segunda-feira, 21 de abril de 2014

Que tal derrubar alguns pedestais?



"O povo-massa, sofrido e perplexo, vê a ordem social como um sistema sagrado que privilegia uma minoria contemplada por Deus, à qual tudo é consentido e concedido.  Inclusive o dom de serem, às vezes, dadivosos, mas sempre frios e perversos e, invariavelmente, imprevisíveis."
(Darcy Ribeiro.  O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil.  São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 24)

         Tomada ao pé da letra, a citação que abre este artigo contém um evidente exagero.  Não é exata a premissa de que o brasileiro das classes C, D e E vê nos banqueiros, grandes industriais e cotistas majoritários de supermercados e companhias de ônibus os eleitos dos Céus, implicando qualquer desobediência em prejuízo incalculável para suas expectativas a respeito do post mortem. Todavia, se descontarmos algo do tom hiperbólico típico de Darcy Ribeiro, as duas frases encerram muito de verdade.  
        Para além da presença ostensiva do aparato repressivo e dos resquícios, na memória popular, do destino em regra trágico dos que ousaram, possuindo ou não um projeto político definido, desafiar a ordem estabelecida nas mais diversas fases da História do Brasil, a dominação de classe entre nós repousa, em proporção significativa, na resignação de milhões.  A experiência cotidiana parece demonstrar que a vontade de poucos, invariavelmente "bem nascidos" e endinheirados, se impõe a qualquer lei ou princípio, sendo a resistência inútil e perigosa, quando não fatal. Isto contribui para a naturalização, no imaginário coletivo, da desigualdade, por vezes despertando, em alguns, a aversão raivosa contra os que insistem na insubmissão.  
       Os beneficiários desta visão, é claro, se empenham em perpetuá-la, reforçando no plano ideológico a noção de que pairam acima dos pobres mortais.  Um dos aspectos mais visíveis deste processo é o frequente batismo dos edifícios e logradouros públicos com os nomes de cidadãos que não mediram esforços na tarefa de "manter tudo em seu lugar".  Embora a redemocratização do país tenha revertido em parte esta tendência, não é raro notarmos que instituições voltadas à prestação de serviços para as classes populares, como escolas e hospitais públicos, exibem em sua fachada os apelidos familiares de notórios algozes do povo.                           
          Tive grande satisfação quando o governo do estado da Bahia, em 14 de fevereiro de 2014, mudou oficialmente o nome do Colégio Estadual Presidente Emílio Garrastazu Médici para Carlos Marighella.  A medida foi uma resposta favorável ao movimento realizado em novembro de 2013 por alunos, ex-alunos, professores e responsáveis.  A comunidade escolar, rejeitando a vinculação com o falecido ditador, optou nas urnas por Marighella, que recebeu 406 votos, cabendo 128 ao geógrafo Milton Santos, além de 27 brancos e 25 nulos.
         Durante meu relativo ócio de feriadão, imaginei que mudanças deste gênero muito conviriam à cidade do Rio de Janeiro, que ainda celebra em suas escolas municipais figuras que não apenas se caracterizaram pelo posicionamento elitista, como também pelo incentivo ao arbítrio e à força bruta como mecanismos de reafirmação do status quo.
      Examinemos quatro exemplos, que mereceriam uma criteriosa reavaliação por parte das respectivas comunidades.          
                    

       José Félix Alves Pacheco (1879-1935), deputado federal, senador pelo estado do Piauí e ministro das Relações Exteriores do governo de Artur Bernardes (1922-1926), revelou neste último cargo um enorme entusiasmo pelo regime fascista, que já documentei em matéria cujo link recupero logo abaixo.



        Tratei, em artigo do ano retrasado, do golpismo irredutível de Carlos Frederico Werneck de Lacerda (1914-1977), político udenista que governou o extinto estado da Guanabara.  


