sábado, 14 de abril de 2012

Um pouco de geopolítica imperial: os mapas de Samuel Huntington


               Retorno ao livro O choque de civilizações, de Samuel Huntington, e mais precisamente a seus mapas, complementares às posições teóricas defendidas na obra.  Logo abaixo, vemos uma projeção sobre a composição étnica da população norte-americana em 2020, perfeita ilustração da visão etnocêntrica que Huntington não se empenha em esconder.  O contingente branco é ideologicamente oposto não somente aos "estrangeiros" supostamente mal integrados de origem latina e asiática, mas também aos afro-americanos e "nativos-americanos", sem distinções:     



           
           Segundo o autor, os Estados Unidos são ameaçados pelo multiculturalismo, que se caracteriza pela afirmação e valorização, em seu território, de identidades étnicas e culturais não-ocidentais[1].  O principal foco das preocupações de Huntington é a perspectiva, colocada para a primeira metade do século XXI, de uma elevação do percentual de hispânicos na sociedade americana para um patamar próximo de 25%, acompanhada pela redução dos brancos para cerca de 50%.  Diante destes números, ele afirma sem rodeios que

Enquanto os muçulmanos representam o problema imediato para a Europa, os mexicanos representam tal problema para os Estados Unidos[2].         

A apresentação de dois outros mapas, em sequência, sugere uma tentativa de induzir o leitor ocidental (entendendo-se por Ocidente o conjunto formado pela Europa católica e protestante, América Anglo-Saxônica, Austrália e Nova Zelândia) a sentir desconforto diante de uma drástica redução, em apenas quarenta anos, dos espaços pertencentes à sua civilização; na verdade, o que visualizamos são consequências políticas do salutar processo de descolonização da África, da Ásia e das últimas possessões europeias na América.





          
          A imagem “O Mundo da Guerra Fria: 1960” é repleta de contradições reveladoras.  São classificados como parte do Mundo Livre, na Europa, Portugal e Espanha, sujeitos às ditaduras salazarista e franquista, respectivamente.  Ficam de fora dele, aparentemente por não terem aderido à OTAN, Suíça, Áustria, Suécia e Finlândia, nações que superariam a Península Ibérica, sem dúvida, em qualquer quesito dentro do tema liberdade.
   Na América, Belize, Guiana Francesa e Ilhas Malvinas integram o Mundo Livre, talvez pelo mero fato de ainda estar subordinadas diretamente às antigas metrópoles.  Todavia, o Brasil, onde havia eleições multipartidárias desde 1946, é excluído, integrando o imenso e nebuloso bloco de “países não alinhados”, ainda que, desde o governo Dutra (1946-1951), existisse um nítido alinhamento do Estado brasileiro com o mundo capitalista.  O mesmo se verifica em relação a outros países latino-americanos como Chile, Costa Rica, México e Uruguai, nos quais a eleição de governantes pela via direta predominava há várias décadas sobre as tendências ditatoriais.
            O esquema se torna mais incoerente quando voltamos o olhar para a Ásia.  Seríamos forçados a aceitar que o Mundo Livre tinha entre seus membros o truculento regime do xá Reza Pahlavi, no Irã, bem como o Vietnã do Sul, que passara do domínio colonial francês à ditadura de Ngo Dinh Diem.  A Tailândia, sob governo militar que suprimira a Constituição, lhes faria companhia, ao contrário da Índia, na qual se consolidava, apesar dos conflitos étnicos e religiosos, uma democracia parlamentarista.
            Finalmente, numa África em que dezenas de países recém-autônomos estruturavam seus governos, ao passo que os governadores coloniais voltavam para casa, o território da liberdade estaria limitado,  conforme as crenças da geopolítica conservadora, a um grupo muito seleto: Angola e Moçambique, colônias de Portugal, metrópole há décadas sob o autoritarismo de Salazar; Namíbia, sob ocupação militar sul-africana; Lesoto e Suazilândia, reinos interiores cuja economia dependia totalmente do poderoso vizinho; e, obviamente, a própria sede do apartheid: a África do Sul, em que não apenas os negros (mais de 77% da população em 1951), como também os coloureds (6,7%), estavam totalmente privados dos direitos políticos[3].      
            Samuel Philips Huntington teve inserções destacadas, no seu país, em duas gestões democratas: assessor de Lyndon Johnson no final dos anos 60, defendeu os bombardeios contra a população civil vietnamita, como tática para enfraquecer os vietcongs; na presidência de Jimmy Carter, foi diretor de Planejamento de Segurança do Conselho de Segurança Nacional.  Atualmente, entretanto, seu pensamento encontra maior ressonância entre os republicanos.  As teses de Huntington sobre política externa tiveram boa acolhida no governo de George W. Bush.  Seu nativismo WASP não destoa muito, apesar das diferenças de estilo, do movimento Tea Party e do líder ultradireitista Newt Gingrich.
            Não sou fã de Barack Obama e não endossei nenhuma das numerosas campanhas de apoio à sua primeira candidatura à presidência que pude presenciar pela Internet.  Também penso que, ao contrário do que afirmam seus detratores à direita, Obama cumpre com eficiência a agenda imperial, e sem mostrar desconforto.  Contudo, a mera possibilidade de retorno dos republicanos à Casa Branca me embrulha o estômago.
                
