quarta-feira, 11 de abril de 2012

O Estado norte-americano e sua obsessão por Cuba (século XIX)


Nunca, a não ser como idéia oculta nas profundezas de almas generosas, Cuba foi, para os Estados Unidos, algo mais do que uma possessão desejável, cuja única inconveniência é a sua população, que eles consideram rebelde, preguiçosa e digna de desprezo.

(José Martí, em carta de maio de 1886 a Ricardo Rodríguez Otero. Citado em Richard Gott.  Cuba: uma nova história.  Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 107)   

            O interesse norte-americano pela incorporação da ilha de Cuba ao seu território remonta aos primeiros tempos dos Estados Unidos enquanto país autônomo.  A compra da Flórida à Espanha, em 1821, tornou esta possibilidade mais viável, na medida em que o império colonial espanhol nas Américas desmoronava diante dos movimentos de independência.  Em 1823, John Quincy Adams (1767-1848), então secretário de Estado, explicitou tal intenção, ao declarar, em carta a Hugh Nelson, representante dos Estados Unidos em Madri, que

Há leis da política como há leis de gravitação física.  E se uma maçã, separada pela tempestade da sua árvore nativa, não pode escolher, mas apenas cair ao chão.  Cuba, por força desligada do seu vínculo não natural com a Espanha, e incapaz de auto-sustentar-se, só pode gravitar na direção da União Norte-Americana, a qual, pela mesma lei da natureza, não a pode segregar do seu seio[1].