      Sua perspectiva na área educacional, à qual não me referi naquela ocasião, cabe nestas poucas linhas de Maria Victoria de Mesquita Benevides, que pela clareza dispensam qualquer acréscimo de minha parte:

"Outro exemplo: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação.  Do projeto inicial de 1948, apoiado pela UDN, organizado pelo Ministro da Educação, o udenista Clemente Mariani, que defendia as escolas primárias públicas, pouco restou no texto final, de 1961 (patrocinado por Carlos Lacerda), que privilegia o ensino particular, religioso e economicamente seletivo."
(Ver A UDN e o udenismo: ambiguidades do liberalismo brasileiro (1945-1965).  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 182)    



       Integralista na juventude, o embaixador Vasco Leitão da Cunha (1903-1984) funcionou como ideólogo do Estado Novo.  Assumiu o Ministério das Relações Exteriores na sequência do golpe de 1964 e foi um dos organizadores dos expurgos efetuados no Itamaraty durante o governo Castelo Branco.  Sua gestão teve como diretriz o abandono das iniciativas adotadas no sentido de uma política externa independente, em favor do alinhamento automático com os Estados Unidos.     (Adriana López e Carlos Guilherme Mota.  História do Brasil: uma interpretação.  São Paulo: Editora Senac, 2008, p. 689, 726, 810 e 811)




         Francisco Luís da Silva Campos (1891-1968), outro notório simpatizante do nazifascismo, figurou entre os fundadores, em 27 de julho de 1931, da Legião Mineira, inspirada nos movimentos da extrema direita europeia. Durante o segundo semestre de 1937, participou de negociações com Plínio Salgado para angariar o apoio dos integralistas ao golpe de Estado já em fase de preparação, cujo objetivo seria a manutenção de Getúlio Vargas na Presidência. Implantado o Estado Novo, Campos foi o principal redator da Constituição "Polaca", que daria suporte jurídico à ditadura.  Confeccionou em 1964, ao lado do também jurista Carlos Medeiros Silva, o Ato Institucional nº 1, que determinava intervenção nos sindicatos, fechamento de organizações populares (inclusive a UNE), cassações e suspensões de direitos políticos.
(Ver Lincoln de Abreu Penna.  República brasileira.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 161, 183 e 190 e Maria Victoria de Mesquita Benevides.  A UDN e o udenismo, p. 128)   

           
       Como detestaria ser acusado de ter uma agenda exclusivamente negativa, exponho minhas alternativas para as eventuais substituições. Félix Pacheco cederia o posto ao contemporâneo Minervino de Oliveira (1891-1960), líder operário seguidamente perseguido no final da República Velha, que depois de vencer uma eleição legislativa para a Intendência do Distrito Federal, cometeu o "atrevimento" de se apresentar como candidato à Presidência da República pelo Bloco Operário Camponês.

Minervino de Oliveira


          No lugar de Carlos Lacerda, colocaríamos o quilombola que o próprio Lacerda, quando ainda era um jovem jornalista, biografou: Manoel Congo, chefe da rebelião escrava que sacudiu a região fluminense de Vassouras em 1838.

Imagem representativa de Manoel Congo

          

       A vaga do "entreguista" Leitão da Cunha deve caber, sem dúvida, a um defensor da autodeterminação dos povos.  Como constatei que já existe a homenagem ao embaixador João Augusto de Araújo Castro (1919-1975), que dá nome a uma escola do bairro carioca de Campo Grande, indico o presidente argelino Ben Bella (1918-2012), que encabeçou a luta pela independência do seu país.   

Ahmed Ben Bella



        O sinistro Francisco Campos pode ser trocado, com indiscutível vantagem, pelo historiador e oficial do Exército Nelson Werneck Sodré (1911-1999), que teve seus direitos políticos cassados pelo governo Castelo Branco, ficando também impedido de lecionar.





           As possibilidades que trago ao público representam, quando muito, a minúscula ponta de um iceberg, se comparadas à quantidade de "entulho autoritário" ainda por remover.  Mas é preciso começar.  Deixem suas sugestões.    
              
              





3 comentários:

  1. E a morte de Malhães hein... como construir história desse jeito?

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    1. Como muitos já disseram, o historiador trabalha com o material que tem ao alcance, não com o que gostaria. Casos de queima de arquivo são tão velhos quanto o mundo, e às vezes se desvendam, embora seja difícil.

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  2. Á historia dos seres humanos é surpreendente, quanto mais se busca, tira -se Lições,para aprimorar um convívio social.

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