Prossigo hoje com a exposição da “História
Paralela” de Olavo de Carvalho. Um único
post seria insuficiente para dimensionar tão longa carreira de manipulação
ideológica em favor das velhas e novas oligarquias. Para começar, temos uma visão (melhor
dizendo, cegueira) muito peculiar sobre o golpe de 31 de março:
A
derrubada do presidente foi um ato legítimo, apoiado pelo Congresso e por toda
a opinião pública, expressa na maior manifestação de massas de toda a história
nacional (sim, a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” foi bem maior do
que todas as passeatas subseqüentes contra a ditadura).
Olavo tinha quase
dezessete anos quando o golpe foi desfechado.
Teria sido um adolescente recluso?
Comício da Central à parte, ninguém mais viu a tal unanimidade da
“opinião pública”, a começar pelo Ibope, que constatou no ano anterior a folgada
predominância da aprovação sobre a reprovação a João Goulart em dez metrópoles
brasileiras[1]. O primarismo é tão grande que se torna até
desnecessário comparar os números da Marcha da Família com os da Campanha das Diretas.
O “filósofo sem diploma”, em seu
macarthismo tardio, pode até pensar que o Ibope era (ou é) uma instituição
comprada pelos comunistas. Mas o
embaixador americano Lincoln Gordon não endossaria sua opinião. Muito satisfeito com os fatos em curso no mês
de abril de 1964, ele não deixou de lamentar a falta de entusiasmo dos pobres[2]:
A situação não melhora quando
Olavo funde a “História Paralela” com a “Sociologia de Botequim”. Saem pérolas deste tipo:
A
democracia em sentido estrito só deu certo na Inglaterra e nos EUA, porque os
povos anglo-saxônicos foram preparados para ela, primeiro, pelo cristianismo
(os ingleses cristianizaram-se bem antes do resto da Europa);
Qualquer
pessoa adulta que tenha feito uma boa quinta série sabe que, algum tempo após a retirada das
tropas romanas, a Bretanha foi ocupada por anglos e saxões, povos germânicos
que rapidamente se fundiram. Como todos
os germânicos da Antiguidade que viviam além das fronteiras romanas, os
anglo-saxões, que vieram a subjugar os habitantes da ilha (romanizados ou não), eram
politeístas. Uma breve nota de Perry
Anderson nos indica, ao contrário do que afirma Olavo, que a Inglaterra foi
cristianizada “com atraso”, se comparada à França e à Península Ibérica[3]. Diante do despropositado chute, surge uma
questão: imaginemos que o auto-exilado estivesse certo e os proto-ingleses adotassem o Cristianismo cem anos antes dos outros europeus ocidentais. De que maneira esta particularidade poderia ser
um fator determinante para a evolução política verificada mais de um milênio
depois?
Malabarista nato, Olavo faz o que
pode pela memória do franquismo, reconhecendo-o como uma ditadura de direita,
mas concedendo-lhe a circunstância atenuante de se contrapor a uma outra ditadura, a
republicana:
A
república espanhola foi obviamente uma ditadura, e entre ela e a ditadura
franquista que a sucedeu Alberto Dines, desmentindo seu fingido horror a
comparações dessa ordem, não hesita em estabelecer uma gradação de
preferências, com o agravante de que, nessa gradação, não se limita a cotejar a
extensão de dois males, mas eleva um deles ao estatuto de um bem, ao afirmar
que os “libertários do mundo inteiro” – assim ele qualifica os membros das
Brigadas Internacionais – lutavam pelos “conceitos de República, democracia e
solidariedade”.
Nada
mais fácil de desmascarar. Apesar de
todos os conflitos de classe que a caracterizam, a República Espanhola da
década de 1930 foi um regime constitucional e pluripartidário. Como se depreende da leitura da Pierre Vilar,
diversas correntes da direita e da esquerda locais participavam das eleições e
estavam representadas no Parlamento[4]. Equiparar os generais conservadores
autoritários e os militantes fascistas que não aceitavam o resultado das urnas
aos governantes eleitos segundo as regras constitucionais é uma piada de
péssimo gosto.
Péssimo em História Geral,
Olavo às vezes parece nunca ter vivido no Brasil. Ele ainda acredita na
democracia racial:
Nunca
houve no Brasil partido racista, militância racista, pregação racista, imprensa
racista, comícios racistas, panfletos racistas, filmes racistas, programas de
rádio ou peças de teatro racistas.
Mostremos a ele, antes que seja tarde demais, que Papai Noel não existe. O tema é vasto e comporta um tratado de duas
mil páginas, mas fiquemos, por enquanto, limitados a dois casos. Raymundo Nina Rodrigues se deu ao trabalho de
escrever um livro inteiro (do qual apresento um pequeno extrato[5])
para justificar sua tese de que os não-brancos deveriam ser apenas parcialmente
imputáveis. Olavo de Carvalho
simplesmente se nega a reconhecê-lo como pregador racista!
Na mesma época, os demais vereadores
eleitos para formar a Câmara Municipal de Santos se recusaram a receber seus
diplomas junto com o líder negro Quintino de Lacerda[6]. Admitamos a razão de Olavo: eles não eram
filiados ao Partido Racista Brasileiro!!!
Porém, entre todas as distorções
e falácias, nada agrada mais a Olavo do que produzir acusações contra
comunistas. Vejamos um exemplo:
Toda a
tecnologia genocida dos campos de concentração foi inventada pelos soviéticos.
Fico
na obrigação de frustrá-lo mais uma vez.
