sábado, 31 de agosto de 2013

Médicos cubanos: por que, de fato, eles incomodam a direita

     

        A rejeição à presença dos médicos cubanos que estão ingressando no Brasil através do programa Mais Médicos, do governo federal, uniu nas últimas semanas parlamentares de partidos conservadores e diversas entidades de classe, cujas declarações e manifestos desfrutaram de boa repercussão na mídia.  As vulgarizações livres do tema difundidas na Internet, entretanto, alcançam um volume muito maior.  A cada minuto, notícias das mais estapafúrdias são criadas ou distorcidas no sentido de predispor os potenciais usuários e o público em geral contra os cubanos.  Os participantes da campanha, em certos casos, não ocultam sua intenção de criar uma atmosfera de intimidação contra aqueles profissionais. 
         Uma viagem completa por esta gigantesca fábrica de boatos consumiria meses.  Seleciono, então, exemplos das "teses" mais recorrentes, o suficiente para caracterizar a má fé e a irracionalidade de uma direita virtual em grande parte formada por verdadeiros papagaios de pirata do tipo mais ignorante. 
              
1-Os médicos vão receber uma ínfima parcela das verbas pagas pelo governo.

A “importação” dos médicos cubanos é o único caso em que a remuneração de R$ 10 mil não será paga diretamente ao profissional, mas à ditadura, com a intermediação da Organização Panamericana de Saúde. O médico cubano só receberá uma pequena parcela do salário, cerca de 7%.

A simples menção aos locais em que os médicos trabalharão já é suficiente para desqualificar tamanha insanidade.  A suposta remuneração de 7% corresponde, a grosso modo, ao salário mínimo vigente.  Mesmo contando com a moradia gratuita fornecida pelas prefeituras, os cubanos simplesmente não teriam, em povoações onde praticamente tudo é mais caro, como suprir necessidades mínimas de alimentação, vestuário e higiene.




2-Os cubanos não entenderão seus pacientes pelo desconhecimento do português. 
Como será a comunicação entre os médicos cubanos, que não falam Português, com seus pacientes, que em sua imensa maioria não entendem Espanhol?

A apresentação do programa deixa claro que todos os estrangeiros terão aulas da língua nacional.  Certamente, algumas dezenas de horas de estudo não transformarão nenhum deles em candidato à Academia Brasileira de Letras, mas ninguém diria que há barreiras linguísticas intransponíveis entre falantes de português e de espanhol.  É difícil imaginar que diante da instrução de "poner gotas en la nariz" os pacientes pensem que chegou o momento do supositório.  Além disto, os demais profissionais existentes nos hospitais e postos de saúde são brasileiros e poderão facilmente esclarecer os termos mal compreendidos por ambas as partes.

  
3-Os cubanos serão submetidos a trabalho escravo.

A vaia na verdade foi para aquelas pessoas que tiveram a ideia absurda de trazer esses médicos para cá, inclusive com trabalho escravo sem nenhum compromisso a não ser com o compromisso ideológico do partido dos trabalhadores.

Estamos diante de uma baboseira panfletária, contra a qual basta atentar para uma definição básica de trabalho escravo. 

O conceito de trabalho escravo utilizado pela OIT é o seguinte : toda a forma de trabalho escravo é trabalho degradante, mas o recíproco nem sempre é verdadeiro. O que diferencia um conceito do outro é a liberdade. Quando falamos de trabalho escravo, falamos de um crime que cerceia a liberdade dos trabalhadores. Essa falta de liberdade se dá por meio de quatro fatores: apreensão de documentos, presença de guardas armados e “gatos” de comportamento ameaçador, por dívidas ilegalmente impostas ou pelas características geográficas do local, que impedem a fuga. 


Todo malabarismo retórico do mundo é insuficiente para caracterizar como escravagista um programa cujas regras de adesão e desligamento são formais e estão expostas à população na Internet. 




4-O dinheiro do programa servirá para sustentar o governo cubano, aliado do PT.

Os cálculos mais extremistas já calculam que esses 6 mil médicos custarão 1,84 bilhão de reais ano para o povo brasileiro. Claramente, a maior parte desse dinheiro não seria dada aos médicos, mas destinada para sustentar o governo cubano.

