domingo, 29 de junho de 2014

Como me defini à esquerda


       

          Fui criado e vivi até os vinte e cinco anos no bairro da Tijuca, situado na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, cuja imagem mais corriqueira é a de reduto da classe média conservadora. Muito cedo, logo na década de 70, pude notar que na verdade existiam pelo menos três tipos de cidadão tijucano. Os moradores ditos de classe média média (ou média alta), instalados em apartamentos amplos nas áreas consideradas nobres, não raro proprietários de dois automóveis, cultivavam certas prevenções, por vezes manifestadas sem disfarce, contra uma classe média baixa que se mantinha com sacrifício em imóveis menores, localizados em edifícios mais velhos, ou casas decadentes herdadas de pais e avós de melhor poder aquisitivo.  Estes dois segmentos, entretanto, se mostravam solidários na atitude preconceituosa contra os habitantes das diversas favelas vizinhas: Borel, Casa Branca, Chácara do Céu, Formiga, Salgueiro.  Lembro-me bem de ocasiões em que inspetores escolares, nos distantes tempos em que eu ainda não havia concluído o Primeiro Grau, aconselhavam os alunos dos colégios particulares a guardar distância dos jovens "do morro".  A sentença "vocês são de família" funcionava como argumento básico para legitimar barreiras que, embora abstratas, não costumavam ser contestadas.
     As condições de vida dos "favelados" (o termo comunidade ainda não entrara em uso), combinadas ao discurso midiático que já os tratava, em regra, como criminosos em potencial ou, no mínimo, coniventes com ladrões e traficantes, reforçavam o asco e o isolamento entre pessoas que dividiam diariamente as calçadas tijucanas.  Durante quase toda a presidência de Ernesto Geisel, residi em um apartamento de fundos da Rua Conde de Bonfim, principal artéria do bairro. Espaço confortável portas adentro, de cujas janelas visualizava, a poucas dezenas de metros, um cortiço próximo ao poluído Rio Maracanã; pouco adiante, estavam as encostas do Borel.  Sendo precária a coleta de lixo fora das áreas urbanizadas, restos de todo gênero se acumulavam durante vários dias em grandes caçambas. Os pobres da época, quando escasseavam os biscates, frequentemente exibiam os sinais da desnutrição. Muitos andavam sujos, sem camisa ou com roupas rasgadas, e me recordo de ter visto, incontáveis vezes, sandálias Havaianas de cores diferentes em um mesmo par de pés.  Penso que seus netos que vivem hoje, mesmo os que permanecem nas classes D e E, se sentiriam privilegiados caso pudessem localizar seus avós em um fictício túnel do tempo.   
        Não havia, então, escola pública no Borel, que enviava boa parte de suas crianças à Escola Municipal Barão de Itacuruçá, onde também estudei da primeira à quarta série.  O colégio, situado na Rua Andrade Neves, ficava a cerca de um quilômetro e meio do morro.  Os que tinham a pretensão de concluir, pelo menos, o Primeiro Grau, precisavam enfrentar, além da disputa acirrada pelas vagas, o trajeto, que calculo em uns quatro quilômetros, até a Escola Orsina da Fonseca, quase na outra extremidade do bairro.  Posso afirmar com convicção que se qualquer daqueles meus contemporâneos proferir a conhecida frase "não tive chance de estudar", deve merecer crédito até forte prova em contrário.
        Conservador, sem dúvida, era o tijucano médio nas fases finais do período ditatorial.  Isto não quer dizer que a Tijuca constituía um terreno impermeável ao brizolismo e, mais tarde, ao petismo; se os comerciantes locais, diretores e gerentes da iniciativa privada e detentores de chefias no serviço público compunham um eleitorado sólido para a direita, muitos profissionais liberais e assalariados com empregos de alta qualificação tinham o comportamento oposto diante das urnas. Meus próprios pais votavam sistematicamente contra a ARENA (depois PDS), e sempre que possível em candidatos socialistas. Pelo que retive na memória, a experiência de viver numa ditadura desagradava à maioria dos tijucanos nos anos Geisel e Figueiredo, com a provável exceção da comunidade militar.                       
        Apesar do ambiente doméstico que favorecia a elaboração de valores mais à esquerda, não fui o típico adolescente politizado, embora me interessasse pelo noticiário político nacional e internacional.  Não participava de qualquer militância, e sequer me empolguei, nos primórdios da redemocratização, pela candidatura de Fernando Gabeira ao governo do estado do Rio, uma febre fugaz, porém intensa, que contagiou quase toda a "juventude conscientizada" carioca.  Escapei, bem mais por sorte do que por mérito, de um voto que depois preferiria esquecer.  
      Abriguei no pensamento, entre os quatorze e os vinte anos, numerosas contradições.  Rejeitava com fervor o conservadorismo dominante no ambiente ao meu redor, tanto pelas múltiplas discriminações que formavam sua base quanto pela hipocrisia generalizada que marcava sua prática.  Por outro lado, não fiquei imune às seduções do discurso neoliberal do início dos anos 80. Mais de uma vez acreditei, ou tentei acreditar, que com um punhado de boas ideias e uma dose extra de suor poderia saltar, no futuro próximo, para o mundo dos milionários.  Meu círculo de relações expressava estes conflitos: ao lado de vários amigos tidos como "socialmente inferiores", havia um número semelhante de filhos de famílias abonadas, mas indóceis aos padrões convencionais.  Eu era uma espécie de rebelde, porém ainda não um esquerdista.  Minha mãe precisou empregar vastos recursos persuasivos para me convencer a votar, nas eleições estaduais de 1986, em Darcy Ribeiro, do PDT. Esforço, aliás, mal recompensado: contra Darcy e Gabeira, prevaleceu o ex-pedessista Moreira Franco, do PMDB, apoiado pelo governo Sarney. 
           O ingresso no mercado de trabalho, por volta dos vinte anos, dissipou com rapidez a maior parte das minhas ilusões de adolescente.  Não conhecia a expressão "moinhos de gastar gente", do mencionado Darcy Ribeiro, mas talvez pudesse descrever com tais palavras o capitalismo real que surgiu diante de meus olhos durante os quinze meses em que, atuando como funcionário de um departamento de pessoal, lidei com trabalhadores de todas as idades e níveis de escolaridade. Longe de parecer um largo trampolim para o sucesso, o "sistema" se apresentava agora como um jogo de cartas marcadas que dependia, para continuar funcionando, da adesão da maioria dos homens ao conjunto de preconceitos dos grupos dirigentes e, é claro, de seus múltiplos medos. 
            Faltava apenas, para me fixar à esquerda, um suporte ideológico, que se formou ao longo da graduação em História, realizada na UERJ.  O curso, noturno, reunia estudantes que, em sua maioria, vinham de longe e trabalhavam em horário integral.  Dedicava-me mais ao extinto Banco do Estado do Rio de Janeiro (BANERJ), no qual ingressei por concurso em 1989 e fui escriturário e caixa, do que aos textos das disciplinas.  A rotina dos alunos deixava pouco espaço para a militância.  Entre os professores, o único doutrinador característico era um direitista, que me deu aulas no primeiro período.  Fascinado pela obra de François Furet, ele tentava desqualificar o marxismo de todas as maneiras ao seu alcance, desde a colagem de rótulos como "positivismo de sinal trocado" até a repetição da falácia de que "Marx pretende explicar tudo através do fator econômico".  Não o fazia com grande assiduidade: gostava mais dos vinhos do que dos discentes proletários que, sem investir no confronto, pouco se interessavam em absorver suas ideias. Faltava com uma constância indecente, ou comparecia meio embriagado, e por fim acabou neutralizado pela nomeação para um cargo comissionado que exigia apenas a sobriedade necessária para carimbar e rubricar um punhado de documentos por semana.
           Não foi o comportamento do antigo mestre, entretanto, que me empurrou decisivamente para a esquerda, mas sim as incursões que fazia, nas horas vagas, na biblioteca do departamento. Ali, invariavelmente sozinho, buscava nas prateleiras destinadas às Ciências Humanas  o que me instigava, ao invés das leituras obrigatórias.  Livros como Ocidente Traído, de Jorge Boaventura, atiçavam minha ira de pós-adolescente contra as elites conservadoras às quais nunca quis, de fato, pertencer.  Naquele processo, digeri longamente uma obra clássica de Oliveira Viana, Populações meridionais do Brasil, que hoje consulto em pdf, a partir do site http://www.dominiopublico.gov.br/. Nela, encontrei a essência de tudo que desejava combater e antes não distinguia com clareza.        
        O intelectual fluminense celebrava, junto com o poder hereditário que se expressara através do regime monárquico, o imobilismo político que sempre beneficiou as classes dominantes. 
         
