quinta-feira, 26 de abril de 2012

Balelas sortidas de Olavo de Carvalho


           Prossigo hoje com a exposição da “História Paralela” de Olavo de Carvalho.  Um único post seria insuficiente para dimensionar tão longa carreira de manipulação ideológica em favor das velhas e novas oligarquias.  Para começar, temos uma visão (melhor dizendo, cegueira) muito peculiar sobre o golpe de 31 de março:  


A derrubada do presidente foi um ato legítimo, apoiado pelo Congresso e por toda a opinião pública, expressa na maior manifestação de massas de toda a história nacional (sim, a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” foi bem maior do que todas as passeatas subseqüentes contra a ditadura).

Olavo tinha quase dezessete anos quando o golpe foi desfechado.  Teria sido um adolescente recluso?  Comício da Central à parte, ninguém mais viu a tal unanimidade da “opinião pública”, a começar pelo Ibope, que constatou no ano anterior a folgada predominância da aprovação sobre a reprovação a João Goulart em dez metrópoles brasileiras[1].  O primarismo é tão grande que se torna até desnecessário comparar os números da Marcha da Família com os da Campanha das Diretas.     



                O “filósofo sem diploma”, em seu macarthismo tardio, pode até pensar que o Ibope era (ou é) uma instituição comprada pelos comunistas.  Mas o embaixador americano Lincoln Gordon não endossaria sua opinião.  Muito satisfeito com os fatos em curso no mês de abril de 1964, ele não deixou de lamentar a falta de entusiasmo dos pobres[2]:


            A situação não melhora quando Olavo funde a “História Paralela” com a “Sociologia de Botequim”.  Saem pérolas deste tipo:


A democracia em sentido estrito só deu certo na Inglaterra e nos EUA, porque os povos anglo-saxônicos foram preparados para ela, primeiro, pelo cristianismo (os ingleses cristianizaram-se bem antes do resto da Europa);

            Qualquer pessoa adulta que tenha feito uma boa quinta série sabe que, algum tempo após a retirada das tropas romanas, a Bretanha foi ocupada por anglos e saxões, povos germânicos que rapidamente se fundiram.  Como todos os germânicos da Antiguidade que viviam além das fronteiras romanas, os anglo-saxões, que vieram a subjugar os habitantes da ilha (romanizados ou não), eram politeístas.  Uma breve nota de Perry Anderson nos indica, ao contrário do que afirma Olavo, que a Inglaterra foi cristianizada “com atraso”, se comparada à França e à Península Ibérica[3].  Diante do despropositado chute, surge uma questão: imaginemos que o auto-exilado estivesse certo e os proto-ingleses adotassem o Cristianismo cem anos antes dos outros europeus ocidentais.  De que maneira esta particularidade poderia ser um fator determinante para a evolução política verificada mais de um milênio depois?


            Malabarista nato, Olavo faz o que pode pela memória do franquismo, reconhecendo-o como uma ditadura de direita, mas concedendo-lhe a circunstância atenuante de se contrapor a uma outra ditadura, a republicana:


A república espanhola foi obviamente uma ditadura, e entre ela e a ditadura franquista que a sucedeu Alberto Dines, desmentindo seu fingido horror a comparações dessa ordem, não hesita em estabelecer uma gradação de preferências, com o agravante de que, nessa gradação, não se limita a cotejar a extensão de dois males, mas eleva um deles ao estatuto de um bem, ao afirmar que os “libertários do mundo inteiro” – assim ele qualifica os membros das Brigadas Internacionais – lutavam pelos “conceitos de República, democracia e solidariedade”.

            Nada mais fácil de desmascarar.  Apesar de todos os conflitos de classe que a caracterizam, a República Espanhola da década de 1930 foi um regime constitucional e pluripartidário.  Como se depreende da leitura da Pierre Vilar, diversas correntes da direita e da esquerda locais participavam das eleições e estavam representadas no Parlamento[4].  Equiparar os generais conservadores autoritários e os militantes fascistas que não aceitavam o resultado das urnas aos governantes eleitos segundo as regras constitucionais é uma piada de péssimo gosto.   

    

 
             Péssimo em História Geral, Olavo às vezes parece nunca ter vivido no Brasil. Ele ainda acredita na democracia racial: 


Nunca houve no Brasil partido racista, militância racista, pregação racista, imprensa racista, comícios racistas, panfletos racistas, filmes racistas, programas de rádio ou peças de teatro racistas.

            Mostremos a ele, antes que seja tarde demais, que Papai Noel não existe.  O tema é vasto e comporta um tratado de duas mil páginas, mas fiquemos, por enquanto, limitados a dois casos.  Raymundo Nina Rodrigues se deu ao trabalho de escrever um livro inteiro (do qual apresento um pequeno extrato[5]) para justificar sua tese de que os não-brancos deveriam ser apenas parcialmente imputáveis.  Olavo de Carvalho simplesmente se nega a reconhecê-lo como pregador racista!   


           Na mesma época, os demais vereadores eleitos para formar a Câmara Municipal de Santos se recusaram a receber seus diplomas junto com o líder negro Quintino de Lacerda[6].  Admitamos a razão de Olavo: eles não eram filiados ao Partido Racista Brasileiro!!! 


         Porém, entre todas as distorções e falácias, nada agrada mais a Olavo do que produzir acusações contra comunistas.  Vejamos um exemplo:


Toda a tecnologia genocida dos campos de concentração foi inventada pelos soviéticos.