Segundo as estatísticas disponíveis, Cuba tem pouco mais de 11 milhões de habitantes e um PIB em torno de 60 bilhões de dólares.  Mesmo que os 40 milhões de reais mensais destinados aos 4 mil médicos entrassem diretamente nos cofres do governo da ilha, nem de longe bastariam para salvar um regime que, segundo as versões de tipo macarthista, está moribundo há vinte anos.  Contudo, "articulistas" para os quais "os cálculos calculam" oferecem tais surpresas!     

5-Os médicos não terão o direito de se sindicalizar. 
Os cubanos não têm diploma brasileiro, são pagos pelo governo cubano e virarão uma categoria à parte. Terão direito a se sindicalizar?


Embora a proposição não seja tecnicamente mentirosa, é cretina na melhor das hipóteses, e desonesta na pior.  Não haverá sindicalização porque o programa não gera vínculo empregatício.  Um sindicato de médicos estrangeiros bolsistas faz tanto sentido quanto um sindicato de alunos graduandos de História estagiários em colégios de aplicação das universidades federais.


6-Os cubanos são na verdade espiões a serviço do movimento comunista internacional.

Antes de tudo, os médicos cubanos são agentes de Fidel Castro, espiões a serviço do PT, para implantação do socialismo no Brasil, que é o objetivo final do Foro de São Paulo, criado por Lula e Fidel em 1990.

Os editais do governo, evidentemente, nada dizem sobre a proibição do alistamento de agentes secretos.  Mas só a mente de um escritor de Mídia sem Máscara, como Felix Maier, o autor da pérola, é capaz de conceber que milhares de espiões entrarão no país com seus nomes verdadeiros, tendo paradeiros conhecidos e cumprindo cargas horárias fixas em locais onde todos poderão vê-los e monitorar seus passos, com o agravante de serem estrangeiros, fato que tende a despertar ainda mais a curiosidade de moradores de cidades pequenas.    

           É desnecessário apontar as motivações para a histeria provocada pela chegada de milhares de cubanos ao Brasil entre as numerosas seitas neoconservadoras ou fascistófilas que se multiplicam na Internet. Entretanto, vemos o mesmo estado de espírito se apossar de organizações e indivíduos capazes de cálculo político bem mais fundado na realidade.  
          Possivelmente, algumas pessoas de mentalidade elitista já pensaram mais ou menos nestes termos: "Os cubanos, familiarizados com uma Medicina de caráter preventivo, vão condicionar pobres a sempre lavarem as mãos antes de comer, a não construir poços ao lado de fossas e a tomar outras providências que reduzirão a mortalidade infantil.  Com isto, além de contribuir para a reeleição de Dilma, farão com que um contingente extra de nortistas, nordestinos e sertanejos alcance a idade adulta, aumentando a pressão demográfica sobre a classe média e os ricos dos grandes centros".  
       Não menosprezo o impacto psicológico de ponderações deste gênero, mas julgo que, em particular no caso das entidades médicas que se insurgem, os temores vão muito além.  O sucesso, ainda que localizado, de um programa como o Mais Médicos, pode levantar sérios questionamentos sobre a função da Medicina na sociedade brasileira. Embora, diante dos inúmeros exemplos de compromisso verdadeiro com a saúde pública que encontramos entre os médicos do país, não possamos generalizar, é igualmente certo que muitos jovens ingressam na profissão tendo em vista o enriquecimento rápido, seja pelo atendimento exclusivo a uma clientela de alto poder aquisitivo, seja pelo acesso à propriedade de clínicas e hospitais onde pagarão o mínimo possível aos "colegas" e cobrarão o máximo possível aos planos de saúde, que por sua vez repassarão a conta para os usuários. O estabelecimento de relações não capitalistas no setor, mesmo que limitadas a regiões pobres e pouco povoadas do território, em nada interessa a estes segmentos.  Tudo o que eles não desejam é uma Medicina que, sem fins lucrativos, diminua em grande proporção o número das mortes ditas evitáveis e prolongue a expectativa de vida dos que definitivamente não têm dinheiro para pagar.                            
     




