quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Um pouco de Gramsci, "meritocracia" brasileira e cotas




"A questão é complexa.  Decerto, a criança de uma família tradicional de intelectuais supera mais facilmente o processo de adaptação psicofísico; quando entra na sala de aula pela primeira vez, já tem vários pontos de vantagem sobre seus colegas, possui uma orientação já adquirida por hábitos familiares: concentra a atenção com mais facilidade, pois tem o hábito da contenção física, etc.  Do mesmo modo, o filho de um operário urbano sofre menos quando entra na fábrica do que um filho de camponeses ou do que um jovem camponês já desenvolvido para a vida rural.  Também o regime alimentar tem importância, etc., etc.  Eis por que muitas pessoas do povo pensam que, nas dificuldades do estudo, exista um 'truque' contra elas (quando não pensam que são estúpidos por natureza): veem o senhor (e para muitos, no campo, senhor quer dizer intelectual) realizar com desenvoltura e aparente facilidade o trabalho que custa aos seus filhos lágrimas e sangue, e pensam que exista algum 'truque' ".
(Antonio Gramsci.  Cadernos do cárcere, volume 2.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 52)   
       A passagem que transcrevo faz parte do caderno 12 de Gramsci, escrito em 1932, cujo título é Apontamentos e notas dispersas para um grupo de ensaios sobre a história dos intelectuais.  Somos levados de imediato a traçar linhas paralelas entre a sociedade italiana de oito décadas atrás e o Brasil contemporâneo. Neste, a vitalidade dos mecanismos de concentração de renda e saber, opressivos e onipresentes, nos permite distinguir com exatidão a classe social e o nível de instrução de uma pessoa após breves momentos de observação; em certos casos, sem que o observado tenha sequer a necessidade de abrir a boca.
       Tal como na Itália do Período Entreguerras, a naturalização dos abismos sociais é uma via de mão dupla: por um lado, as parcelas instruídas e endinheiradas da população não esperam que os filhos dos pobres e mal alfabetizados  alcancem mais do que uma alfabetização precária que lhes permita o acesso às mesmas tarefas de baixa qualificação e mal remuneradas exercidas por seus pais; de outro, muitos pobres se resignam à fórmula "filho de peão, peão é".  Veem a escola de seus filhos apenas como um "espaço seguro" onde os deixam durante metade do dia, um local de socialização pouco ou nada vinculado às relações que assumirão posteriormente no mundo da produção.  
       Do alto de uma experiência de quatorze anos na rede estadual e em algumas prefeituras do estado do Rio de Janeiro, eu poderia afirmar, sem dúvida, que conheci um número respeitável de exceções, de crianças, adolescentes e adultos que superando dificuldades estruturais obtiveram uma escolaridade real acima do padrão das comunidades em que vivem.  Entretanto, tais êxitos nem sempre se traduzem em oportunidades econômicas ou na aceitação social por parte de uma classe média com a qual continuam a não compartilhar espaços e de quem raramente  receberão tratamento igualitário.  O projeto de realizar um curso superior que venha a lhes garantir em definitivo a migração do trabalho braçal para o intelectual pode ser abortado de variadas formas, entre elas a mera precariedade do transporte entre as universidades públicas e as favelas e/ou comunidades interioranas.                  
       A leitura de Gramsci, porém, também nos devolve quase obrigatoriamente à discussão sobre cotas no sistema de ensino, em pauta há vários anos no país.  É notório que a maioria dos argumentos dos adversários desta política gira em torno de um determinado conceito de meritocracia. Ouvimos com frequência que cotas "discriminam os mais inteligentes", "estimulam a não estudar" e  "prejudicam quem estudou mais".  Poderíamos, sem grande esforço, encontrar e listar incontáveis variantes do discurso, mas o essencial é que, para os anticotistas, a concessão de qualquer tipo de bônus aos pobres, negros, índios e demais categorias desfavorecidas fere as regras de uma livre competição que deveria prevalecer no ingresso a todas as instituições educacionais de nível médio e superior.  Eventualmente, incorporando o discurso do Estado Mínimo, eles se opõem até mesmo a políticas nada ameaçadoras do status quo como a merenda escolar e o transporte gratuito para estudantes.    
       Mas um olhar superficial é o bastante para tornar risível a mera possibilidade de que exista "competição livre" em qualquer setor da vida brasileira, e em particular no acesso ao ensino médio e superior de qualidade.  Já me referi, na postagem Algumas considerações sobre cotas (http://gustavoacmoreira.blogspot.com.br/2012/04/algumas-consideracoes-sobre-cotas.html), ao desequilíbrio extremo que se verifica na oferta de educação básica no país, com evidente prejuízo dos que não têm acesso às escolas particulares de alto ou médio padrão ou às poucas instituições públicas de ponta, o que me leva a considerar, quanto aos exames de tipo vestibular, que as cotas "sociais" seriam mais justas do que as "raciais". 
        Não podendo negar ou minimizar um dado tão evidente, respondem os anticotistas que, ao invés de estabelecer "discriminações invertidas", o Estado deveria promover a excelência educacional em todos os níveis e em todas as partes do território. Simulam ignorar, como igualmente já apontei, que o aprendizado e o desempenho escolar dependem de diversos fatores que ultrapassam os muros das escolas, e que todo e qualquer governo que venha a colocar o atendimento às necessidades básicas da maioria acima das "grandes obras" e do sustento de uma base parlamentar fisiológica será impiedosamente sabotado com todos os meios "legais" e criminosos ao alcance de seus opositores.  
       A resolução efetiva das questões educacionais, bem como a superação das relações discriminatórias que permeiam a sociedade brasileira em todas as atividades e em múltiplas direções, passa pela supressão do capitalismo e pelo estabelecimento de uma democracia popular.
     
