quarta-feira, 28 de agosto de 2013

O mito isabelino: um breve comentário com interferência acidental de médicos cubanos



           A recente vinda de médicos cubanos para o Brasil enfureceu grande parte dos articulistas conservadores do país, bem como as entidades supostamente representativas da categoria, em regra também conservadoras e burguesas à décima potência.  Além dos textos de tipo convencional, a direita militante vem produzindo numerosas peças de propaganda no sentido de mobilizar a opinião pública contra a medida adotada pelo governo federal.  Tratarei diretamente do assunto em outra postagem.  Por ora, volto meu foco para uma montagem que tem circulado pelas redes sociais, tosca sob o ponto de vista intelectual, mas bastante esclarecedora a respeito do perfil de certa juventude dita politicamente incorreta.  



           Não discutirei por enquanto as premissas imbecis de que os recém-chegados são  instrutores de guerrilha e que sobreviverão em regiões de difícil acesso com uma mesada inferior ao salário mínimo.  O que me desperta a atenção no quadro é o reforço de um velho mito que ultrapassa em muito as fronteiras dos círculos monarquistas: a imagem da princesa bondosa que, afrontando senhores intransigentes e perversos, redime o povo negro do Brasil.  
             Afirmar que "a princesa Isabel aboliu a escravidão" não passa de uma distorção grosseira, ainda que difundida por toda parte.  Como regente do Império, ela sancionou uma lei aprovada no Parlamento com cerca de 90% de votos favoráveis.  Seria espantoso, ao contrário,  que Isabel de Bragança aplicasse um veto que afrontaria a maioria esmagadora das forças políticas do país.  Os perpetuadores do mito, com malícia, passam igualmente ao largo de duas outras informações das mais básicas: 

.A escravidão, desde a Lei do Ventre Livre, de 1871, estava condenada à morte por inanição, mesmo que alguns escravocratas sonhassem com o adiamento das últimas alforrias para a terceira década do século XX.
.Em decorrência das leis anteriores, das libertações espontâneas ou negociadas e da alta mortalidade dos cativos das fazendas, a Lei Áurea emancipou um contingente de escravos que não ultrapassava 5% do total da população brasileira.

            Os apologistas "modernos" da princesa Isabel, tal como seus antecessores de cem anos atrás, ou mais, apelam, na tentativa de sustentar seu ícone, para duas figuras que representaram no cenário pré-Abolição extremos inconciliáveis: o barão de Cotegipe e José do Patrocínio.  Do primeiro, resgatam a frase de efeito "Vossa Alteza redimiu uma raça, mas perdeu o seu trono"; do segundo, relembram a atitude de se prostrar diante da herdeira de Pedro II e lhe dar o título de Redentora.  Oportunamente, se esquecem de que a fala de Cotegipe estava carregada do rancor de um escravocrata decrépito que de certa forma acabava de perder a batalha mais importante de sua trajetória política, e de que Patrocínio, após o delírio de uma curta febre monarquista, participou de forma ativa da instalação do regime republicano. 
           O mito isabelino não se mantém apenas pelo proveito que dele ainda pode ser extraído pelos fãs do velho Império caído de podre.  Ele serve, em proporção muito maior, aos conservadores de todas as linhagens, inclusive os mais ferrenhamente republicanos, interessados em fazer valer a noção de que as conquistas sociais derivam, ou devem derivar, da generosidade de indivíduos instalados no topo de uma elite.  Como sempre, mentem ou se enganam.  Sem as fugas coletivas dos escravos e a atuação dos militantes abolicionistas dispostos em certos casos a arriscar suas próprias vidas, a vergonha da escravidão teria se estendido por mais tempo, talvez até ultrapassando o marco da mudança do regime. Da mesma forma, só a sintonia com os partidos de esquerda e demais organizações populares, não obstante suas insuficiências e contradições, possibilitará aos trabalhadores impor ao Estado a direção que lhes convém.  Votando nos DEMs, PSDBs e "partidos novos" será impossível.           
                            
                 

16 comentários:

  1. Eu,de fato, acho mítica a narrativa de que Imperador teria perdido seu trono por que teria abolido a escravidão. Agora, no seu texto, você apenas crítica esse mito, mas não o refuta. Não creio que se basear na carreira do José do Patrocínio ou no Barão de Cotegipe seja um argumento sério para derrubar essa narrativa.

