quinta-feira, 6 de junho de 2013

Não se deve, de fato, respeitar

       
       Uma conversa pelo Facebook com o amigo e leitor Roni Kurono me levou a correr os olhos por certo fórum conservador.  Estava prestes a sair entediado, depois de ler que maçons são conspiradores satânicos, que os "magnatas da prostituição" hoje se aliam aos comunistas, que a entrada de Guilherme Afif no governo Dilma foi mais uma manobra da esquerda subversiva, que as bravatas dos manifestantes franceses contra o casamento gay representaram uma grande vitória moral e política e outros clichês e delírios típicos de reacionários desorientados.   Entretanto, no segundo anterior ao clique fatal um tópico pareceu digno de atenção: o dono da página celebrava uma apologia do Império feita por Ruy Castro e enaltecia a Folha de São Paulo por dar espaço ao artigo do escritor, publicado em 29 de abril de 2013.  
      Apresento abaixo o link e reproduzo na íntegra o texto, pequeno e sem  maiores pretensões, mas melodioso para quem aprecia fábulas históricas e mitos fundadores:       

       Devo dizer antes de tudo que uma efetiva transformação da Casa da Marquesa de Santos em Museu da Moda seria um evento grotesco, a ponto de não permitir críticas com um mínimo de polidez. Esclareço igualmente que não elegi Ruy Castro como o novo espécime de direitista a ser apedrejado em público, apesar de suas declarações infelizes.  Vamos a elas.
     Não é exato que o Brasil tenha sido o único país da América governado por reis e imperadores. O México teve Agustín de Iturbide e Maximiliano de Habsburgo.  No Haiti reinaram Henri Christophe e Faustin Soulouque.  Mas consideremos que, dispondo de espaço reduzido, Ruy Castro quis apontar que somente no Brasil a monarquia vingou. Neste caso, ainda que correto no aspecto factual, ele cai no erro de dar à renúncia de D. Pedro I uma conotação de desprendimento ("abdicou por seu filho"), quando aquele gesto, na verdade, constituiu uma tentativa bem sucedida de salvar a dinastia submetida a um desgaste político extremo.
       O deslumbramento com a nobreza imperial é descabido.  Para comprová-lo podemos, conforme a vontade do leitor, pensar no elevado número de traficantes de escravos que receberam honrarias, nas divertidas caricaturas que expunham os preços pagos pelos títulos ao Ministério do Império ou ainda em seu uso político despudorado por parte dos dois imperadores. Pedro I concedeu mais comendas da Ordem de Cristo, privativa de sua família, do que todos os reis de Portugal reunidos. Pedro II, em iniciativa desesperada para salvar o regime nos anos de total decadência, distribuiu centenas de baronatos, inclusive a figuras das mais irrelevantes,  na ânsia de recuperar apoios perdidos.  "Sai daí cão, que eu te faço barão", repetiam os mais gozadores. 


    
      Ruy Castro também parece sugerir, acompanhando historiadores de postura ideológica conservadora, que somente o regime monárquico poderia ter preservado a unidade territorial brasileira, o que é outra mistificação.  Não foi o prestígio de um imperador menino que impediu as secessões do Pará, da Bahia e do Rio Grande do Sul, e sim as vitórias militares do governo central sobre os movimentos que conflagraram estas províncias durante o Período Regencial.  Não é excessivo recordar que, na vizinha Argentina, a província de Buenos Aires, superior em recursos financeiros e dispondo de armamentos mais modernos, pôde sufocar no século XIX os separatistas de várias regiões  e impedir a fragmentação do país sem abrir mão do modelo republicano.     
     O pior de tudo, porém, é o arremate:     

E por que esmaecer ainda mais a memória do Primeiro Reinado, de d. Pedro 1°, a quem o Brasil, de certa forma, tudo deve?