          

       

9 comentários:

  1. Para além do tema, deixo uma advertência necessária: o apoio que manifesto à criação do Estado palestino e à plena autodeterminação das populações árabes não implica na aceitação e muito menos ao incentivo ao racismo antijudeu. Não entendo o combate ao capitalismo como uma "guerra contra os judeus" e nem publicarei manifestações deste tipo nos comentários do blog, coisa que aliás pode ser tipificada como crime.

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  2. Concordo que de modo algum pode-se afirmar que um estudante pobre concorre em igualdade de condições com um estudante rico. Mas essa desigualdade nada tem a ver com o método de seleção: trata-se de uma desigualdade material e subjacente, que vai desde a falta de meios de transporte à necessidade de trabalhar para manter-se. Quanto ao método em si - a meritocracia - trata-se de um critério não-ideológico, puramente racional, que apenas cumpre o objetivo de maximizar a qualidade dos profissionais formados a partir do conjunto de candidatos disponível. Este objetivo tem motivação óbvia: bons profissionais trabalham melhor do que maus profissionais, e do bom andamento dos trabalhos, seja qual for o setor, depende o progresso do país e a geração de riqueza que vai tirar da pobreza a população como um todo, inclusive aqueles que não conseguiram entrar para as universidades.

    As cotas "sociais" tem a vantagem sobre as cotas raciais de não estimular ressentimentos de fundo racista. Mas são, tanto quanto aquelas, a negação da racionalidade. Ir contra a racionalidade é ir contra as leis da natureza, independente de quais critérios ideológicos se possa invocar para afirmar que aquilo é justo. Todos sabemos o que acontece quando se contraria as leis da natureza: a ponte construída de forma errada desaba, inapelavelmente. Enfim, dá-se de cara contra a Estrutura da Realidade, aquilo que, em tempos pré-científicos, chamava-se a Vontade de Deus. E a consequência inevitável de um método de seleção que não prestigia os mais capazes é a queda da qualidade dos profissionais formados, que vão trabalhar pior, gerando menos progresso e menos riqueza, e desta forma prejudicarão a população como um todo, inclusive aqueles que não conseguiram entrar para as universidades.

    Quanto à premissa de que a supressão do capitalismo vai resolver os problemas da educação, lembro que de fato, ao menos do ponto de vista das estatísticas, os países socialistas foram um sucesso em termos de educação, mas esse sucesso não se traduziu em maior produtividade do trabalho nem em maior satisfação dos profissionais. Na antiga Rússia dos czares, boa parte da população era analfabeta, mas ainda assim enumera-se com facilidade um bom número de literatos, pensadores, artistas e cientistas russos que se incluem entre os maiores que a humanidade já produziu. Na era soviética, o analfabetismo foi eliminado, mas não se pode apontar praticamente nenhum intelectual de prestígio, ou quando se encontra algum exemplo, é de dissidentes que fugiram. A decadência foi tanta que a ex-URSS perdeu terreno até mesmo nas áreas tecnológicas onde tinha tradição, a ponto de perder a corrida armamentista do final da guerra fria, fato que resultou na própria extinção da ex-URSS. Enfim, foi isso: o regime comunista obteve a igualdade de oportunidades em um ambiente onde todo o estímulo ao trabalho havia desaparecido, ninguém queria dar um esforço extra por saber que não seria recompensado, já que todos sabiam que subir na vida não dependia do talento próprio, mas das boas relações com as autoridades do Partido.

