A premissa de que "O Brasil não dá certo, não funciona, por ter sido colonizado por degredados" é um dos principais suportes, senão a base argumentativa, da corrente de opinião (digamos assim) definida por alguns como "a turma do racismo contra". A tese carece, obviamente, de sustentação com base na historiografia contemporânea; mais ainda, do respaldo das historiografias "antigas", cujos autores, em boa parte, produziam suas obras impulsionados pelo ufanismo. Isto não impede que continue a reunir adeptos, inclusive entre pessoas instruídas.
Folheando O Globo de 22 de novembro de 2014, tive a desagradável surpresa de ver o excelente escritor Carlos Eduardo Novaes endossando o mito, nos trechos finais de um texto até então instigante sobre corrupção. Transcrevo na íntegra suas palavras, que além da velha referência à "escória da Península Ibérica" recuperam o mote nada recente de que "merecíamos colonizadores melhores".
"Foram os portugueses, porém, que disseminaram a prática da corrupção. Diferentemente dos peregrinos ingleses que desembarcaram na América do Norte para se fixarem e construírem uma nova vida, os portugueses que vieram atrás de Cabral eram uma escória, um bando de renegados e desterrados que só queriam se aproveitar deste terreno baldio sem ninguém, para enriquecer e voltar à terrinha. Pois foram eles que se encarregaram de fiscalizar o contrabando do pau-brasil, aves, ouro e especiarias contra a Coroa Portuguesa. Não podia dar certo. Mas aqueles aventureiros portugueses estabeleceram um padrão de rapinagem que de lá para cá só fez se aprimorar. Durma com uma corrupção dessas!"
Não ignoro que o espaço de uma matéria de sete ou oito parágrafos, destinada a causar impacto no caderno de ideias de um jornal de grande circulação, é insuficiente para o desenvolvimento ideal de determinados temas. Calculo também que Novaes pretendia, muito mais do que ser historicamente exato e inspirar questões do ENEM, investir contra a tolerância do brasileiro médio (inclusive seus leitores) para com a roubalheira generalizada que se estende, sem dúvida, desde fases remotas da História do país. Julgo, porém, que um formador de opinião precisa ser mais cauteloso antes de proferir sentenças que nada esclarecem e apenas alimentam o pior gênero de Sociologia de botequim.
Breves momentos de recurso à lógica são o bastante para desconstruir o lugar comum segundo o qual "nosso" colonizador típico era o degredado. Embora corriqueira na monarquia portuguesa da Idade Moderna, a aplicação da pena de degredo não ocorria somente na direção da terra do pau-brasil. Houve degredados em Goa e nas demais dependências do Estado da Índia, em Angola, Moçambique, Guiné, nas ilhas de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe. Partindo-se do princípio de que não haveria razão para padrões totalmente diferenciados de ocupação permanente na Ásia, na América e na África, tratando-se em regra de possessões tropicais, seria necessário, para viabilizar o projeto de povoar com os criminosos, que Portugal dispusesse do maior contingente de bandidos do planeta. Mesmo assim, é impossível acreditar, como Novaes aparentemente indica, que "renegados" e "desterrados" teriam preferência na distribuição dos cargos públicos mais prestigiados ou que conferissem maiores oportunidades de enriquecimento. Muita coisa pode ser dita, a partir de incontáveis fontes, sobre a corrupção na América Portuguesa, mas a mera presença de grupos de indivíduos banidos passa longe de constituir a chave da explicação de tal fenômeno.
Observemos uma situação específica. Luiz Alberto Moniz Bandeira descreveu desta maneira o estabelecimento do Governo Geral em meados do século XVI:
Tomé de Sousa chegou à
Bahia de Todos os Santos em 29 de março de 1549, comandando três naus- Salvador,
Conceição e Ajuda, duas caravelas- Rainha e Leoa- e um bergantim – S.
Roque. Levara “320 pessoas de soldo, em
que iam muitos oficiais de todos os ofícios”, algumas dezenas de degredados, e
acompanhado fora por seis sacerdotes da Companhia de Jesus e vários fidalgos,
entre os quais Rodrigo de Argollo, nomeado provedor da Fazenda da Bahia, e
Diogo Moniz Barreto, que desempenharia o cargo de provedor do Hospital e depois
(1554), o de alcaide-mor da cidade do Salvador, além de seu criado, Garcia D’Ávila,
então com 21 anos, homem d’armas, que ele designara, “por sentir que é apto”,
almoxarife da cidade e dos seus termos, bem como da alfândega¹.