                






[1] Ver Huntington, pp.388/389.


[2] Idem, p. 256. 

[3] Ver Elikia M’Bokolo.  As práticas do apartheid.  In: O livro negro do colonialismo/org. Marc Ferro.Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p. 546.   

6 comentários:

  1. A definição de um Ocidente nos modelos acima, é claramente uma definição política, e não histórica, geográfica ou cultural, como normalmente é esperado na maioria das vezes que se evoca o Ocidente. Varia conforme a época: no primeiro mapa, considera-se como Ocidente aqueles países que, é claro, possuem background europeu, mas que também exibem poderio econômico e militar que os capacita a "levar o ocidente" a outras paragens, daí que os domínios desses países, como a África, sejam incluídos no Ocidente, ainda que tais localidades não tenham a menor herança cultural ou étnica européia, e exclue-se do Ocidente a América Latina, desprezando-se sua efetiva herança cultural e étnica européia, e mais clamorosamente ainda, exclue-se do Ocidente a Grécia, berço histórico do próprio Ocidente, e os países do leste europeu, cuja afinidade com o Ocidente é óbvia.

    Já no segundo mapa, o que conta é o bloco ideológico capitalista X comunista, sendo o bloco capitalista formado, por definição, pelos países capitalistas desenvolvidos e seus domínios. O bloco capitalista é identificado como ocidental e "livre" porque, presumivelmente, o capitalismo e a democracia são invenções do Ocidente. É verdade que também o comunismo e as ditaduras fascistas surgiram no Ocidente, visto que Karl Marx era alemão e Benito Mussolini era italiano, mas isso não importa, pois como eu já observei, o critério para divisão do mundo nesses mapas foi político, e não outro.

    Mas eu penso que deve ser retomada uma definição histórica e cultural do Ocidente. O difícil é que nós mesmos, aqui na América Latina, gostamos de endossar a tese de que os ocidentais são os "outros", o dominador colonial e neo-colonial. Mas tirando algumas regiões onde a preponderância étnica e cultural de populações nativas e africanas é evidente, inclusive no idioma, o que somos nós, nessa América Latina, senão um Ocidente pobre?

    Nós gostamos de super-valorizar nossa herança índia e africana, mas isso no mais das vezes é um expediente politicamente correto para exorcizar nosso sentimento de culpa pela opressão sofrida por esses povos no passado. O nacionalismo sul-americano valoriza o elemento nativo e despreza o europeu como um invasor, como se a América Latina, entendida como expressão nacional, étnica e cultural, já existisse como tal antes de 1500 e os colonizadores europeus fossem meros invasores militares que conseguimos expulsar após séculos de luta, e desde então temos nos esforçado para, das ruínas, erguer nações. É claro que isso é uma mistificação, um teatrinho bobo e sobretudo hipócrita: se a colonização européia se reduziu, como afirmam, a invasão, saque e matança, dessa invasão, saque e matança nós não fomos vítimas: fomos sócios! Sem ela, não estaríamos aqui. Gostemos ou não, somos parte do Ocidente, produto de uma História européia.