    E para terminar, é amplamente conhecido que os poucos exemplos de países que conseguiram ir da pobreza à riqueza nas últimas décadas valeram-se do incremento de seu capital humano, obtido graças ao incremento da educação, por sua vez regido por uma rígida meritocracia. Na Coréia do Sul, os estudantes que recebem aulas extras não são os mais fracos, e sim os melhores, e sempre incentivados por seus pais e invejados pelos colegas. Diga-me, Gustavo, em seus 14 anos de magistério, você alguma vez viu algum professor colocar para seus alunos a questão:

    POR QUE MOTIVO A AMÉRICA LATINA NÃO CRESCE COMO A ÁSIA?

    A América Latina era a região "emergente" do mundo poucas décadas atrás, hoje os países da Ásia, que já foram bem mais pobres do que nós, fazem-nos comer poeira. Ficamos remoendo fórmulas socialistas ultrapassadas e de comprovada ineficácia, enquanto lá fora o mundo avança sem nós.

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    1. Pouco adianta ficarmos apenas na constatação de que a desigualdade é real. É preciso encontrar meios para romper com os círculos viciosos, visto que a concentração das oportunidades continua a gerar mais desigualdade. O sistema que temos nada possui de meritocrático, justamente pela disparidade de condições. É injusto avaliar nos mesmos termos quem assistiu, digamos, a 3.000 horas-aula efetivas no Ensino Médio, com mais tempo para se preparar em casa, e quem mal chegou à metade desta cifra, sujeito à “necessidade de trabalhar para manter-se”. Fechar os olhos para isto, ao contrário do que me diz, é profundamente “ideológico” e se adequa às visões do tipo “só há uma forma de fazer (ou não fazer)”, tão caras aos liberais desde a década de 80, pelo menos. Ademais, notemos que a oferta de vagas para cotistas foi acompanhada, nos últimos anos, de uma enorme expansão do ensino superior. Em outros termos: a concessão de espaço para negros, índios, pobres, deficientes e filhos de policiais mortos em combate não se deu à custa da redução das vagas habitualmente ocupadas pelos filhos da classe média e da burguesia, ainda que alguns dos últimos possam ter perdido sua primeira opção neste ou naquele ano.
      Embora tenha me posicionado a favor das cotas “sociais” nos exames de tipo vestibular, não me oponho às cotas raciais em outras situações, nas quais particulares podem exercer uma margem maior de arbítrio, como por exemplo as contratações para uma rede de departamentos. É claro que nenhum sistema será perfeito, que os contratadores poderiam admitir determinadas categorias de negros, mais palatáveis aos seus valores estéticos e culturais, excluindo outras categorias, mas mesmo assim teríamos a derrubada de mais barreiras. Acho que você superestima, com base numa propaganda cujas premissas nunca se cumpriram, a possibilidade de “conflitos raciais” impulsionados pelas cotas. Pensemos num caso doméstico: tente me apresentar uma mera briga de rua que tenha acontecido em consequência do programa de cotas da UERJ, talvez o mais antigo de todos. Ressalto ainda, mais uma vez, que não considero as cotas uma solução estrutural, e sim um incentivo para uma minoria esforçada que pretende romper com a perpetuação da pobreza. Parte-se, em geral, do pressuposto de que os cotistas farão um esforço extra para superar as dificuldades que trouxeram da “base”. Algumas estatísticas mostram que o êxito é a regra, outras geram um certo ceticismo, mas o certo é que jamais se verificaram as calamidades previstas pelos anticotistas, como a evasão em massa por falta de condições de frequência ou a “inundação” do mercado por profissionais analfabetos (ou mais analfabetos do que a média, se preferir). Aliás, por falar em mercado, mesmo que a presumida mão invisível venha a afastar boa parte dos ex-cotistas dos postos de trabalho pretendidos, julgo que ter um eletricista com diploma de engenheiro ou um taxista formado em Direito seria um ganho para a sociedade; exceto, talvez, para um tipo específico de pequeno burguês que gostaria de desfrutar eternamente de uma mão de obra barata, desarticulada, incapaz de exigir direitos.
      [continua]

