terça-feira, 12 de janeiro de 2016

A história de Matias


            

            O escravo "pardo" Matias, nascido em 1809 e batizado na freguesia carioca de São José, era filho da "crioula" Maria.  Ambos pertenciam originalmente a João Coelho Marinho, homem casado com D. Francisca das Chagas.  Quando mandou lavrar testamento, em 1824, Francisca determinou que a partir de sua morte Matias se tornaria liberto, sendo o valor do jovem descontado de seu quinhão na sociedade conjugal.  Antes disto, entretanto, o casal entrou em um período de brigas que resultou em ação de divórcio.  Tendo Matias na conta de "vadio", o senhor decidiu vendê-lo em 1826.  Após conhecer diversos donos, o escravo foi comprado pelo bispo Conde de Irajá, em 1840, mas este não seria seu último destino no cativeiro; em 1847, passou das mãos do bispo às de Francisco de Sales Torres Homem, na época um jornalista liberal que ostentava os diplomas de médico e advogado¹.
         Fugindo da casa de Torres Homem em maio de 1848, Matias obteve uma certidão da verba testamentária de sua antiga senhora Francisca das Chagas, documento que confirmava a promessa de alforria.  Logo depois, buscou a Justiça na intenção de ratificar a condição social pretendida, e recebeu um mandado de manutenção de sua liberdade. Alguns anos mais tarde, porém, Torres Homem tentou resgatar o que ainda entendia como sua propriedade, e deu início a uma batalha judicial, no princípio desfavorável a Matias.  O juiz de primeira instância encarregado do caso compreendeu que a venda efetuada por João Coelho Marinho revogava automaticamente a verba testamentária estabelecida pela esposa.  Matias escapou de uma apreensão imediata exibindo o mandado de manutenção aos oficiais de Justiça, mas tudo indicava que a vitória final caberia a Torres Homem.  Este, surpreendentemente, procurou o juiz desembargador do Tribunal da Relação, que julgaria o recurso à sentença inicial, e declarou, no dia 1º de setembro de 1852, que abria mão de seus direitos, de maneira que "o apelante ficasse livre e gozasse de sua plena liberdade, como se nascesse de ventre livre²".  
          Provavelmente, mais de um fator contribuiu para a desistência de Torres Homem.  Aos 43 anos, Matias se apresentava, segundo a lógica do mercado de escravos do Rio de Janeiro, como um trabalhador velho, com valor em queda constante, mesmo que se conservasse vigoroso. Devemos também considerar que seu último senhor, filho do padre Apolinário Torres Homem, tinha como mãe, conforme as palavras do também padre João Manuel de Carvalho, "uma preta quitandeira que estacionava no largo do Rosário para fazer o seu negócio³". Talvez Torres Homem, durante o longo tempo de que dispôs para refletir sobre a querela, houvesse concluído que existia desumanidade em atirar de volta à escravidão uma pessoa cujo histórico familiar continha semelhanças com o dele próprio.  Aliás, é igualmente possível que Matias, ao tomar a decisão radical de fugir e tentar viver como livre, tenha antes experimentado uma ampliação de seu sentimento de revolta, ao se notar sob o jugo de um senhor de cor semelhante à sua e filho de mãe nascida escrava.   
        Além de tudo, e principalmente, Matias era um homem que não reconhecia qualquer legitimidade em seu cativeiro.  Apegado à antiga promessa de liberdade, constituiria um risco permanente para qualquer proprietário, pela disposição de fugir, pela falta de ânimo para trabalhar, pela possibilidade concreta de um dia empregar a violência física no intuito de se afirmar como livre.  Nada disto escaparia da percepção de um intelectual do porte de Francisco de Sales Torres Homem. 
         A organização socioeconômica escravista foi extinta há bem mais de um século.  Todavia, não pode ser tratada como um "tecido morto", como quer parte da historiografia brasileira contemporânea. Muitos de seus elementos ideológicos foram incorporados pela ordem burguesa que a sucedeu, em particular uma hierarquia étnica que impõe, além da desvalorização da vida do negro, a expectativa quase generalizada de que, quanto mais a aparência de uma pessoa se aproxime dos fenótipos africanos, menores sejam sua compreensão do mundo real, sua capacidade de desempenhar tarefas intelectuais, e mesmo sua confiabilidade no terreno das relações pessoais.
          É tarefa essencial para todos os que pensam à esquerda desmistificar e esvaziar na maior medida possível, com todos os meios ao seu alcance, estes lugares comuns e seus desdobramentos no cotidiano, com a mesma intensidade que, consensualmente, atribuímos à necessidade de combater as hierarquias de classe e gênero.  Ainda vivenciamos, de forma muitas vezes escandalosa, o que Domenico Losurdo definiu precisamente como a "tríplice discriminação" que caracteriza as sociedades capitalistas.  Um capitalismo sem a aceitação tácita da maioria do poder do burguês-conservador-branco-heterossexual-proprietário, se não desmoronasse de imediato, pareceria uma mesa de jantar com as pernas serradas em quase todo o seu diâmetro, mantida de pé a duras penas pelas forças mais diretamente interessadas, mas sujeita à queda com um simples esbarrão.  
       Não importando as restrições que a grande mídia e os teóricos conformistas queiram aplicar às nossas reflexões contestatórias, a título de "limite civilizatório" ou algo ainda mais cínico, é preciso prosseguir.  É preciso negar, a todo momento, o caráter supostamente natural, ou espontâneo, de relações que foram construídas na História e nada tiveram, ou têm, de inevitáveis.  Uma esquerda que venha a se acomodar, no todo ou em parte, à "tríplice discriminação", não será esquerda de fato, a não ser no discurso dos anticomunistas histéricos; na melhor das hipóteses, uma aristocracia generosa, como o PSDB da Constituinte de 1988, transfigurado pelos fatos da década seguinte.                                                      
            
Notas:

1- Ver Sidney Chalhoub.  A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista.  São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 268-269. 
2- Idem, p. 268 a 270.
3- Cf. R. Magalhães Júnior.  Três panfletários do Segundo Reinado.  São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956, p. 6-7. 

7 comentários:

  1. Plofessor PCC, de volta à ativa?

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    1. Sim, de alguma maneira preciso valorizar os acessos que tive, ao longo dos anos, das clínicas psiquiátricas de Belém do Pará.

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  2. Seu maçon de araque!!!!
    Dr. Ramos

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    1. É verdade: tão de araque que nunca fiz parte da confraria. Já você parece obcecado, a ponto de morrer de contentamento se receber um convite para ser "bode".

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  3. "Um capitalismo sem a aceitação tácita da maioria do poder do burguês-conservador-branco-heterossexual-proprietário, se não desmoronasse de imediato..."
    - Sob Stalin e os regimes do leste europeu, a homofobia era regra e prática. Engels também era extremamente homofóbico. O que havia nesses países comunistas era algo mais conservador do que nos países capitalistas.

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  4. Suponhamos que eu assine embaixo acriticamente. Sua afirmativa em nada invalida a premissa inicial. A propósito, onde está a defesa do stalinismo? Tem certeza de que tomou todos os seus remédios, e "comentou" no lugar em que realmente pretendia?

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  5. Mt boa leitura para um final de domingo!Enriqueceu minha tarde q se arrastava tão morosamente!

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