    Mas é bom lembrar que, do lado de lá, também há muita gente pronta para concordar conosco quando afirmamos não fazer parte do Ocidente, e por motivos igualmente pouco louváveis: refiro-me a muitos europeus médios, que gostam de imaginar o Ocidente como composto exclusivamente de países ricos, de modo que, na condição de pobre, a América Latina não pode fazer parte do Ocidente. Foi esse pessoal que criou um ditado muito repetido no passado, que dizia que a África começava nos Pirineus (ou em Roma) de modo a excluir os sul-europeus pobres de seu conceito de Europa (faz sentido: se Portugal e Espanha, como afirmam, não são Europa, então o mundo colonial criado por eles não é Ocidente). É esse tipo de gente que concorda com nosso anti-ocidentalismo, infelizmente ainda bem arraigado até hoje: quando Hugo Chávez se nega a comemorar a descoberta da América, mentalmente ele ainda está vivendo no mundo do primeiro mapa, somos índios independentes. Quando o Itamaraty exercita uma extemporânea e inóqua política externa "terceiromundista", mentalmente ainda estamos no mundo do segundo mapa, o tempo da guerra fria quando fazíamos parte do bloco dos não-alinhados.

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  2. Mundim e suas longas objeções...
    Vamos lá:
    1)O domínio ocidental, tal como você colocou, obedece a critérios políticos, mas também aos culturais: toda a América Latina fica de fora, nos dois mapas. Nada disto invalida a minha tese de que a intenção de Huntington era produzir, no leitor ocidental, uma sensação de perda, de declínio da civilização.
    2)Também penso que a Grécia está muito mais ligada ao Ocidente do que à "civilização ortodoxa" de Huntington, mas, no que se refere à Europa, centrei minha crítica nas contradições existentes em torno da "liberdade". Até porque acho extremamente falha a tese de Huntington de que os alinhamentos intercivilizacionais são os mais importantes em geopolítica.
    3)Não há como negar que o autor do mapa classificou como "livres" os países capitalistas de modo geral. Mas nisto caiu em várias contradições: Que liberdade havia nas Filipinas de Marcos ou no Irã do xá? Por que a Nigéria, país capitalista e membro da Comunidade Britânica, e não mais autoritária do que os anteriores, fica de fora do Mundo Livre?
    4)O caráter mais ou menos ocidental da América Latina nos leva a uma discussão interminável. Além das nuances regionais, é fácil notar que, quanto mais próximos estão determinados grupos do topo da escala social, maior é a vinculação aos elementos culturais ocidentais. O contrário também é verdadeiro: as favelas, cortiços e guetos do Brasil em nada se parecem com os conjuntos habitacionais dos europeus pobres. Entretanto, no que se refere ao campo da política, os governos dos "países centrais" jamais trataram a AL em pé de igualdade. No que depender da "aliança ocidental", nada seremos além de uma zona de influência e um mercado consumidor pobre.
    5)Comemorar a "descoberta" é um contrassenso. Ainda que as independências tenham sido realizadas, em muitos casos, por filhos de europeus, elas não deixaram de constituir movimentos de ruptura com as metrópoles. Fazer festa pelo descobrimento é comemorar o estabelecimento da sujeição.
    6)O fato de descendermos de matadores de índios e senhores de escravos (corro aqui o risco da generalização) não invalida nossas críticas à colonização. Está impedido o filho de um estuprador com uma de suas vítimas de fazer discurso de condenação do estupro?
    7)Quando o Itamaraty se aproxima dos BRICs, da África ou do Mundo Árabe, amplia a visibilidade do Brasil no mundo, o que tem reflexos inclusive no comércio internacional. Que grandes vantagens se extraem, por exemplo, de um alinhamento ao estilo Eurico Gaspar Dutra?

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  3. Minhas objeções são longas, mas vou procurar ser mais sucinto.

    Concordo plenamente que a intenção de Huntington era exibir um contraste marcante, uma "luta de civilizações", daí que o Ocidente tenha sido representado apenas pelo seu núcleo econômico e militar, único capaz de travar tal luta, e tenha sido excluído tudo o que não pertencia a este núcleo, independente de qualquer critério histórico ou cultural. A exclusão da Grécia foi a mais clamorosa, não só por serem os gregos a própria matriz de nossa civilização, mas também por ser notório que, apesar de séculos de dominação otomana, os gregos preservaram sua identidade ocidental. Já a rotulação de todos os países capitalistas, sem exceção, como "livres", é uma óbvia mistificação.