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    2. Na segunda parte do comentário você se perde em diversos chavões e generalizações. Antes de analisá-los brevemente eu gostaria de afirmar que considero extremamente empobrecedora a noção de que a educação tem como finalidade principal o aumento do PIB. Perdoe-me se minha compreensão foi falha neste ponto específico. Mas, por outro lado, o seu texto (como de hábito) deixa a impressão de que vale a pena manter um milhão de escravos para produzir um Aristóteles, e não há como escapar de enxergar elitismo em todo o conjunto da obra.
      Estou longe de idealizar a União Soviética como modelo para as sociedades futuras, mas não faz sentido levantar contra o socialismo o argumento de que Moscou não viu “Tolstois” e “Dostoievskis” no século XX. O Brasil capitalista também não teve novos Machados de Assis, pelo simples motivo de que a organização socioeconômica que poderia gerá-los desapareceu, mas Jorge Amado, Érico Veríssimo e João Ubaldo Ribeiro pouco ou nada deveriam aos três melhores ficcionistas do Império logo abaixo de Machado.
      Só é possível negar os avanços tecnológicos soviéticos, contrapondo-os aos cientistas do czarismo (quais?), por mera birra ideológica. Não apenas soviéticos: sem Plano Marshall, sem Aliança para o Progresso, outros países do Pacto de Varsóvia, como a Alemanha Oriental e a Tchecoslováquia, tiveram sua infraestrutura reconstruída e ergueram economias bastante industrializadas. Não há dúvida de que a União Soviética perdeu a corrida armamentista (e várias outras), mas não se esqueça que ela sempre correu “atrás”, desde 1917. Ainda assim, não seria inoportuno recordarmos que mesmo na era “pré-dissolução” era possível para os soviéticos criar algo como a cirurgia de correção da miopia.
      Pior ainda é o uso de um conceito vago de Ásia, quando o continente abriga tanto emergentes quanto miseráveis e falidos. Não há lógica em transformar países minúsculos como Taiwan e Singapura (ah, nova ortografia!) em vitrines do que deixamos de fazer. Um observador que olhe somente para Ribeirão Preto talvez diga que todo o Brasil seria desenvolvido se imitasse aquele município. Sobre a Coreia do Sul, sempre é oportuno lembrar os investimentos americanos diretos, inclusive com transferência de tecnologia, nas fases iniciais da ascensão do país. Ensino em tempo integral é excelente, mas milagres são essencialmente duvidosos.
      O lema “o mundo avança sem nós” pode e deve ser bastante relativizado. As economias de muitos países que já nos foram apresentados como exemplos estão claramente em pane, e o país que mais cresceu no conjunto das últimas décadas, a China, passa a muitos anos-luz do modelo liberal. O socialismo permanece mais do que na ordem do dia. Não é à toa o que ocorre exatamente no dia de hoje no Chile, o “tigre da América do Sul”.

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  3. A respeito desse tema voçê deveria ler o excelente livro do sociólogo Jessé de Souza(http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/arq_interface/1a_aula/A_rale_brasileira.pdf).Boa parte do livro desmascaras as noções de meritocracia em um país como o Brasil, tão desigual, não só em renda,mas desigual com relação a outros bens culturais que os filhos de classe-média dispõe e levam vantagem sobre seus compatriotas pobres.

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  4. Gustavo, conheci seu blog há pouco tempo e tenho me agradado pelo rigor e concisão de alguns poucos posts que li e que estão me animando para ler outros mais. Percebia a demanda de algo assim entre a esquerda e acho sua iniciativa (já de longa data!) louvável.

    Gostaria de saber, por enquanto, se entre os posts presentes ou futuros você se adentraria mais em temas não só brasileiros e contemporâneos. Na verdade, eu só queria pedir um post sobre a operação Fast & Furious e seu escândalo relativamente recente nos EUA, o que poderia servir como ponto de início (no mesmo post) para outras operações semelhantes anteriores e a relação entre o governo estadunidense, através da CIA e outros agências (como a ATF, neste caso), e o narcotráfico na região, o que parece ser muito antiga.

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    1. Caro João, agradeço pelo incentivo. Infelizmente, será difícil atender à sua sugestão, ao menos por enquanto. Uma postagem sobre tais assuntos implica numa pesquisa que não pode ser superficial, e estou na reta final para defender uma tese de doutorado. Na verdade, minha ideia é formar, a partir do blog, uma equipe multidisciplinar que possa entrar ao mesmo tempo no mérito de muitas questões, sem cair no improviso. Mas só quando o calendário me for mais favorável. Grande abraço!

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