Mais de vinte anos antes da Revolução de Outubro, o general espanhol
Valeriano Weyler já confinava em condições subumanas centenas de milhares de
camponeses cubanos partidários da independência[7]:
Caso não queiram reconhecer a
paternidade espanhola dos campos de concentração, as olavetes e seu líder ao
menos devem aceitar a inglesa, visto que o sistema foi atualizado poucos anos
depois, na África do Sul[8].
Conforme-se, Olavo de Carvalho:
as técnicas de genocídio sistemático empregadas no século XX são fruto do colonialismo
europeu do final do XIX, intimamente associado ao capitalismo. Como se diz coloquialmente, toma que o filho
é teu!
A
influência que este homem (uma espécie de Paulo Francis sem muita graça)
consegue exercer sobre milhares de jovens prova definitivamente que há muito a
fazer pelo sistema educacional brasileiro.
[1]
Ver Luiz Alberto Moniz Bandeira. O
governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964. Rio de Janeiro: Revan, 2001, pp.
185/186.
[2] Idem, p.
182.
[3]
Ver Perry Anderson. Passagens da Antiguidade ao Feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 121.
[4]
Cf. Pierre Vilar. A guerra da
Espanha: 1936-1939. São Paulo: Paz e
Terra, 1989, pp. 31/32.
[5]
Nina Rodrigues. As raças humanas e a
responsabilidade penal no Brasil. Bahia, 1894, p. 47.
[6]
Ver Ana Lúcia Duarte Lanna. Uma
cidade na transição: Santos, 1870-1913.
São Paulo: Hucitec; Santos: Prefeitura Municipal, 1996, p. 194.
[7]
Cf. Richard Gott. Cuba: uma nova
história. Rio de Janeiro: Zahar,
2006, p. 114.
[8]
Ver Wesseling. Dividir para dominar:
a partilha da África 1880-1914. Rio
de Janeiro: UFRJ/Revan, 1998, pp. 357/358.
Olavo de Carvalho é um pobre coitado. Pior ainda é quem dele se socorre intelectualmente...
ResponderExcluirAdorei! Mas posso fazer uma pequena correção? Não é exato que "como todos os germânicos da Antiguidade que viviam além das fronteiras romanas, os anglo-saxões [...]eram politeístas".
ResponderExcluirOs anglo-saxões, os francos, os escandinavos...mas não todos os germanos, muitos dos quais já haviam sido cristianizados durente o século IV,apenas professando o arianismo, uma forma diversa do cristianismo que foi declarada herética pelo Concílio de Nicéia, o que enevenenaria as relações dos reis bárbaros com a aristiocracia romana. O texto do Amderson, aliás, menciona isso.
Aliás, você irá comentar a versão da história da Revolução Haitiana saída da pena deste senhor?
Interessante, vou retornar a Perry Anderson. Mas onde Olavo falou sobre o Haiti?
ResponderExcluirCaro Carlos,
ResponderExcluirConsultei Perry Anderson. Ele não se aprofunda muito no tema, mas a exposição parece não me contradizer:
"Todos os maiores invasores germânicos ainda eram pagãos às vésperas de sua irrupção no Império. A organização social tribal era inseparável das religiões tribais. A passagem política a um sistema de Estado territorial também era inevitavelmente acompanhada pela conversão ideológica ao cristianismo- que parece ter ocorrido em todos os casos numa geração desde o início do cruzamento das fronteiras. Isto não foi fruto dos esforços missionários da Igreja Católica, que ignorava ou desprezava os recém-chegados ao Império. Foi obra, objetivamente, do próprio processo remodelador de transplantação, do qual a mudança de fé foi um sinal interior".
(Passagens da Antiguidade ao Feudalismo, pp. 113/114)
Não esperava que surgisse esta controvérsia, que aliás se mostrou interessante. Caso algum leitor conheça melhor a difusão do Cristianismo entre os germanos, agradeço previamente pela contribuição.
Registro meu agradecimento também pelas mais de 3.000 visitas, marca alcançada hoje.
Caro Gustavo: Na página que você mostrou primeiramente, a 587, de sua edição de "Passagens da Antiguidade ao Feudalismo", está - mencionado incidentalmente pelo Anderson - que os visigodos e os lombardos converteram-se , já instalados no antigo Império Romano entre os séculos VI e VII, _do arianismo ao catolicismo_. Pelo que me lembro, o arianismo era a religião dos ostrogodos, visigodos, vândalos (que perseguiriam o catolicismo no Norte da África a um tal ponto que isto pode ter impossibilitado a manutenção de uma minoria crstã nas atuais Tunísia e Argélia depois da conquista árabe) lombardos e talvez burgúndios, todos convertidos ao cristianismo ariano a partir da missão do bispo Ulfila, entre os séculos III e IV.
ResponderExcluirSobre versões bizarras do respeito de Haiti e Revolução Haitiana, veja este link aqui (se bem que são bizarrices orais, não escritas):
http://www.youtube.com/watch?v=tnCZXp1vW_k&feature=player_embedded
Continue o bom trabalho, e Abraços!
Correção minha: a página mostrada acima, do Anderson, é a 121. Ao escrever sem olhar para o texto, produzi um _lapsus calami_ e disse que era página 587 (ano da conversão dos visigodos ao catolicismo).
ResponderExcluirQuanto ao video do You Tube, acrescento que não é apenas a versão de ultradireita da Revolução Haitiana, e sim uma mini-enciclopédia de bizarrices, com temas que vão da biografia de Toussaint L'Ouverture ao folclore tradicional brasileiro, passando pela teodicéia.