sexta-feira, 27 de abril de 2012

Considerações sobre certo "antirracialismo"









Roberta Fragoso Kaufmann, advogada do DEM, defendeu nos últimos dias as diretrizes deste partido no Supremo Tribunal Federal.  Como foi amplamente noticiado, os ex-pefelistas impetraram uma ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) contra o sistema de cotas raciais instituído na Universidade de Brasília (UnB).  Não terei como foco principal, nesta postagem, a questão das cotas. Já deixei bem definidas minhas opiniões sobre o tema em texto muito recente.  O que me inquieta, na verdade, é uma breve exposição de Roberta contra a implantação de medidas de ação afirmativa no Brasil, divulgada no site do Instituto Millenium:


            Os argumentos não são exatamente originais, mas a advogada sustenta com fervor duas teses muito caras à maioria dos conservadores brasileiros, ainda que não estejam formuladas exatamente nestes termos:

1)Não existem, a rigor, problemas étnicos no Brasil.

2)As desigualdades sociais entre brancos e negros refletem apenas as diferenças, verificadas em passado mais ou menos distante, no campo das oportunidades econômicas.

            Como discordo radicalmente destas premissas, comentarei alguns trechos do artigo de Roberta.   

Alguém poderia me ensinar qual é o limite exato entre um pardo e um branco no Brasil? Será que preciso andar com uma cartela de cores igual à das lojas de pintura para que esta definição seja precisa e possa fazer algum sentido?

            Um recurso típico dos adversários das cotas é a biologização das questões étnicas; ao invés de se reportarem ao elemento fundamental, o identitário (como me vejo e como sou visto), tentam embaralhar o debate com afirmativas do tipo “Os negros têm sangue branco e os brancos têm sangue negro”.  Roberta Kaufmann vai além e, incorrendo exatamente em um erro que pretende criticar, vincula as identidades étnicas à cor da pele dos indivíduos, coisa que causaria arrepios em qualquer antropólogo.  Mas devo responder objetivamente: um pardo é uma pessoa que se entende como mestiço afrodescendente, não importando se sua cútis é marrom escura, avermelhada ou amarelada, se possui ou não os marcadores X, Y e Z em seu DNA, se tem cabelo crespo, liso ou ondulado.  Um branco é alguém plenamente identificado com sua origem europeia (ou, em alguns casos, sírio-libanesa, turca, judaica), mesmo que a pesquisa genealógica demonstre que uma de suas bisavós foi escrava nascida no Congo.      

Não por acaso, na única pesquisa de amostragem em que o entrevistado foi livre para dizer à que cor pertencia, o resultado em terras tupiniquins foram impressionantes 135 possibilidades, em uma mostra criativa que nem o Aurélio é capaz de reproduzir.

            A multiplicidade de autodefinições, tantas vezes mencionada pelos crentes na democracia racial, aponta para o contrário do que Roberta gostaria de provar: em primeiro lugar, quando um entrevistado diz que sua cor é “negrota”, “verde”, “saraúba”, “pouco clara” ou “branca suja”, revela inequivocamente a escassez de oportunidades para se instruir, que sempre foi uma das principais mazelas da população negra brasileira; em segundo, deixa igualmente óbvia a forte hierarquização étnica que existe na sociedade: muitas pessoas têm vergonha de se definir para estranhos como negras, pardas ou mulatas, palavras simples, de fácil compreensão e de uso corrente em todas as classes.    

Esta exposição se torna melancólica em relação ao nosso país quando se percebe que se a Corte Constitucional conceder o beneplácito à instituição das políticas de cotas raciais em Universidades, como é o caso hoje em julgamento, paulatinamente as cotas raciais serão estabelecidas em todos os setores sociais, como pretendido pela Secretaria de Igualdade Racial, beneficiando tão-somente uma casta de privilegiados de classe média e alta de negros que não seriam os mais necessitados da ajuda estatal.

            Temos neste parágrafo uma forte contradição para uma profissional com a projeção de Roberta Kaufmann: caso as cotas se ampliem para “todos os setores sociais”, o que inclusive considero coerente, é ilógico que venham a beneficiar somente os negros “de classe média e alta”.  Alguém consegue imaginar que os filhos de advogados, médicos e engenheiros negros se candidatarão a vagas de caixa de supermercado e balconista de farmácia?  

