão prossegue, e há muitos aspectos a ressaltar. Mas quem se propõe a delinear a história dos movimentos político-ideológicos, tem basicamente dois pontos a considerar: os fundamentos filosóficos da ideologia e os métodos de ação empregados para tomar e permanecer no poder. É redundante dizer que não costuma haver muita coerência entre esses dois pontos, mas cada um deles é coerente dentro do escopo de seus objetivos.

    Comecemos pelos fundamentos filosóficos. Há muito o que discutir aqui. Vou citar uma frase do jornalista Sebastian Haffner, autor de uma biografia/ensaio publicada em 1978, "Um Tal de Adolf Hitler", que não se aprofunda nos relatos, mas é original e foge aos chavões normalmente repetidos pelos historiadores quanto a Hitler e o nazismo:

    "...'A História de todas as sociedades até os nossos dias é a história da luta de classes...' lê-se no Manifesto Comunista. Em Hitler encontramos o seguinte, que soa totalmente análogo: 'Toda a história do mundo não passa da manifestação do instinto de conservação das raças'. Tais frases tiveram uma enorme força sugestiva. Quem as lê tem a impressão de haver subitamente encontrado a luz, a chave para aquilo que não entendia: o que era obscuro torna-se simples, o difícil, fácil"

    Por certo que uma doutrina que propugna uma hierarquia superior-inferior, deixa claro que nada tem contra a desigualdade; muito pelo contrário, opõe-se, isso sim, à igualdade. Mas trata-se de uma hierarquia entre raças, e não entre classes sociais. De acordo com os fundamentos da doutrina nazista, não faz qualquer sentido a idéia de que devem existir classes sociais privilegiadas, se tanto ricos quanto pobres são membros de uma mesma raça. Por este motivo, a "socialização de homens" levada a cabo por Hitler, que efetivamente trouxe uma deslegitimação das diferenças sociais, não deve ser vista como simples engodo, mas como um objetivo coerente com as propostas de sua ideologia. Existe, efetivamente, um paralelo entre os fundamentos filosóficos do nazismo e do socialismo, e por certo um regime policial de direita não destacaria um agente para espionar um partido de direita: o partido nacional-socialista dos trabalhadores alemães, que Hitler foi encarregado de investigar, era considerado na época, efetivamente, como um partido radical de esquerda. Hitler aderiu a este partido por afinidades ideológicas, não por outro motivo.

    Falando agora das táticas empregadas para conquistar e conservar o poder, ditadas pela situação objetiva, essas são mais fáceis de explicar: nazi-fascistas e socialistas disputavam o mesmo público, constituído de operários, intelectuais descontentes e desajustados em geral (e isso se aplica também à luta entre comunistas e integralistas no Brasil dos anos 30). Portanto, tinham aí posições inconciliáveis: tal como dois bandos mafiosos que disputam o mesmo mercado, a luta entre ambos só teria fim com o extermínio de um bando pelo outro. Mas como os conservadores constituíam um público diferente, centrado na classe média acomodada, podia haver aí uma posição inconciliável em termos filosóficos, mas não em termos práticos: esses elementos conservadores podiam ser cooptados, como efetivamente o foram em diversas ocasiões, tanto por nazi-fascistas como por comunistas, sempre com o objetivo da conquista do poder por esses movimentos.

    ResponderExcluir
  2. Demoro a responder, e tento ser o mais breve possível:

    É certo que os métodos de ação e as estratégias para a tomada do poder interessam ao historiador. Mas a ideologia é um campo distinto; se desconsiderarmos este "detalhe", caímos no absurdo de ver como idênticos todos os regimes unipartidários ou todos os governos que se estabeleceram pela força.
    A associação construída no terceiro parágrafo também é bastante forçada. O fato de duas ideologias lidarem com uma noção que talvez possa ser chamada genericamente de motor da História não as torna idênticas, sobretudo quando estes motores são identificados em lugares diferentes. Acreditar no contrário é pretender que todas as filosofias deterministas sejam iguais, o que implicaria, por exemplo, em colocar o calvinismo, com a sua premissa da predestinação ao céu ao ou inferno, no mesmo balaio que os fascismos.
    Você não apresentou, igualmente, qualquer argumento consistente para poder classificar o nazismo "primitivo" como um movimento de esquerda. Caso partamos do princípio de que "uma direita não espiona outra direita", os expurgos stalinistas, por analogia, caem no terreno do incompreensível. Por que o governo soviético teria interesse na morte do esquerdista Trotsky?
    Os esquemas finais são ainda mais frágeis. Mesmo que atraíssem virtualmente todos os operários, o que estava longe de ocorrer, se considerarmos a força parlamentar dos comunistas alemães no começo dos anos 30, e ainda os "marginais", os nazistas passariam longe dos 37% que constituíram seu recorde eleitoral enquanto durou o sistema multipartidário. Afirmar que o nazismo foi um "movimento da ralé" é uma simplificação tão tosca quanto atribuir a ascensão de Hitler à classe média baixa ou a uma burocracia medíocre, como outros já fizeram. Gostaria, por fim, de ser apresentado a alguma situação específica em que a "classe média conservadora acomodada" tenha sido cooptada por comunistas. Sem fontes, certas afirmativas parecem retórica vazia.

    ResponderExcluir