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    1. Eu poderia, em princípio, descrever todas as crises que minaram as bases políticas do trono desde 1868. Mas, neste caso, o texto deixaria de ser um "breve comentário". Além disto, trata-se de "refutar" um lugar comum, e não um trabalho acadêmico. Nenhum especialista defenderia, em 2013, uma tese tão simplória. Por fim, como você mesmo confirma que estamos diante de um mito, não briguemos: apresente seus próprios argumentos, se quiser.

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  2. Essa direita está tentando se articular por todos os lados, estão saindo dos porões como se fossem ratos. É preciso dar porrada esclarecida em cada barbaridade. Parabéns pelo texto. Eu também escrevi sobre o Livro de Narloch, e já vão chegando uns trolls da vida no meu blog:
    www.militante-imaginario.blogspot.com

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  3. xeque-mate nesses retardados mentais analfabetos em historia

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    1. Eles pensam que são os únicos alfabetizados, porque supostamente não foram contaminados por uma "entidade comunista" chamada MEC!!!

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  4. Mary Del Priore deixa bem claro no seu livro Principe Maldito os porquês da abolição, o modo de governar da familia real e seus podres, é um ótimo livro do inicio ao fim, com leitura leve e envolvente e acaba com esse analfabetismo midiatico

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  5. É fato que idealistas ingênuos aproveitaram a imagem de uma princesa bondosa para materializar a metáfora de que a elite que a princesa representava também seria bondosa, tanto que aboliu a escravidão em um gesto de magnanimidade. Isso enfurece militantes afro, que querem a todo custo desconstruir o mito da redentora e substituir a princesa pela figura de Zumbi dos Palmares, um líder guerreiro, a fim de afastar qualquer sugestão de conciliação de classes.

    Mas também é preciso reconhecer que não foi coisa armada: até pouco tempo antes, ninguém podia prever que seria Isabel quem assinaria a lei, pois o esperado era que o autor da chancela fosse Dom Pedro II, a quem sucedeu estar doente na ocasião. Alguns afirmam que Isabel teve um papel ativo na campanha abolicionista (não vou me estender aqui por falta de informação). Mas ao colocar sua assinatura no papel, como você mesmo reconheceu, ela estava apenas cumprindo a função burocrática indicada pelo constituição em vigor. Isabel não tem culpa do mito que foi posteriormente construído em torno dela. E uma coisa que os militantes não gostam de admitir, é que foram os negros recém-libertos os principais construtores do mito: imbuídos da mentalidade patriarcal e mística própria da época e das camadas pouco instruídas em geral, eles quase transformaram a princesa em uma santa popular, a ponto de provocar queixas de militantes abolicionistas, registradas em crônicas da época, nas quais eles lamentam que sua luta tenha sido pouco valorizada pelos negros, que preferiam adorar Isabel. E outra coisa que os militantes gostam ainda menos de admitir, é que no afã de desconstruir o mito da princesa redentora, eles também estão passando uma borracha em toda uma história de luta em prol da campanha abolicionista, luta essa que teve, sim, a participação de negros e homens do povo. Talvez assim consigam fazer a nova geração acreditar que a abolição em 1888 foi mesmo um mero gesto de magnanimidade de uma elite bondosa...

    Em tempo: considero que chamar os médicos cubanos de escravos é mesmo um enorme exagero, e que a idéia de que eles seriam agentes disfarçados com o objetivo de fazer a revolução é fantasia de alarmistas, pois atualmente nem Fidel Castro acredita mais em revolução. O verdadeiro propósito da preferência pelos médicos cubanos é que eles não são trabalhadores autônomos, mas empregados do governo cubano, e portanto terão que ir para os fundões que o governo cubano lhes indicar, conforme contrato firmado com o governo brasileiro. Já os médicos de outros países, na condição de trabalhadores autônomos, tenderão a se estabelecer nos mesmos centros urbanos preferidos pelos médicos brasileiros, e aí não adianta.

