quarta-feira, 25 de abril de 2012

Balelas de Olavo de Carvalho: árabes, africanos e europeus


         Olavo de Carvalho, “filósofo e jornalista sem diploma”, é uma das maiores celebridades conservadoras da Internet, na qual constantemente se queixa da falta de reconhecimento institucional e produz teorias da conspiração em doses generosas.  Previsivelmente, em boa parte de seus artigos os muçulmanos ocupam o papel de vilões, de ameaça constante à civilização ocidental.  Todavia, no afã de combater o “inimigo”, ele não economiza disparates e juízos de valor que mais caberiam ao chefe de uma torcida organizada. Refratário a Barack Obama, a quem acusa alternadamente de ser muçulmano, comunista e queniano, Olavo emitiu a seguinte pérola em texto de 2008:         


O Islam, religião que ele herdou do pai e da qual obteve sua primeira educação na Indonésia, é a cultura mais escravagista dos últimos dois milênios.

Deixemos Obama em paz para investigar o mérito da questão.  Faço uso das estatísticas mais confiáveis segundo Paul Lovejoy[1], um dos mais categorizados especialistas no que se refere ao tráfico.  Pela soma das tabelas 2.1 e 2.2, temos cerca de 7,22 milhões de escravos africanos enviados para o mundo muçulmano entre 650 e 1600.  Acrescendo a estes números mais 2,2 milhões no período entre 1600 e 1800 (tabela 3.7), os 347 mil levados para Arábia, Pérsia e Índia no século XIX (partindo do duvidoso princípio de que o tráfico para a Índia só envolvia muçulmanos) e admitindo para a região saariana, também no Oitocentos, o 1,2 milhão da tabela 7.1 (mais abaixo), chegaremos a um total próximo a 11 milhões, em aproximadamente 1.250 anos.   
     


Verifiquemos agora as cifras do comércio negreiro empreendido pelos europeus.  O número de africanos que cruzou o Atlântico entre 1500 e 1800 é calculado em 7.766.000.  Nestes trezentos anos, portanto, o total excede o do tráfico muçulmano nos novecentos e cinquenta anos entre 650 e 1600.  Acrescentando a estimativa de 3.466.000 relativa ao século XIX, são mais de 11 milhões, não computando a área periférica das Ilhas Mascarenhas, colonizadas pela França, e o tráfico português do século XV [2].  Na melhor das hipóteses para Olavo de Carvalho, o quadro seria de um tenebroso empate técnico.  Analisando mais friamente, concluiremos que a transferência de mais de 6 milhões de homens e mulheres da África para a América, somente no século XVIII, é um processo sem paralelo na História, que não pode ser minimizado ou justificado.    
  

               Sigamos com os absurdos do exótico guru.  Em setembro de 2009, Olavo de Carvalho denunciava uma hecatombe de enormes proporções:   


Foram os árabes que os destruíram, na sanha de tudo islamizar à força. Boa parte da região que vai desde o Marrocos, a Líbia, a Argélia e o Egito até o Sudão e a Etiópia era cristã até que os muçulmanos chegaram, queimaram as igrejas e venderam os cristãos como escravos.

             Chegando à África do Norte, os árabes conquistaram efetivamente ao Império Bizantino a área que hoje se estende do Egito ao Marrocos. O genocídio generalizado dos cristãos, por sua vez, fica restrito aos delírios de Olavo.  O historiador Albert Hourani (1915-1993), britânico filho de libaneses cristãos, deixa claro não apenas que o domínio bizantino era visto como inconveniente para muitos do que não eram de origem grega, como também que os islâmicos toleraram o culto de “vários grupos cristãos[3]”.  A existência da numerosa minoria copta no Egito contemporâneo, na verdade, já seria suficiente para desacreditar tamanha bobagem.
       Pela leitura de Ricardo da Costa, nota-se que a invasão muçulmana da Península Ibérica, no início do século VIII, contou com o apoio logístico de nobres visigodos insatisfeitos com o resultado das recentes disputas pela sucessão do trono[4].  É inconcebível que o fizessem se o precedente, na vizinha África do Norte, fosse um banho de sangue.

  

       Para arrematar, registro que o historiador português José Hermano Saraiva, prestador de bons serviços ao salazarismo, descreve a dominação islâmica em Portugal como uma época de tolerância religiosa, sem qualquer menção à "queima de igrejas” ou processo semelhante[5]:


          No mesmo texto, Olavo retorna ao tráfico apenas para deixar claro que, quando desconhece um determinado assunto, fabrica dados aleatoriamente:  

se os europeus trouxeram para as Américas algo entre doze e quinze milhões de escravos, os mercadores árabes levaram para os países islâmicos aproximadamente outro tanto, com três diferenças: (1) foram eles que os aprisionaram - coisa que os europeus nunca fizeram, exceto em Angola e por breve tempo –

        Lamento decepcionar as olavetes.  É óbvio que o tráfico "consentido" para o Ocidente superou em muito a captura direta, pois não haveria meios para apanhar mais de 11 milhões de pessoas a laço em menos de quatro séculos.  Porém, o insuspeito Charles Boxer (1904-2000), oficial do serviço secreto britânico, nos ensina que antes da metade do século XV, quando os europeus ainda não haviam chegado a Angola, os portugueses já promoviam razias em busca de escravos na África Ocidental e nas Ilhas Canárias[6]





        Quanto ao tráfico islâmico, valem as mesmas afirmativas.  Houve aprisionamento direto, bem como comércio institucionalizado.  Sobre este último, o especialista brasileiro Alberto da Costa e Silva revela que o Egito muçulmano do século VIII era abastecido “pacificamente” de mão de obra cativa pelos Estados cristãos da Núbia, que, formalmente tributários do Islã, não deixavam de ter ganhos com este tipo de transação[7].  Em resumo: para os traficantes, o que importava era arrebatar a “carga” desejada, empregando os métodos que estivessem ao seu alcance.  Tentar hierarquizá-los segundo o credo é completamente ridículo.  


