quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Notas sobre a velha falácia da legitimidade da "Redentora" e seus novos papagaios de pirata




          Ontem à noite, durante uma breve investigação a respeito do que se discutia em algumas comunidades políticas das redes sociais, tive minha atenção despertada por mais um dos memes “históricos” cretinos que poluem a Internet.  À primeira vista, tratava-se de uma apologia nada original, e de um primarismo gritante, à ditadura civil-militar de 1964.  Antecipo desculpas aos donos de olhos mais sensíveis por reproduzi-la logo abaixo.



       Muito mais do que o tosco conteúdo, o que me surpreendeu foi o tom triunfalista das pessoas que se empenhavam em difundir a peça de propaganda, dando a impressão de que se julgavam portadoras de um segredo de Estado maliciosamente escondido de 99,99% da população. Ficava evidente, para qualquer observador, que todos acreditavam cegamente no que diziam, tendo sua crença reforçada por várias manifestações, em geral quase imediatas, de solidariedade.  
           Mantenho, em casos desta natureza, a convicção de que nenhum formador de opinião deve ser subestimado.  A atitude contrária, de soberba diante da manipulação grosseira e do discurso inconsistente, conduz facilmente à elevação de figuras como Leandro Narloch à categoria de especialistas em História e ao descrédito da pesquisa acadêmica.
            Não é suficiente atribuir à besteira popularizada o rótulo de besteira, ou qualificar como idiota quem a produziu, sendo, aliás, bastante significativo o fato de que quase sempre as pérolas de tal gênero emergem do anonimato. É necessário mostrar pacientemente onde está a idiotice. Poderíamos, em primeiro lugar, sugerir aos interessados a consulta aos anais eletrônicos da Câmara  dos Deputados (http://imagem.camara.gov.br/diarios.asp) e do Senado (http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/asp/AP_Apresentacao.asp), para que se constate que, apesar do conservadorismo que predominava no Congresso Nacional nos primeiros meses de 1964, jamais ocorreu a suposta invocação oficial da quartelada.  Isto não impede, é claro, que sejam localizadas naquelas páginas falas golpistas, em geral vindas da minoria udenista, coisa que aponta mais para a vocação antidemocrática da maior parte da direita brasileira do que para a legitimidade do processo que levou à derrubada do presidente Goulart.
           Para quem não pode ou não pretende gastar muito tempo na busca, vale a descrição sucinta e precisa do brasilianista Thomas Skidmore, que não deixa dúvida de que os parlamentares golpistas formavam uma minoria:          
               

João Goulart foi deposto por uma revolta militar.  Sua fuga não tinha sido o resultado de ação da elite política civil.  Ao contrário, os oponentes de Goulart no Congresso sequer haviam tentado procedimentos de impeachment, pois sabiam não contar com os votos necessários para vencer um tal teste, exatamente como os antigetulistas não tinham votos suficientes em 1954.  Embora a maioria dos congressistas nutrisse profundas suspeitas sobre as intenções de Goulart, não se decidiam a embargá-lo segundo os fundamentos previstos na Constituição.  Tal relutância nada tinha de estranhável.  Como políticos profissionais, receavam o que poderia vir na esteira de um impeachment.  Em consequência, não havia um só líder congressista do centro disposto a encabeçar um movimento para impedir o presidente.  E os militantes da UDN favoráveis a tal movimento, como Bilac Pinto, eram figuras suspeitas para a liderança da maioria, constituída de próceres do PSD, temerosos de que o afastamento de Goulart pudesse resultar num expurgo geral da "camarilha" do partido¹.


         Outra prova cabal de que o golpe nunca poderia ter sido desfechado por iniciativa (ou com a conivência) do Poder Legislativo é o fato de que a ação militar apresentou aspectos de improviso, visto que teve início antes do momento planejado pelo principal líder dos conspiradores.  Também é afrontosa à inteligência de qualquer indivíduo com mais de dois pares de neurônios ativos a hipótese de que um governo sustentado por dois partidos grandes, e seu aparato militar, possam ser apanhados sem qualquer capacidade de reação por um movimento deflagrado a partir dos ritos previstos pela Constituição.  
                                                  

No dia 28 de março de 1964, o governador José Magalhães Pinto, acompanhado pelo coronel José Geraldo de Oliveira, comandante da Polícia Militar de Minas Gerais, dirigiu-se a Juiz de Fora e lá se encontrou com o marechal Odylio Denys e os generais Olympio Mourão Filho e Carlos Luiz Guedes, decidindo marcar a data da sedição, à revelia de Castelo Branco, para o dia 30².