            Pouco mais tarde, em 1825, os Estados Unidos arrancaram da Espanha a promessa de que Cuba, em nenhuma hipótese, passaria ao controle de outra potência europeia.  O historiador Fraginals identifica, como importante fator de encorajamento desta ambição ao longo da História, os interesses da oligarquia criolla, que em regra admirava o vizinho do Norte[2].
O controle espanhol sobre a ilha, extremamente repressivo nas décadas de 1820 e 1830, moldou a opinião dos intelectuais naturais de Cuba contra a metrópole, levando-os a pensar em duas alternativas: a independência ou a anexação aos Estados Unidos.  A segunda encontrou um defensor de peso em Antonio Saco (1797-1879), escritor e político que redigira, em Paris, uma história da escravidão.  Saco temia que os negros de Cuba se unissem aos da Jamaica e do Haiti para subjugar a população branca de toda a região caribenha.  Receoso de que os brancos cubanos não pudessem escapar simultaneamente da opressão colonial e da eventual revolta das populações de cor, via como solução “jogarmo-nos nos braços dos Estados Unidos[3]”.
            A eclosão da rebelião de La Escalera, em 1843, quando escravos e negros livres, associados, atacaram várias propriedades, tentando recrutar cativos dos engenhos e trabalhadores das ferrovias para o movimento, fez crescer o apoio ao anexionismo entre a classe dominante local.  Um dos principais difusores da proposta era Cristóbal Madán, plantador exilado em Nova York, não por acaso cunhado do jornalista John O’Sullivan (1813-1895), criador da expressão Destino Manifesto, pretendida justificativa para o expansionismo territorial norte-americano.  Naquela conjuntura, os Estados Unidos eram o principal parceiro econômico da ilha, comprando a maior parte da produção açucareira e exportando os manufaturados que abasteciam o mercado consumidor cubano.  Em sintonia com estas articulações, o presidente americano James K. Polk (1795-1849) ofereceu à Espanha 100 milhões de dólares pela soberania sobre Cuba em 1848, cifra ampliada para 130 milhões por Franklin Pierce (1804-1869) em 1854.  Não obstante a recusa espanhola, aventureiros tentaram realizar o projeto por conta própria.  Um deles foi Narciso López, nascido na Espanha, que liderou duas expedições rumo a Cuba, nas quais tomaram parte centenas de americanos.  Aprisionado em 1851, López acabou executado em Havana por meio do garrote vil, técnica de estrangulamento comumente adotada pelo Estado espanhol[4].
            O anexionismo contava igualmente com a associação entre particulares cubanos e americanos no território dos Estados Unidos.  O jornal La Verdad, publicado na América do Norte, estava sob a direção do cubano Gaspar Betancourt Cisneros, representante dos pecuaristas da região de Puerto Príncipe.  Entretanto, a dona do periódico era Cora Montgomery, mulher do general William M. Cazneau, que havia se destacado na tomada do Texas ao México[5]
A perspectiva de incorporação da ilha aos Estados Unidos, que seduzia em particular os proprietários dos engenhos na altura da metade do século XIX, perdeu prestígio com a deflagração da Guerra de Secessão[6], mas não foi de todo abandonada. Quando deu início à Guerra dos Dez Anos (1868-1878) contra o domínio metropolitano, Carlos Manuel de Céspedes (1819-1874) conclamou os cubanos à independência.  Entretanto, o outro projeto retornou à ordem do dia, e uma convenção realizada por rebeldes na localidade de Guáimaro votou a favor da anexação pelos Estados Unidos.  Como não havia um compromisso claro dos insurretos no sentido da abolição da escravatura, e funcionários de seu próprio governo se batiam pela velha proposta de adquirir Cuba por compra, o presidente Ulysses Grant (1822-1885) decidiu aguardar o curso dos acontecimentos[7].
            Céspedes chegou a solicitar a Grant, em março de 1869, o reconhecimento do movimento que comandava como parte beligerante.  Tinha como argumento a seu favor o fato de que a Espanha reconhecera, alguns anos antes, a beligerância do Sul na Guerra de Secessão.  Entretanto, não houve reconhecimento e, além disto, os americanos se aproveitaram do conflito para vender armamentos aos espanhóis.  Numerosos cubanos se exilaram, durante a guerra, em cidades como Key West, Tampa, Baltimore, Nova York e Filadélfia.  Conseguiram, ao menos, fazer com que boa parte da população americana passasse a simpatizar com a ideia da independência de Cuba[8].  Por outro lado, vários exilados se naturalizaram cidadãos dos Estados Unidos, entre os quais Miguel Aldama, àquela altura o principal líder dos anexionistas.  Fortalecia-se a antiga “estratégia da maçã madura[9]”.  
            Na década de 1880, a vinculação entre as economias americana e cubana continuou a crescer, a tal ponto que os Estados Unidos, que já compravam mais de 80% das safras agrícolas de Cuba, atingiram um percentual superior a 90% em 1891.  Sob pressão, os espanhóis assinaram, em 1884, um tratado antiprotecionista, que deixariam de cumprir, porém, devido a uma alternância entre gabinetes na metrópole[10].  Além de dominar o comércio exterior cubano, os capitalistas americanos vieram a ocupar um espaço diferenciado no próprio setor produtivo: em 1888, vinte refinarias se fundiram para dar lugar ao truste comandado por Henry Havemeyer, que assumiria dois anos mais tarde a denominação de American Sugar Refining Company, empresa virtualmente monopolizadora das vendas de açúcar refinado nos Estados Unidos[11].   
Uma segunda guerra de independência, entre 1895 e 1898, enfraqueceu tanto a Espanha, que enviou duzentos mil soldados à colônia para não perdê-la, dos quais muitos morreram, quanto os partidários da liberdade, que foram submetidos às duras táticas de confinamento e extermínio empreendidas pelo general Valeriano Weyler (1838-1930), marquês de Tenerife, instalado em Havana como capitão-geral em 1896.  Tombariam em combate José Martí (1853-1895), mentor intelectual dos patriotas cubanos, e o general mulato Antonio Maceo (1845-1896), veterano da Guerra dos Dez Anos, o mais carismático de seus chefes militares.  Entre as grandes lideranças restava apenas Máximo Gómez (1836-1905)[12].
Com o desaparecimento de Martí, a organização por ele comandada, o Partido Revolucionário Cubano, ficou sob a presidência de Tomás Estrada Palma, outro ex-combatente da Guerra dos Dez Anos, que havia adquirido a cidadania americana durante um longo exílio naquele país, onde trabalhou como professor.  Fraginals demonstra simpatia por Estrada Palma, tido como um homem imune à corrupção.  Todavia, sob aquela gestão, os magnatas do açúcar, aliados aos interesses dos Estados Unidos, alcançaram a hegemonia sobre o PRC, dele expulsando os operários da indústria do tabaco e outros integrantes das classes médias e baixas, antes arregimentados por Martí[13].
Estavam abertas as oportunidades para a intervenção americana, concretizada após a explosão do couraçado Maine no porto de Havana, em 15 de fevereiro de 1898, que provocou a morte de 258 marinheiros.  Este acontecimento, na verdade um acidente, foi apresentado à opinião pública dos Estados Unidos como resultado de sabotagem espanhola.  Declarada a guerra entre os dois países a 25 de abril, tropas americanas atacaram Cuba e Porto Rico, nas Antilhas, Filipinas e Guam, no Pacífico.  Em 1º de julho de 1898, na localidade de Loma San Juan, em Santiago de Cuba, aconteceu a principal batalha pelo controle da ilha, na qual três mil americanos, que sofreram pesadíssimas baixas, terminaram por dobrar a resistência de mil espanhóis.  Três semanas incompletas bastaram para a liquidação de um domínio de quase quatro séculos[14].
            A invasão nada teve de improvisada.  Recusando-se o primeiro-ministro espanhol Antonio Cánovas Del Castillo (1828-1897), em 1896, a admitir a mediação americana entre as partes em luta, o Escritório de Inteligência Naval dos Estados Unidos solicitou a confecção de um plano de guerra contra a Espanha.  A questão constituiu um tema importante na eleição presidencial americana que ocorreu naquele ano.  O presidente em exercício, Grover Cleveland (1837-1898), democrata, era acusado de inércia no que se referia a Cuba.  O pleito, afinal, seria vencido por William McKinley (1843-1901), republicano e favorável ao expansionismo[15]
             