    Sobre a inclusão (ou não) da América Latina no Ocidente, é recorrente essa afirmação de que a vinculação aos elementos culturais ocidentais seria uma exclusividade da elite local. O que se pretende, de fato, é insinuar que o ocidentalismo dos latino-americanos seria "fake", uma imitação praticada por uma elite espúria que despreza a herança nativa e deseja aderir à cultura dos países ricos. Assim fica parecendo que nossa elite seria tal e qual certos membros das classes superiores da Índia e da China, que na época do colonialismo procuraram aderir aos valores e ao modo de vida do colonizador britânico, sem nunca haver conseguido tornar-se mais que uma caricatura.

    Entretanto, em que pese outras críticas que você possa fazer a nossa elite, é preciso reconhecer que o seu ocidentalismo não é imitado. É herdado, e portanto, legítimo. E penso que não há motivo para crer que o restante da população, no geral, seja "menos ocidental" que a elite. A diferença é que a elite é melhor educada, então conhece melhor sua cultura herdada e pode manifestar esse conhecimento em mais oportunidades. O povão é diferente da elite, não por ser praticante de uma outra cultura, mas simplesmente por ser inculto, carente de educação formal. Isso fica evidente no exemplo de nossas favelas, que como você ressaltou, não se parecem nada com os guetos europeus. Não se parecem porque os guetos europeus são guetos étnicos, cujos habitantes efetivamente praticam uma cultura diferente. As favelas brasileiras não são guetos étnicos.

    Se você considera o descobrimento como início de uma longa sujeição, então você está se colocando na posição de um nativo que aqui vivia antes de 1500. Mas isso é hipocrisia. Eu e você não somos representantes de povos nativos, somos representantes da nova leva de povos aqui chegada após 1500. E o fato de sermos descendentes de matadores de índios e senhores de escravos não é uma particularidade nossa, pois a guerra de conquista e a escravidão pertencem ao passado comum da humanidade. Antes de nós, também os índios matavam e escravizavam.

    Tipificar a mistura da raças como um estupro, então, é fazer uma caricatura grotesca da realidade. Fica parecendo que toda a massa de milhões de brasileiros mestiços foi o produto de uma série de estupros cometidos contra as índias. Estupros ocorreram, sem dúvida, mas nenhum pesquisador sério afirma que toda uma população possa ser originada dessa maneira. Para início de conversa, os índios não permitiam o nascimento de nenhuma criança indesejada (diversas tribos, aliás, praticam o infanticídio até hoje). Os brasileiros mestiços foram o produto de ligações estáveis entre colonos e índias, e esses enlaces matrimoniais eram interesse de ambas as partes. Os índios queriam selar alianças com os portugueses, e os colonos queriam produzir descendentes, rápido e em grande quantidade, pois sem eles ficariam desamparados naquela terra desconhecida. Foi isso o que aconteceu.

    Ampliar a visibilidade do Brasil no mundo não é sinônimo de exibir uma boa imagem. Política externa é (deveria ser) sinônimo de pragmatismo.

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  4. Mundim, você faz diversas confusões. Chega a parecer que não contesta o que eu disse, mas sim o que gostaria que eu dissesse.

    1)O fato de que as classes A e B (digamos assim) são mais ocidentalizadas é óbvio. O melhor exemplo talvez seja Buenos Aires, com seus bairros chiques europeizados e as villas miserias fortemente influenciadas pela cultura indígena, ou no mínimo cabocla, de migrantes paraguaios, bolivianos e peruanos e mesmo argentinos do norte. Mas o tal caráter "espúrio" da ocidentalização, ou da ocidentalidade, como quiser, fica inteiramente por sua conta. Em nenhum momento eu insinuei que um latino-americano de inclinações inteiramente europeias é um mau-caráter, traidor ou macaquito.
    2) É muito fácil verificar que a tal "cultura do povão" (outra categoria sua)incorpora muitos elementos não europeus. Chega a dar preguiça de exemplificar. Mas quantificar a coisa é impossível: seria algo como avaliar o quanto as pirâmides e a escrita hieroglífica devem respectivamente a negros e brancos.
    3)Não há dúvida de que tecnicamente os descobrimentos (com as "tomadas de posse" são episódios de sujeição, de extensão de uma dominação política a povos de outro continente. Outra questão importante: as hierarquias que se estabeleceram nas sociedades coloniais também prejudicavam em muitos aspectos os brancos nascidos na América e, mais ainda, os mestiços descendentes de europeus. Nessa linha de raciocínio, a ruptura com a colonização também é "nossa".
    4)Quanto à minha suposta (e bote suposição nisto!)generalização de que a miscigenação foi o produto do estupro, nem vale a pena responder. Penso que você não leu, ou, na melhor das hipóteses, passou os olhos e "refutou" algo que viu em outro lugar. Mas, já que trouxe o assunto, lembre-se de que estupro é o coito mediante violência ou grave ameaça. Trazendo para o plano concreto: qualquer situação em que um homem possui uma mulher detendo sobre ela grandes possibilidades de coerção ou retaliação, em caso de recusa, pode ser entendida como estupro. Ou andou vendo Escrava Isaura na infância e acreditou que escravas tinham livre arbítrio para não dormir com os senhores?