            O autor do meme, ou algum de seus cúmplices, até poderia alegar que não se referiu exatamente ao ato da deposição em si, mas ao reconhecimento dos governos que se seguiram. Mas isto seria comparável a achar legitimidade, ou espontaneidade, na ação da vítima de uma "saidinha" de banco que entrega sua senha aos assaltantes sob a mira de uma arma.  Não existia, em abril de 1964, nada que pudéssemos chamar de "margem de independência", à disposição dos congressistas:   

O presidente interino, Ranieri Mazzilli, estava de fato subordinado a uma junta militar que se proclamara Alto Comando da Revolução, constituída pelo general Artur da Costa e Silva, pelo almirante Augusto Rademaker e pelo brigadeiro Correia de Mello.  Propondo-se a "restaurar a legalidade" e "eliminar o perigo da subversão", os novos detentores do poder baixaram a 9 de abril o ato institucional, que passaria mais tarde a ser conhecido por AI-1, em virtude da decretação de outros atos institucionais.  O ato instituiu a eleição indireta para a Presidência da República, transformando o Congresso já castrado pelas primeiras cassações de mandatos e subordinado aos novos mecanismos de exceção em dócil colégio eleitoral³.
             
             
          Não obstante a notória simpatia do presidente do Senado pelos golpistas, com os quais há muito se alinhara, foi preciso colocar em execução uma manobra absurdamente anticonstitucional para dar capa de legalidade à ditadura que começava a se instalar:


Do ponto de vista político-institucional, o golpe se consumou na madrugada de 2 de abril: violando todas as normas constitucionais (uma vez que o presidente da República estava no território nacional e não renunciara), o presidente do Senado Federal, Auro de Moura Andrade, declarou a vacância da Presidência da República e o lugar de Jango foi usurpado por Ranieri Mazzilli (a mesma figura que, em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros, os golpistas militares quiseram fazer "presidente4").

           
       Por fim, digo que basta um pouco de raciocínio lógico para concluir que a única opção disponível naquele momento para os políticos profissionais que ainda sobreviviam em um Parlamento sob intervenção, sobretudo os velhos pessedistas, seria o abaixar de orelhas.  Uma eventual postura de repulsa resultaria em cassações em série e no fechamento da Casa.            


No dia seguinte, 10 de abril, o "Supremo Comando Revolucionário" publicou a primeira lista de brasileiros que tinham mandatos cassados e/ou seus direitos políticos suspensos por dez anos.  Um dia depois (11 de abril), um Congresso Nacional mutilado e sob ameaça de novas cassações e baioneta, "elegeu" para a presidência da República o marechal Castelo Branco e, para a vice-presidência, José Maria Alkmim, velho político mineiro, um dos fundadores do PSD, ex-ministro da Fazenda de Kubitschek e que, na oposição a Jango, aliara-se à UDN5.


         A célebre onda conservadora que assola o universo virtual brasileiro, embora não se limite a este objetivo, se configura em boa parte como uma tentativa de conquista dos segmentos que foram denominados pela mídia, nos últimos anos, como "nova classe média".  São milhões de pessoas que, apesar de terem ampliado seu acesso a bens, serviços e informação, em alguns casos abrindo caminho rumo às universidades, ainda padecem de uma crônica escassez de escolaridade real, agravada pelo perfil oligárquico dos meios de comunicação.  Isto favorece, entre incontáveis expressões de reacionarismo, a proliferação dos memes "bolsonáricos", que nada mais são do que vulgarizações extremas de teses já superficiais e mal intencionadas em sua origem.
         A esquerda não pode se esquivar deste combate, sob pena de se ver, em futuro próximo, carente de qualquer projeto político viável.    


Notas:

1- Thomas Skidmore.  Brasil: de Getúlio a Castelo.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 370.

2- Luiz Alberto Moniz Bandeira.  O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964.  Rio de Janeiro: Revan; Brasília: EdUnb, 2001, p. 171.

3- Lincoln de Abreu Penna.  República brasileira.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 266.

4- José Paulo Netto.  Pequena história da ditadura brasileira.  São Paulo: Cortez, 2014, p. 69.

5- Idem, p. 72.






  

2 comentários:

  1. Num mundo ideal um herege comunista maçon que nem você já teria sido queimado nas fogueiras da Santa Inquisição ha muito tempo!!!!!

    Doutor Ramos Figueiredo, PhD.

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    1. No mundo real a Maçonaria não aceita comunistas. O PhD deve ser "peguem Haldol para o Doutor".

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