    Mas se não se trata de escravidão, isso tem outro nome: chama-se terceirização. Não sou a princípio contrário à terceirização - para certos tipos de serviço, é o contrato ideal - mas acho estranho que os comentaristas de esquerda, que sempre vociferaram contra a terceirização, a que chamam de precarização do trabalho, não tenham até agora manifestado sua desaprovação para com o regime de trabalho dos médicos cubanos... Será que alguém me explica isso?

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  6. Tentarei ser o mais breve possível.
    É certo que em 1888 a família imperial já não tinha mais interesse direto no trabalho escravo e que o encaminhamento da questão era vital para a imagem da monarquia perante os segmentos mais cultos da população, sem falar nos aspectos ligados às relações internacionais. Mas continuo apontando a falta de entusiasmo dos Braganças no processo de emancipação, vide o aviso de cautela de Pedro II a Dantas, em pleno ano de 1885. Também penso que uma abolicionista de fato, detendo o Poder Moderador, não conviveria durante anos com um Cotegipe na presidência do Conselho de Ministros, quando poderia lançar mão de muitos Joões Alfredos do Partido Conservador.
    Não nego o entusiasmo relativamente espontâneo de milhares de negros para com a princesa; porém, lembre-se de que a monarquia tentou capitalizar a Abolição de diversas formas para sobreviver. A formação da Guarda Negra, por exemplo, nada teve de espontânea. Ela contou com recursos, logística e deliberada tolerância do Estado. De um dia para o outro, homens tidos como meros bandidos de rua tornaram-se invisíveis para a polícia enquanto batiam e davam talhos em republicanos.
    [continua]

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  7. A mera troca da Santa Isabel da Lei Áurea pelo São Zumbi Guerreiro também é, sem dúvida, outra mistificação. Entretanto, temos importantes diferenças qualitativas na análise dos dois personagens. A primeira esteve no topo de uma elite político-econômica que se valeu da escravidão sem grandes conflitos de consciência durante mais de seis décadas, a ponto de só admitir o término do cativeiro depois de Cuba, na época uma simples colônia espanhola. O segundo, não obstante a enxurrada de detratores ávidos de atenção que reuniu nas últimas duas décadas, a ponto de ter sido transformado até num proto-Jorge Lafond, foi o chefe de milhares de homens que desafiavam em armas o poder metropolitano e eram vistos pelas autoridades como uma ameaça mortal à sociedade escravista colonial.
    [continua]

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  8. Registro, por fim, que o seu conceito de terceirização está inteiramente equivocado. Um terceirizado é alguém que substitui, muitas vezes por meio de contrato superfaturado, funcionário de carreira. A proposta na qual os cubanos foram enquadrados, em tese, é sua lotação onde simplesmente não há quem trabalhe. Ademais, nem todo contrato de trabalho com prazo determinado é necessariamente uma "precarização". Deixo o aprofundamento do tema para outros artigos.

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    1. Caro Gustavo, o que me chateia neste tipo de discussão está na confusão que a Direita faz entre o normativo e o objetivo, entre o que é e o que deveria ser. A "terceirização" dos médicos cubanos é apenas a expressão do fato de que Cuba, para preservar de alguma forma o regime socialista dentro de um mundo no momento neoliberal e globalizado, lançou mão da exportação de bens imateriais como a qualificação de sua mão-de-obra , agenciada para prestar serviços em troca de divisas, mais a exportação de bens de alta tecnologia (medicamentos e produtos biotecnológicos) - o que aparece claramente - quem diria! - nas estatísticas oferecidas no último número da "insuspeita" "Veja". Independentemente do julgamento moral que se possa fazer sobre tal coisa, trata-se de estratégia a mais racional possível para um país pequeno, com menos habitantes que o estado do Rio de Janeiro, historicamente agrário-exportador, e com acesso a capitais e tecnologias limitado pelo embargo americano. Mais ainda se pensa que a alternativa seria provavelmente a industrialização de tipo stalinista, autárquica, militarizada e autoritária de uma Coréia do Norte.