     Tiremos da gaveta algumas "promissórias da nossa dívida", apenas o suficiente para avaliar o quanto somos ingratos com o discutível herói:

.Já em 1823, a Assembleia que deveria elaborar a primeira Constituição brasileira expressava descontentamento diante dos privilégios concedidos por Pedro I aos naturais de Portugal, do desrespeito à liberdade de imprensa e das prisões arbitrárias de políticos oposicionistas.  Quando os parlamentares tentaram incluir limitações ao poder do imperador no texto constitucional, tropas do Exército foram enviadas para fechar a Casa, que teve membros presos e exilados.

.Autoritário por natureza, Pedro I nomeou para a presidência da província de Pernambuco, em 1824, Francisco Paes Barreto, homem rejeitado pelos grupos políticos locais.  O incidente ampliou entre os pernambucanos a insatisfação gerada pelo fechamento da Constituinte e pela gestão centralizadora do imperador. O quadro teve desfecho na rebelião conhecida como Confederação do Equador, que se estendeu ao Ceará, ao Rio Grande do Norte e à Paraíba.  Na sequência da ação repressiva, foram executados o Frei Caneca e o Padre Mororó.   

.Após o batizado de uma das filhas de Pedro I com a marquesa de Santos, em maio de 1824, o padre declarou na certidão correspondente que a menina era filha de pais incógnitos, de acordo com a legislação da época, que não permitia o registro de filhos nascidos de relação adulterina.  O bispo do Rio de Janeiro, D. José Caetano da Silva Coutinho, enfrentou o protesto do imperador, respaldando a postura de seu subordinado e deixando de frequentar o Paço Imperial.  Pedro I fez uso do Ministério da Justiça para obrigar o prelado a retornar às cerimônias da Corte, inclusive beijando-lhe a mão.  Por fim, em ato oficial de 1826 que transgredia tanto o direito civil quanto o eclesiástico, transformou a criança na duquesa de Goiás, oficialmente havida de "mulher nobre e limpa de sangue".

.Envolvido desde 1825 na Guerra da Cisplatina contra as Províncias Unidas do Rio da Prata, o governo imperial cometeu sucessivos erros na condução militar do conflito, se mostrando incapaz de vencer um adversário muito inferior em população e recursos econômicos.  Pedro I, na Fala do Trono de 3 de maio de 1827, se referiu aos críticos de sua atuação como "monstros que só estão esperando ocasião de poderem saciar sua sede no sangue daqueles que defendem o trono, a pátria e a religião".  Dois meses depois, contudo, se viu forçado a iniciar negociações de paz com o governo de Buenos Aires e, em agosto do ano seguinte, reconheceu a perda do território cisplatino, convertido na República Oriental do Uruguai. 

.Ao longo de seu reinado, Pedro I favoreceu a dependência do Brasil diante da Inglaterra. Os produtos ingleses continuaram sujeitos à diminuta alíquota de importação de 15%, quando este tipo de tributo representava grande parte da receita do Império.  Os cidadãos britânicos residentes em solo brasileiro eram  julgados em Cortes especiais, o que constituía violação  flagrante do texto constitucional. 
 


.Absolutista envergonhado, Pedro I reagiu às críticas de muitos jornais ao seu governo, no ano de 1830, afirmando que cabia ao Poder Legislativo reprimir os "abusos" da imprensa.  Seus seguidores provavelmente promoveram o assassinato do jornalista de origem italiana Líbero Badaró, oposicionista, na cidade de São Paulo.   



    A mitologia bragantina é no mínimo um conjunto de piadas prontas, e no máximo uma excrescência cultural.




4 comentários:

  1. Texto maravilhoso! Muito educativo!

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  2. Magnifico, Prof.Gustavo! Vc Desmascarou os monarcuxos caricatos!

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  3. Mas que festival de besteiras! D. Pedro I é o fundador e herói da nação! Em breve, com a graça Divina a monarquia vai voltar e Sua Alteza Imperial e Real, D. Luiz de Orleans e Bragança será coroado Imperador!

    Doutor Ramos Figueiredo.

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    1. Rapaz, fiquei sensibilizado. Vou até organizar uma vaquinha para inteirar o seu Haldol.

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