13 comentários:

  1. Faltou um outra ''tese'' muito difundida por ai Gustavo. É a de que médicos cubanos não poderiam sair de cuba a não ser em missões oficiais do governo logo seriam prisioneiros e portanto escravos. Obviamente isso não sobrevive a uma pesquisa no google porem seria bom você divulgar links como este: http://www.cubaencuentro.com/cuba/noticias/nueva-politica-migratoria-permitira-a-los-medicos-cubanos-viajar-al-exterior-282561

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  2. Meu comentário não é sobre o artigo, o cara de cima já falou o básico do que eu falaria. O meu comentário é sobre a sua descrição do blog. "Este é um espaço destinado aos que sonham e se empenham na construção de uma sociedade verdadeiramente igualitária..." Você não pode montar uma colmeia usando gatos. Liberdade ou igualdade, as duas são como água e óleo. Escolha uma e a outra vai sofrer.

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  3. Tudo depende das suas definições de liberdade e igualdade, que não foram colocadas. Se a liberdade de que se fala é a que já foi cinicamente chamada de "liberdade de possuir escravos", não tenho de fato nenhum conflito de consciência em mandá-la para o sacrifício. Pouco me importa se alguém se apresentará para lavar a louça dos seus netos.

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    1. Bom, se o caso é de fazer metáforas sobre o trabalho escravo, isso qualquer um pode fazer. Relativizar é mais simples do que particularizar. Eu próprio não concordei, aqui, em rotular os médicos cubanos de escravos, pois se fosse assim, qualquer trabalhador terceirizado seria um escravo. Mas se você considera escravo um trabalhador doméstico que lava louças... bom, não acho que seja uma desgraça que nossos netos não tenham quem lhes lave as louças, pois há muitos países ricos no mundo onde pessoas comuns não têm quem lhes faça esse serviço, e apesar disso todos lá vivem melhor e mais felizes do que nós. Mas também há, no mundo, muitos trabalhadores que não têm qualificação para nenhum outro emprego que não seja o de lavar as louças de alguém, e se não puderem trabalhar nesse emprego, estariam passando necessidades.

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    2. O protesto carece de sentido, até porque, como eu disse acima, você não expôs seu conceito de liberdade ou de igualdade, muito menos de trabalho escravo. Na verdade, parece jogar para a plateia, visto que quando fiz alusão à velha máxima "os homens livres precisam de escravos" é evidente que não se tratava de escravidão propriamente dita nos moldes da Casa Grande & Senzala. Entretanto, acabou esclarecendo por linhas tortas a minha própria fala: "pouco me importa se alguém lavará a louça" significa, de fato, " tomara que daqui a quarenta anos todos tenham condição de fugir desta alternativa" e não "um dia será proibido ter empregados domésticos".

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  4. Francisco Vasconcelos3 de setembro de 2013 às 00:22

    E por que os cubanos não fazem o revalida e nem podem pedir asilo político no Brasil?

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  5. Por que pediriam asilo, se em tese todos são voluntários e não presos ou processados por razões políticas?

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  6. Francisco Vasconcelos3 de setembro de 2013 às 09:16

    Quer dizer que eles só podem pedir asilo se eles tiverem sendo presos ou processados em Cuba? Aí a gente teria que torcer para que eles fujam da prisão, peguem carona num jatinho ou montem uma balsa para fugir de lá? Uma história dessas daria um bom livro ou mesmo um filme. Aliás, muitas delas aconteceram, não é verdade?

    Se eles querem ou não pedir asilo político nós não podemos saber. Não cabe a mim e nem a você especular se eles realmente estão aqui de boa ou má vontade, nem se eles se sentem coagidos ou não pelo governo cubano, e nem definir se há ou não razão no pedido. Mas por que o nosso governo já nega, a princípio, qualquer tentativa de asilo político? Isso é realmente necessário para os que são, em tese, voluntários? Me parece que o governo não pensa como você ao tomar essa atitude 'preventiva'. É justamente porque se espera que alguns cheguem a desertar, que se toma esse posicionamento. É uma medida para frustrar qualquer tentativa de pedido de asilo político. Neste caso eu lhe pergunto: você concorda com a atitude do nosso governo?


