quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Contra um thatcherismo tardio

      


      Um consórcio formado pelas empresas norte-americanas Bechtel e Enron controlava, no final do século XX, o fornecimento de água na Bolívia.  As regras daquele monopólio eram tão desfavoráveis à população que até a coleta da água da chuva pelos pobres chegou a ser colocada na ilegalidade; o exercício desta atividade, oficialmente, cabia apenas à companhia Aguas del Tunari, representante da Bechtel no país.
      O quadro começou a mudar em abril de 2000, quando, durante protestos verificados em Cochabamba contra o aumento dos preços da água, homens do exército executaram com um tiro no rosto o adolescente Victor Hugo Daza.  A fúria das multidões se intensificou, forçando o governo a decretar lei marcial.  Líderes do movimento foram presos e levados para penitenciárias situadas na Amazônia, mas, àquela altura, a insurreição já se tornara incontrolável.  



    Vitorioso na "Guerra da Água", o povo expulsou a Bechtel da cidade.  A administração municipal voltou a assumir a responsabilidade sobre o serviço.  Aprovou-se uma nova lei das águas, pela qual o abastecimento ficou definido como "direito humano". Os acontecimentos de Cochabamba animaram as massas bolivianas a lutar contra situações similares.  Diante da tentativa do presidente Gonzalo Sánchez de Lozada de privatizar os recursos energéticos do país, as comunidades indígenas aimarás se revoltaram em outubro de 2003, atraindo contra si uma repressão brutal, que não excluiu o emprego de tanques.  Segundo a Anistia Internacional, cinquenta e nove pessoas morreram.  A violência do governo, a exemplo do que ocorrera três anos antes, foi insuficiente para conter a insatisfação generalizada.  Mesmo contando com o apoio da embaixada dos Estados Unidos, Sánchez de Lozada caiu¹.
      Lembrei-me da "Guerra da Água" ao buscar, na Internet, notícias sobre o processo chamado por alguns de "privatização do sol", que teve início na Espanha em 2013.  O gabinete direitista encabeçado por Mariano Rajoy adotou medidas contra o autoconsumo de energia elétrica, ou seja, a instalação de placas geradoras de energia solar em empresas e/ou residências



O jornal El Diario apontou, na ocasião, as sanções previstas contra os que não se submetessem às normas que entrariam em vigor no início do ano seguinte:

http://porlaboca.es/?p=6563&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=multa-maxima-por-autoconsumo-electrico-sancion-por-fuga-radioactiva-muy-grave-e30m

La propuesta de decreto que el Ministerio de Industria aprobó en JUL2013 para regular la producción eléctrica para el autoconsumo contempla una multa máxima de €30M para aquellos que, entre otras cosas, no registren sus instalaciones y/o  no paguen el nuevo “peaje de respaldo”, contemplado en la normativa y que grava la producción casera de electricidad. La cifra, €30M, coincide con la sanción máxima contemplada para una fuga radioactiva muy grave en una central nuclear española.

    A imposição de multas extorsivas, que podem atingir cifras na casa dos oito dígitos, compreensivelmente desestimulou a utilização da energia solar.  Mesmo na região mais ensolarada do país, a produção vem despencando.     


    
         Retornando a El Diario, atestamos não apenas a falta de critério da política energética dos neofranquistas, como também o principal objetivo da lei: a preservação das margens de lucro das grandes empresas do setor elétrico.

http://www.eldiario.es/economia/peaje-sol-llega-fase-final_0_189681582.html

La diputada de la Izquierda Plural Laia Ortiz (ICV) rebate el argumento del ministro: "Lo que persigue la ley, que no incluye las recomendaciones fundamentales de la Comisión de la Energía, el Consejo de Estado y la Comisión de la Competencia, es desincentivar el autoconsumo, la producción de energías renovables y garantizar a toda costa el pago a las eléctricas, por encima de criterios de sostenibilidad, equidad y eficiencia. Poner un peaje al autoconsumo mata un modelo que compite con las eléctricas".

En este sentido, Jorge Morales, ingeniero industrial y miembro de la Plataforma por un Nuevo Modelo Energético, explica: "El peaje al autoconsumo es como si tienes plantados unos tomates en tu terraza y tuvieras que pagar al supermercado de la esquina un canon obligatorio mensual por si, en el momento en que te quedes sin tomates, quisieras ir a comprarlos. No pasa en ningún país del mundo".                         (...)
Y ocurre, según Morales, "justo cuando se está demostrando que las energías renovables son más baratas que las de combustibles fósiles, justo cuando se sabe que España importa el 80% de su energía, por valor de 45.000 millones de euros, el 4,5% de nuestro PIB. Es una oportunidad perdida en un momento histórico".


        Existem, sem dúvida, diferenças entre o caso espanhol e o boliviano, ainda que ambos demonstrem o quanto a dinâmica capitalista pode se afastar da razão e das aspirações de bem-estar do homem comum. A UNEF, parte mais atingida, ao menos de maneira direta, é uma associação empresarial detentora de meios nada desprezíveis. O governo Rajoy, ao ferir seus interesses, beneficia parte da alta burguesia em detrimento de parte da média burguesia.          

file:///C:/Users/Estagi%C3%A1rios/Downloads/El-mercado-fotovoltaico-retrocede-en-Andaluc%C3%ADa.pdf

La Unión Española Fotovoltaica (UNEF) es la asociación sectorial de la energía solar fotovoltaica en España. Formada por unas 300 empresas y entidades de toda la cadena de valor de la tecnología, representa a más del 85% de la actividad del sector en España y aglutina a su práctica totalidad: productores, instaladores, ingenierías, fabricantes de materias primas, módulos y componentes y distribuidores.
       

        Entretanto, é certo que a conta a ser paga pela continuidade do modelo "convencional", em termos financeiros e ambientais, será repartida pela maioria esmagadora dos espanhóis; em suma, estamos diante de mais um exemplo de concretização da máxima "privatizam-se os lucros, socializam-se os prejuízos".  O combate sem trégua à transformação de recursos básicos para a humanidade em mercadoria, seja qual for o continente, é uma questão prioritária, e passa necessariamente pela rejeição dos eleitorados às forças políticas conservadoras, liberais e fascistas.             

Nota:

1-Estes episódios são descritos com mais detalhes em Tariq Ali.  Piratas do Caribe.  Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 118 a 120.           

5 comentários:

  1. No México, a Coca Cola é proprietária de todas as fontes de água do país. Tem até um documentário discorrendo sobre isso. Se não me engano ele se chama "Ouro Azul".

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  2. Gustavo, você é leninista?

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    1. Só li de Lenin "O Imperialismo". Não posso me definir como um "discípulo", mas o considero uma referência nas questões ligadas à autodeterminação dos povos.

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  3. Não pare de publicar. A luta não para!

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  4. Eu entendi Gustavo, mas eu sou contra.

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