            Fico na obrigação de frustrá-lo mais uma vez.  Mais de vinte anos antes da Revolução de Outubro, o general espanhol Valeriano Weyler já confinava em condições subumanas centenas de milhares de camponeses cubanos partidários da independência[7]:


         Caso não queiram reconhecer a paternidade espanhola dos campos de concentração, as olavetes e seu líder ao menos devem aceitar a inglesa, visto que o sistema foi atualizado poucos anos depois, na África do Sul[8].



          Conforme-se, Olavo de Carvalho: as técnicas de genocídio sistemático empregadas no século XX são fruto do colonialismo europeu do final do XIX, intimamente associado ao capitalismo.  Como se diz coloquialmente, toma que o filho é teu!
            A influência que este homem (uma espécie de Paulo Francis sem muita graça) consegue exercer sobre milhares de jovens prova definitivamente que há muito a fazer pelo sistema educacional brasileiro. 


[1] Ver Luiz Alberto Moniz Bandeira.  O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964.  Rio de Janeiro: Revan, 2001, pp. 185/186.   
[2] Idem, p. 182.
[3] Ver Perry Anderson. Passagens da Antiguidade ao Feudalismo.  São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 121. 
[4] Cf. Pierre Vilar.  A guerra da Espanha: 1936-1939.  São Paulo: Paz e Terra, 1989, pp. 31/32. 
[5] Nina Rodrigues.   As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. Bahia, 1894, p. 47.  
[6] Ver Ana Lúcia Duarte Lanna.  Uma cidade na transição: Santos, 1870-1913.  São Paulo: Hucitec; Santos: Prefeitura Municipal, 1996, p. 194.
[7] Cf. Richard Gott.  Cuba: uma nova história.  Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 114. 
[8] Ver Wesseling.  Dividir para dominar: a partilha da África 1880-1914.  Rio de Janeiro: UFRJ/Revan, 1998, pp. 357/358.  

6 comentários:

  1. Olavo de Carvalho é um pobre coitado. Pior ainda é quem dele se socorre intelectualmente...

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  2. Adorei! Mas posso fazer uma pequena correção? Não é exato que "como todos os germânicos da Antiguidade que viviam além das fronteiras romanas, os anglo-saxões [...]eram politeístas".

    Os anglo-saxões, os francos, os escandinavos...mas não todos os germanos, muitos dos quais já haviam sido cristianizados durente o século IV,apenas professando o arianismo, uma forma diversa do cristianismo que foi declarada herética pelo Concílio de Nicéia, o que enevenenaria as relações dos reis bárbaros com a aristiocracia romana. O texto do Amderson, aliás, menciona isso.

    Aliás, você irá comentar a versão da história da Revolução Haitiana saída da pena deste senhor?

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  3. Interessante, vou retornar a Perry Anderson. Mas onde Olavo falou sobre o Haiti?

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  4. Caro Carlos,
    Consultei Perry Anderson. Ele não se aprofunda muito no tema, mas a exposição parece não me contradizer:

    "Todos os maiores invasores germânicos ainda eram pagãos às vésperas de sua irrupção no Império. A organização social tribal era inseparável das religiões tribais. A passagem política a um sistema de Estado territorial também era inevitavelmente acompanhada pela conversão ideológica ao cristianismo- que parece ter ocorrido em todos os casos numa geração desde o início do cruzamento das fronteiras. Isto não foi fruto dos esforços missionários da Igreja Católica, que ignorava ou desprezava os recém-chegados ao Império. Foi obra, objetivamente, do próprio processo remodelador de transplantação, do qual a mudança de fé foi um sinal interior".
    (Passagens da Antiguidade ao Feudalismo, pp. 113/114)

    Não esperava que surgisse esta controvérsia, que aliás se mostrou interessante. Caso algum leitor conheça melhor a difusão do Cristianismo entre os germanos, agradeço previamente pela contribuição.
    Registro meu agradecimento também pelas mais de 3.000 visitas, marca alcançada hoje.

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  5. Caro Gustavo: Na página que você mostrou primeiramente, a 587, de sua edição de "Passagens da Antiguidade ao Feudalismo", está - mencionado incidentalmente pelo Anderson - que os visigodos e os lombardos converteram-se , já instalados no antigo Império Romano entre os séculos VI e VII, _do arianismo ao catolicismo_. Pelo que me lembro, o arianismo era a religião dos ostrogodos, visigodos, vândalos (que perseguiriam o catolicismo no Norte da África a um tal ponto que isto pode ter impossibilitado a manutenção de uma minoria crstã nas atuais Tunísia e Argélia depois da conquista árabe) lombardos e talvez burgúndios, todos convertidos ao cristianismo ariano a partir da missão do bispo Ulfila, entre os séculos III e IV.

    Sobre versões bizarras do respeito de Haiti e Revolução Haitiana, veja este link aqui (se bem que são bizarrices orais, não escritas):

    http://www.youtube.com/watch?v=tnCZXp1vW_k&feature=player_embedded

    Continue o bom trabalho, e Abraços!

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  6. Correção minha: a página mostrada acima, do Anderson, é a 121. Ao escrever sem olhar para o texto, produzi um _lapsus calami_ e disse que era página 587 (ano da conversão dos visigodos ao catolicismo).

    Quanto ao video do You Tube, acrescento que não é apenas a versão de ultradireita da Revolução Haitiana, e sim uma mini-enciclopédia de bizarrices, com temas que vão da biografia de Toussaint L'Ouverture ao folclore tradicional brasileiro, passando pela teodicéia.

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