    E o revalida? Por que nós temos que confiar em quem não faz a prova?
    Vamos fazer uma analogia: você acha que se eu, que não sou médico, me candidatasse a voluntário (mesmo que seja para não ganhar um mísero centavo) deveria exercer ilegalmente a medicina pelo simples fato dos órgãos competentes se negarem a me fiscalizar?

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  7. A pergunta sobre o Revalida, embora pertinente para quem é da área, não deixa de ser instrumentalizada como propaganda anticubana rasteira. A medida provisória do governo excluiu todos os médicos estrangeiros do programa do exame, não apenas os cubanos.
    De resto, você parece ignorar, ou finge que ignora, o sentido do termo asilo: se um indivíduo está inscrito voluntariamente, até prova em contrário, em programa de intercâmbio com um governo estrangeiro, se não sofre processo ou qualquer restrição legal formal em seu país, como será classificado como perseguido político? É evidente que, em um universo de quatro mil pessoas, algumas fatalmente resolverão viver no Brasil e talvez, conforme o seu discurso, "desertem". Neste caso, se transformarão em imigrantes irregulares, cabendo ao governo brasileiro decidir se convém a sua permanência ("legalizando-os") ou a deportação. São asilados os milhares de mexicanos que se jogam todos os anos no Rio Grande para chegar aos EUA? São asilados os bolivianos que vão para São Paulo sem papéis para trabalhar em confecções clandestinas?

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  8. O Ministério da Saúde adverte: ler esse post pode causar diarreia, azia e preguicite aguda. O Ministério do Trabalho recomenda: dê uma enxada para o autor do blog e mande-o carpir quintais para ser mais útil à sociedade.

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    1. Calculo o percentual de ocupação produtiva do tempo que tem o autor do "comentário", enquanto paradoxalmente fala de preguiça e inutilidade.

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  9. Por que será que um "esquerdista" quer sempre colocar a direita como reacionária?
    Na verdade os esquerdistas mal sabem o que significa "direita". E não estou aqui para defender nada, mas para que as pessoas se informem mais para os debates.A maioria da esquerda festiva é repetidora de slogans advindos de lavagem cerebral, sem sequer procurar informação que revele algum conteúdo substancial e com resultados positivos. O que está acontecendo no Brasil deveria ser um bom ilustrativo para derrubar as contradições. É uma pena! Um País tão bonito e com tantos mal intencionados, travestidos de "tudo pelo social", sim! Dos próprios bolsos e interesses escusos.
    Será que a esquerda é tão pura assim a não faz lambança com o "estado de direito" que deve reinar numa democracia? Está havendo uma febre esquerdista na América Latina de tal forma cega que estamos vendo os estragos na Venezuela e em outros países

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    1. Caso tenha lido com atenção, você certamente percebeu que não criei um espantalho. Apenas comentei um punhado de frases de articulistas assumidamente de direita, e se quisesse poderia multiplicar os exemplos com muita facilidade.
      Quanto à segunda "acusação", fico privado de possibilidade de defesa, visto que, apesar do protesto, você também não esclareceu o que é direita. Acrescento, porém, que não são poucos os direitistas que, restringindo seu campo político a um punhado de intelectuais que juraram o decálogo X, ou a carta Y, tentam se livrar de um grande número de fantasmas inconvenientes. Faltam-me elementos para comprovar, mas temo que este seja a sua situação.
      Sobre slogans vazios de conteúdo, esta é a pior ocasião para um direitista tocar no assunto, visto que estamos discutindo justamente pérolas coxinhas como "os cubanos vieram fazer trabalho e escravo" e "o Brasil vai sustentar a ilha comunista". Não nego a existência de diversos oportunistas em partidos de esquerda, mas o histórico dos governos liberais, neoliberais e conservadores demonstra que, da direita, nada se pode esperar "pelo social".
      A referência ao Estado de Direito se torna um verdadeiro tiro no pé, se partirmos para um inventário, mesmo que superficial, dos inúmeros golpes de Estado executados por conservadores e filoamericanos ao longo dos séculos XX e XXI.

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