Percebe-se que os degredados, que aliás não ficavam impossibilitados de exercer seus respectivos ofícios, representavam uma nítida minoria ante os trabalhadores qualificados que acompanhavam o governador. Além disto, os principais empregos já estavam destinados, desde a saída da metrópole, a homens tidos como nobres. Convém nos lembrarmos, em seguida, do papel que cabe à pobreza em quase todos os movimentos migratórios. O superpovoado norte de Portugal legou ao Brasil, desde cedo, vastas levas de camponeses que atravessavam o Atlântico em busca da sobrevivência. Conforme João Fragoso,
No século XVI, as pressões
demográficas sobre a terra e as fomes recorrentes transformaram a região de Entre
Douro e Minho numa área caracterizada pela contínua “fuga de gentes”. Fugas, primeiro para as ilhas do Atlântico e
depois, em função das dificuldades econômicas e sociais, para outras partes, em
especial o Brasil².
Outra ressalva se faz necessária: nem todos os degredados eram meliantes incorrigíveis ou tipos antissociais. Geraldo Pieroni, que estudou os processos do Santo Ofício que resultaram em degredo para o Brasil, elaborou o quadro exposto logo abaixo³. Destaco que o termo "falsidades", segundo o mesmo autor, se referia ao enquadramento por falso testemunho, a que se expunham, entre várias possibilidades, os cristãos-novos que supostamente tinham mentido sobre suas práticas "judaizantes" ou tentado proteger parentes e amigos dos tentáculos da Inquisição.
Finalmente, deixo aos que insistem em construir fantasias a respeito de colonizadores alternativos, breve nota sobre uma das opções que foram colocadas, já no século XVI, à dominação portuguesa sobre o litoral brasileiro:
Próximo do rei, amigo do Almirante Coligny e detentor de excelentes relações com destacados membros da nobreza, Villegaignon não teve dificuldades para angariar um vasto leque de contribuições- do Rei inclusive. Essas dádivas permitiram ao cavaleiro de Malta armar uma esquadra de três navios de 200 toneladas, recrutar cerca de 600 homens- muitos dos quais nas prisões de Rouen e Paris- e partir para o Brasil4.
Notas:
1- Ver O feudo. A Casa da Torre de Garcia D’Ávila: da conquista dos sertões à independência do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 100.
2- Ver A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial (séculos XVI e XVII). In: O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Orgs. João Fragoso, Maria Fernanda Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 36).
3- Ver Banidos: a Inquisição e a lista dos cristãos-novos condenados a viver no Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 50.
4- Ver Jean Marcel Carvalho França. Visões do Rio de Janeiro colonial: antologia de textos, 1531-1800. Rio de Janeiro: EdUERJ; José Olympio, 1999, p. 19.
Qual seria a diferença gritante, então, das colonizações inglesas da América do Norte e Oceania para as espanholas e portuguesas? Era uma política de colonização propriamente dita/povoamento, simplesmente?
ResponderExcluirÉ uma questão difícil de solucionar em poucas linhas, já que foram muitas as diferenças. Em comparação com Estados Unidos e Austrália, por exemplo, a colonização do Brasil começou mais cedo, mas a difusão do ensino foi precária, as limitações para o exercício de variadas atividades econômicas foram bem maiores, a extensão da escravidão e de outras formas de trabalho compulsório bem mais ampla. Sobre o corrupção em particular, podemos assinalar que na Colônia muitos cargos públicos eram leiloados, e a propina (sem aspas) oficializada.
ResponderExcluiros australianos gostam muito de dizer que foram colonizados por intelectuais degradados pela truculência de londres, mas na verdade era em geral o mesmo lumpenproletariat que veio para cá e outros países..
ExcluirExcelente artigo, caro Gustavo Moreira. Cada vez fico mais satisfeito por existir a internet e haver esta contraposição à mídia tradicional. Nada melhor do que uma pessoa abalizada, utilizando inclusive fontes para referência em seus textos, para mostrar a verdadeira história, sem maniqueísmos e preconceitos às pessoas em geral. Muito obrigado. Parabéns!
ResponderExcluirObrigado, amigo, e esteja sempre em casa!
ExcluirGustavo, o quão credível é uma fonte oficial? Falando em relatórios e semelhantes, a exempo desse aqui (http://www2.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB113/north06.pdf). Obrigado
ResponderExcluirConforme um velho clichê, todo documento que se preza é mentiroso. A fonte oficial tende a ser ainda mais mentirosa do que a média, visto que ela não pode admitir as fraquezas e "impotências" do Estado, nem explicitar os interesses de classe que o movem. Sobre o exemplo oferecido, salta aos olhos a intenção de fazer das drogas um problema cuja raiz está "lá fora".
ExcluirQuem és tu Gustavo Moreira? Qual laivo de veracidade tens? Serás que seus livros 'historiográficos' são de suma importância quanto os de José Murilo?
ResponderExcluirAbraços...
Feliz Ano Novo!
O texto sequer toca no nome de José Murilo. Como eu gosto dos "comentaristas" que comentam o que não foi dito!!! Talvez alguém queira conhecer seus critérios de importância, mas me limito a retribuir o Feliz Ano Novo, querido humorista involuntário!
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