                 Não obstante a ignorância já demonstrada, Olavo até consegue ter razão em uma de suas acusações ao Islã:

(3) continuaram praticando o tráfico de escravos até o século XX.

                    Existem muitas referências à escravidão em terras muçulmanas no século XX.  O que não se compreende é o triunfalismo pró-europeu do veterano reacionário, visto que a França e a Inglaterra, nações listadas no rol das mais civilizadas, toleraram o cativeiro em seus domínios africanos até tempos inimagináveis para a maior parte do público ocidental, conforme dados também expostos por Paul Lovejoy[8].




                     Como o que começa mal tende a terminar ainda pior, Olavo de Carvalho não se esquece de anexar mais um item à conspiração gramsciana mundial: 

O escravagismo árabe foi assunto proibido por muito tempo, mas o tabu pode-se considerar rompido desde que a editora Gallimard, a mais prestigiosa da Franca, consentiu em publicar o excelente estudo do autor africano Tidiane N'Diaye, Le Genocide Voilé (2008), que comentarei outro dia.

                Sou forçado à pergunta: de onde Olavo faz nascerem tantos palpites sem nexo?   Pelas referências contidas nas tabelas aqui exibidas, percebemos que vários autores quantificaram, nas décadas de 1970 e 1980, o tráfico islâmico.  No Brasil, há vinte anos, Alberto da Costa e Silva já descrevia, a partir de seus estudos africanos, muito sobre a escravidão entre os muçulmanos.  Onde existe o tal tabu? Na Virgínia, terra do auto-exílio de Olavo de Carvalho?
                   Olavo pretende ser a grande cabeça pensante da direita brasileira.  Pena que não é.  O socialismo se concretizaria amanhã!      






[1] Ver Paul Lovejoy.  A escravidão na África: uma história de suas transformações.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, pp. 61, 108 e 235.  
[2] Idem, pp. 90 e 217.
[3] Ver Albert Hourani.  Uma história dos povos árabes.  São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 40.
[4] Cf. Ricardo da Costa.  A guerra na Idade Média.  Rio de Janeiro: Edições Paratodos, 1998, p. 64.
[5] Ver José Hermano Saraiva.  Breve história de Portugal.  Lisboa: Bertrand, 1989. p. 17.
[6] Ver Charles R. Boxer.  O império marítimo português (1415-1825).  Lisboa: Edições 70, 2001, p. 41.
[7] Cf. Alberto da Costa e Silva.  A enxada e a lança: a África antes dos portugueses.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Edusp, 1992, p. 217.
[8] Cf. Paul Lovejoy.  Op. cit, pp. 366 e 389.



7 comentários:

  1. Peço desculpas pelo reduzido tamanho das imagens, que talvez obrigue alguns leitores ao uso do zoom. Abraços para todos.

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  2. Olavo é louco ou quer apenas aparecer....só pode ser isso!!!!!!

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  3. Eu não consigo ler um texto do Olavo até o fim, pois é muito deprimente e falacioso.

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  4. Envidos "para" o mundo islâmico e enviados "para a América ou Europa". Por quem? Quem vendia os escravos aos compradores europeus?
    Comerciantes negros islâmicos e árabes islâmicos.
    Ou você é capaz de achar um livro em que o autor diga que os europeus se embrenhavam pela matas ou desertos africanos à busca de escravos como fizeram os bandeirantes no nosso interior?
    Os europeus compravam, sim, escravos negros, mas não iam caçá-los, não.
    E nem inventaram a escravidão. O que não a justifica, é claro.

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  5. A área que mais abasteceu a América de escravos foi a África Centro-Ocidental, ou região Congo/Angola. Até ontem, nunca tinha sido controlada por islâmicos, a não ser que o "inventor" Gutenberg descubra fortalezas árabes em Cabinda, Luanda, Benguela, etc.
    Sobre as regiões entre o Senegal e o Golfo da Guiné, de onde os europeus também retiraram milhões de escravos, note que a fronteira do Islã, na Idade Moderna, estava bem ao norte do que se verifica hoje. A tese de que os ocidentais foram somente os "consumidores finais" da mercadoria escrava, em contraposição aos muçulmanos "produtores primários" definitivamente não se sustenta.

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  6. Olavo rebateu em um vídeo que sua bibliografia está desatualizada e é só de livros nacionais. Mostrou vários livros falando que os muçulmanos escravizaram por mais tempo e com mais crueldade.
    Longe de mim dar azo ao falastrão, de quem também dou sonoras gargalhadas de seus disparates. Certamente faz citações erradas e fora de contexto. Apenas queria avisá-lo, Gustavo, para quem sabe dar uma olhada e verificar se há algo de útil no que ele cita (não creio muito).
    Olavo de Carvalho tem a única vantagem de demonstrar para onde não se vai.

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    1. A minha longa "correspondência" com o Olavo está em várias partes da Internet, inclusive aqui. Para ser exato, ele não disse que eu só usava "livros nacionais", e sim "em português". Isto, na grande maioria dos casos, é verdade, mas tem como objetivo tornar os textos acessíveis a todos os leitores. Estou nas fases finais da tese do Doutorado e fica difícil retomar o tema com profundidade. Vez por outra, tenho lido algumas páginas do livro do historiador americano Seymour Drescher que foi publicado pela UNESP em 2011, mas uma "continuação' destes posts deve demorar.

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