                  





           Também apontava como elemento benéfico a associação entre conservadorismo político e autoritarismo.  



          O complexo de colonizado que marcava o autor, partidário da importação de modelos civilizatórios, apesar de suas indiscutíveis qualidades literárias, conflitava com minhas posições favoráveis à autodeterminação dos povos.    









         O pior, contudo, se concentrava nas páginas gastas em considerações racistas. Vários anos antes da ascensão de Hitler, era exaltada uma suposta dominação do Brasil, no Império e na República, pelos "arianos" migrados do outro lado do Atlântico.  Não obstante sua condição de mulato, assinalada por muitos críticos, Oliveira Viana relacionava a mestiçagem brasileira a distúrbios morais e emocionais.    









           Da condenação  do mestiço, onipresente em Populações meridionais do Brasil, decorria um desprezo pelo pobres e subalternos, desprovidos, salvo casos excepcionais, do sangue ariano salvador.                   






         Com uma sinceridade notável para os "nossos" conservadores, Oliveira Viana enaltecia o próprio racismo, visto como instrumento essencial para a manutenção da ordem.  





         Como contraponto às monstruosidades que catalogava, comprei o livro A ideologia do colonialismo, de Nelson Werneck Sodré (Petrópolis: Vozes, 1984).  Vibrei, e me senti algo vingado, com as 76 páginas ácidas dedicadas por Sodré a Oliveira Viana, pontuadas por expressões como "delírio ariano", "deformação histórica" e "racismo colonialista". Ninguém, no plano da política convencional, se expressa atualmente nos termos de Oliveira Viana, a respeito de quem precisamos registrar que, na produção pós-Segunda Guerra, moderou de maneira sensível seu "elitismo selvagem".  Permaneço crendo, todavia, que as premissas básicas dos liberais conservadores, conservadores "puros", monarquistas e fascistas brasileiros ainda são, nos aspectos mais fundamentais, as de Populações meridionais do Brasil.  Contra elas, devo persistir nas lutas pela igualdade e pela democracia popular.       

Um comentário:

  1. a elite de hoje não tem esse racismo explícito (mas existente) como o de Oliveira Viana, mas o complexo colonialista é exatamente igual.
    hahahaha

    excelente texto.

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