Em vez de observarmos o Brasil como exemplo para o mundo do século XXI, a partir do convívio harmônico entre brasileiros natos e imigrantes das mais diferentes culturas, religiões e cores, ativo absolutamente estratégico nesse século de tantos conflitos, pretende-se promover o dissenso e a divisão de nossa unidade nacional.

            Desconheço o que Roberta entende como convívio harmônico, mas julgo absurdo o emprego desta expressão quando as pessoas instruídas, de maneira geral, sabem que o Brasil foi, durante o final do século XIX e boa parte do XX, um país de imigração seletiva, cujos governantes assumiam sem disfarce seu objetivo de branquear progressivamente a população.  Durante várias gerações, diretores de faculdades de Medicina, juristas, sociólogos e outros intelectuais redigiram obras proclamando a inferioridade biológica do negro, visão que se estendeu, direta ou indiretamente, a todos os níveis do ensino público e particular.  Não acredito na viabilidade do projeto de apresentar ao mundo como exemplo uma sociedade em que a subalternidade de uma parcela enorme de seus integrantes é praticamente naturalizada por segmentos numerosos.  Muitos brasilianistas já denunciaram a falsidade da lenda.                          

Podemos ser criativos e elaborarmos um modelo próprio de ação afirmativa para a necessária integração dos negros carentes no Brasil. Cotas sociais, sim! Cotas raciais, não! Porque a pobreza, no Brasil, é a grande causa da segregação.

            Roberta Kaufmann fecha o libelo com seu engano mais grave: se é certo que a pobreza se distribui por todas as etnias, aliás de maneira nada “equilibrada”, existem circunstâncias perversas que não podem ser explicadas por critérios de renda.  Recorro de passagem ao Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil; 2007-2008, organizado por Marcelo Paixão e Luiz Carvano, vinculados ao Instituto de Economia da UFRJ.  Os dados apresentados nesta publicação indicam que a vida de pessoas não-brancas, no país, vale muito menos do que a de pessoas brancas, ou no mínimo que existe uma presunção generalizada de impunidade no que se refere ao assassínio de não-brancos.  Ainda que levemos em conta o declínio da oferta de serviços de segurança pública segundo os bairros em que predominam as diversas classes sociais, a desproporção é gritante:        

“A razão de mortalidade por 100 mil habitantes de homens pretos e pardos por armas de fogo foi, em 2005, de 45. Entre os homens brancos, de 24,2.  No caso das mulheres, foram: pretas e pardas, 2,5; brancas, 1,8[1]”.

            Como se não bastasse a possibilidade nunca desprezível de fuzilamento por bandidos, policiais ou mesmo vizinhos enfurecidos, os negros se defrontam com outro problema também muito evidente: por mais que se qualifiquem intelectualmente, nada garante que obterão reconhecimento enquanto trabalhadores intelectuais.  Nem tampouco que o Estado capitalista vá ampliar satisfatoriamente a rede de ensino de maneira a contemplar todos os que desejam chegar aos níveis mais altos de escolaridade. Encaremos com realismo mais algumas estatísticas:    

A proporção de pretos e pardos ocupados, com pelo menos o ensino médio completo, em 2006, equivalia à situação dos brancos onze anos antes, em 1995.  Do mesmo modo, apesar de ter praticamente dobrado o percentual de ocupados pretos e pardos com nível superior- de 1,9%, em 1995, para 3,7% em 2006-, o peso dos diplomados com este nível de instrução, comparativamente à distribuição dos ocupados brancos por nível de instrução- de 13,5% neste caso-, correspondia a menos de um terço que o dos brancos[2].

            Por todas estas razões, eu digo: Cotas sociais, sim! Cotas raciais, sim! Não à intenção de segregação camuflada pelo discurso da igualdade formal!  




[1] Relatório..., p. 181.
[2] Idem, p. 92.

Um comentário:

  1. Sou negro, fui pobre e digo: Dívida histórica foi com os escravos e não com os negros. Agora se você quer empurrar goela abaixo uma atitude afro-nazista imposta pelo governo da nova ordem comandado pelos maçons e clube Bildenberg sem motivo algum você é pior que os anti semitas.
    Vocês são a Direita Extrema disfarçado de esquerda.

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