               


[1] Ver Richard Gott.  Cuba: uma nova história.  Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 75.
[2] Cf. Manuel Moreno Fraginals.  Cuba/Espanha, Espanha/Cuba.  Bauru: Edusc, 2005, pp. 255/256.
[3] Cf. Gott, pp. 72 a 74.
[4] Idem, pp. 82 a 87.
[5] Cf. Fraginals, p. 251. 
[6] Ver Tulio Halperin Donghi.  História da América Latina.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975, p. 165.
[7] Ver Gott, p. 98.
[8] Ver Fraginals, pp. 305/306.
[9] Idem, p. 312.
[10] Ibidem, pp. 329/330.
[11] Ver José A. Benítez.  El pensamiento revolucionario de hombres de nuestra América.  La Habana: Editora Política, 1986, p. 331.
[12] Cf. Gott, pp. 109 a 117.
[13] Cf. Fraginals, pp. 338/339.
[14] Cf. Gott, pp. 117 a 120.
[15] Idem, pp. 120/121. 

4 comentários:

  1. Obsessão é uma palavra apropriada para definir a curta fase imperialista dos EUA ao final do século 19. Vá lá que países europeus superpovoados se entregassem a tal empresa, mas os EUA já eram donos de um imenso território que mal conseguiam povoar, e fizeram questão de conquistar uma ilhotas. É por isso que eu sempre afirmei que o imperialismo norte-americano foi pífio, nada comparável ao imperialismo europeu e japonês que de desenrolava na mesma época, e o que se matraqueia por aí como sendo o "imperialismo ianque" é apenas uma metáfora para referir-se a várias intervenções menores dos EUA aqui e ali. Difícil é dizer o que os norte-americanos ganharam com a conquista de Cuba e Porto Rico, além de um grande número de imigrantes. Bom, ganharam a base de Guantánamo, mas bases eles têm em vários países do mundo sem necessidade de transformá-los em colônia.

    Mas outra questão ainda mais difícil de responder foi levantada pelo venezuelano Carlos Rangel, em seu magnífico ensaio Do Bom Selvagem ao Bom Revolucionário: poucos sul-americanos gostam de admitir, mas Cuba e Porto Rico, posseções norte-americanas, sempre tiveram um nível de vida consideravelmente superior à média de seus vizinhos. Aparentemente, o colonialismo ianque não era tão malévolo assim. Então, por que motivo os cubanos odeiam tanto os norte-americanos? Mas será que odeiam mesmo? Os portorriquenhos, aparentemente, não o fazem, tanto que recusaram a independência em um plebiscito.

    Ou será que a obsessão também é nossa?

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  2. Vamos novamente por etapas:

    .A conquista de "ilhotas" não se resumia a um mero capricho de esticar o território. Cuba e Porto Rico garantiam a proeminência americana no Caribe. Havaí, Filipinas e Guam, uma posição privilegiada no Pacífico.
    .As intervenções podem ter sido rápidas e fáceis, se as compararmos, por exemplo, com a Guerra dos Bôeres enfrentada pela Inglaterra na África do Sul, mas foram muitas.
    .Nicarágua, Haiti e República Dominicana passaram mais tempo sob ocupação direta dos EUA do que Cuba, e nunca foram apresentados por ninguém como modelo de desenvolvimento. A associação entre presença americana e riqueza é, no mínimo, capenga.
    .Eu não diria que "cubanos detestam americanos". Basta olhar para o sucesso do beisebol, dos filmes e carros americanos em Cuba para no mínimo duvidar disto. Mas uma coisa é certa: a maioria dos cubanos, desde as primeiras eleições do país, tendeu à autonomia política. Aqui já entramos em assunto para outro post.

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  3. Belo texto, Gustavo. Para se compreender as questões contemporâneas é necessário ter em mente fatos ocorridos no passado, mas infelizmente a maioria das pessoas não dá essa importância à História.

    Pesquisando mais na internet, acabei lendo sobre a Guerra Filipino-Americana, que é do mesmo período e contexto histórico. Também é um tema interessante.

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  4. As Filipinas, desde a invasão de 1898 até o apoio à ditadura de Marcos, sem dúvida possibilitariam um roteiro semelhante. O problema é que a biografia no Brasil é escassa. O que posso dizer é que há um autor bastante crítico da presença americana nas ilhas, Renato Constantino, que deixou uma produção considerável. Obrigado, amigo, e um grande abraço do Rio de Janeiro!

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