      Saudações_ Carlos Rebello

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  9. Cara, você precisa estudar mais. A princesa Isabel e toda a Família Imperial tiveram um papel decisivos no combate a escravidão. A Lei Aurea foi aprovada pelo parlamento e teve a assinatura final dela, até aí tudo bem, mas você omitiu que a própria princesa havia colocado um gabinete abolicionista no poder de "forma autoritária" ela derrubou o gabinete de Cotergipe e nomeou João Alfredo como primeiro-ministro, apesar de o poder moderador lhe dar esta prerrogativa, desde o inicio do reinado de seu pai sempre o gabinete era eleito formalmente pelos próprios parlamentares. Lembrando que os primeiros parlamentares abolicionistas só foram eleitos na década de 1880, o que mostra que seria Impossivel que de fato a escravidão fosse criminalizada antes. Fosse também esqueceu de que a princesa participava de fugas coletivas dos escravos e era sim uma militante abolicionista, além de que ela e seu pai sempre compravam a alforrias de escravos e participavam de campanhas para arrecadar fundos para os abolicionistas. Isto sem falar do projeto abortado pela república de distribuição de terras para negros libertos nas margens de ferrovias, para que eles conseguissem seu sustento, e como você mesmo disse em seu texto, a grande maioria dos negros já estavam livres.

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    1. Quanta bobagem em tão pouco espaço. A princesa Isabel não sacou "Cotergipe" [risos inevitáveis] do poder por idealismo ou capricho pessoal. O barão estava totalmente incompatibilizado com as Forças Armadas, que se afastavam cada vez mais do trono, e sua substituição não deixou de ter como objetivo a sobrevida do regime. Muito mais "autoritárias" foram as reviravoltas de 68 e 78, quando o Poder Moderador convocou para formar os respectivos gabinetes forças minoritárias com pouca ou nenhuma representação no parlamento.

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  10. Poucos trechos demonstram tão bem a posição da monarquia diante do cativeiro como este:

    As atitudes do governo durante o Gabinete Cotegipe contribuíram para o aumento da tensão entre os abolicionistas e os que desejavam a preservação do cativeiro. A proibição de “ajuntamentos em praças e ruas” quase provocou um confronto de graves proporções, segundo a Gazeta da Tarde de 8 de agosto de 1887, quando a Confederação Abolicionista do Rio de Janeiro organizou um meeting no teatro Polytheama. Durante o discurso de Quintino Bocaiúva, explodiram bombas dentro do recinto. Em seguida, entraram “policiais armados de cacetes”, que lutaram contra os assistentes. Após a expulsão dos policiais para o jardim, o recinto foi invadido por “um piquete de cavalaria e outro de infantaria”. O combate foi evitado após entendimentos mantidos entre os líderes e as autoridades policiais. O jornal informou que os espectadores foram para a rua do Ouvidor, protestando contra o governo e aclamando a Confederação Abolicionista.
    A proibição de reuniões públicas criava dificuldades para se alcançar o apoio da população. Com o intuito de contornar esta questão, os abolicionistas do Rio de Janeiro buscaram a solidariedade de figuras eminentes do cenário político, como o senador Dantas ou a princesa Isabel, convidados para participar de um meeting que seria realizado no centro da cidade. Eles não compareceram e os líderes do movimento, ao tentarem realizar o ato, foram impedidos pela polícia. A matéria da Gazeta da Tarde, de 9 de agosto de 1887, descreveu que houve “embate” entre as forças policiais e destacou a reação do povo, que jogou pedras contra a polícia, e a atuação das lideranças, que desistiram da manifestação para evitar uma “tragédia” maior. (NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das & MACHADO, Humberto Fernandes. O Império do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, pp. 377/378)

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  11. Não quero dizer, evidentemente, que D. Pedro II e a regente Isabel eram escravocratas na mesma proporção que um Cotegipe ou um Martinho de Campos. Mas o que se poderia esperar de fato da Casa de Bragança foi o que terminou por acontecer: uma abolição "lenta, gradual e segura", posterior à cubana (1886), atrasada até em relação às colônias portuguesas da África (1875).
    O problema em debater com monarquistas é sempre o mesmo: eles transformam uma família que há muito já deveria ter se resignado à cidadania comum numa espécie de conjunto de deuses encarnados que serão restaurados em alguma Idade do Ouro. Para salvar o mito, não hesitam em criar ou reproduzir fábulas das mais inconsistentes.

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