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  5. Bem, é verdade que nos desviamos bastante do assunto original, e talvez por isso tenha havido alguns mal-entendidos e eu não esteja refutando exatamente o que você colocou, mas esse enganos podem ser esclarecidos.

    Iniciando, eu contesto (e isso você declarou mesmo, não estou inventando) que as vilas miserias argentinas, poblaciones chilenas ou favelas brasileiras sejam fortemente influenciadas por uma cultura indígena ou africana. Essa influência existe em áreas rurais remotas, não em áreas urbanas, onde vale a TV e a globalização. O que se verifica nas favelas urbanas, grosso modo, é uma espécie de cultura universal de guetos (chamei no outro post de cultura do povão, mas se você tiver um termo de maior propriedade, sinta-se a vontade para usá-lo). O que se vê ali é uma imitação servil dos modismos exportados pelos guetos norte-americanos - ou você acredita que o funk e o rap foram invenção de favelados brasileiros? São tão genuínas quanto um relógio paraguaio, e é bastante irônico que tais manifestações sejam celebradas como "resistência cultural" (cantilena que no passado se aplicava ao samba, cujo nascimento nas favelas é outra balela) e a crítica a essas manifestações seja condenada como preconceito da elite contra pobres e negros.

    Continuo achando que os favelados sul-americanos são tão ocidentais quanto a elite, com a diferença de serem menos instruídos, e portanto menos capazes de manifestar essa ocidentalidade de uma maneira vistosa. Mas cultura, no sentido antropológico, prescinde de um julgamento de valor: culturalmente somos ocidentais, ricos ou pobres.

    É claro que não acredito em Escrava Isaura, mas tampouco acredito que as mulheres índias ancestrais do povo brsileiro fossem escravas. Havia esposas e escravas, e as índias podiam ser uma coisa ou outra, mas dificilmente as duas. Você acha que os caciques davam suas filhas em casamento aos colonos para que fossem escravas? E o exemplo vem de cima. O casamento entre colonos e índias nada tinha de forçado, era um arranjo proveitoso para ambas as partes, e se alguém estava em posição de fraqueza ali, eram os poucos colonos, e não os milhares de índios. Evidente que havia escravas forçadas ao coito, mas é preciso lembrar que os costumes da época podiam ser tolerantes com o abuso sexual das escravas, mas não eram tolerantes com criança bastardas vivendo sob o mesmo teto que crianças legítimas. Isso até podia acontecer, mas era muito mal visto, e a prática da "boa sociedade" sempre foi dar sumiço de algum jeito às crianças eventualmente nascidas por esta via. Você que é historiador, alguma vez já viu um colega europeu defendendo a tese de que o povo francês originou-se de mulheres gaulesas estupradas por legionários romanos, ou que o povo inglês originou-se de mulheres celtas estupradas por invasores saxões e normandos? Alguém que dissesse uma coisa dessas em uma universidade européia seria levado a sério? E no entanto, esses estupros ocorreram, nem as filhas da rainha Boudica escaparam... Mas assim como ninguém por lá acolhe tal tese, por idênticos motivos eu me nego a endossar a tese de que o povo brasileiro nasceu de índias estupradas por portugueses.

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  6. Estamos caindo em questões estéreis.
    É evidente que ninguém na plena posse das faculdades mentais vai dizer taxativamente que "o povo brasileiro é o resultado de estupros". Mas também é inegável que milhões de pessoas, a partir do período colonial, nasceram de relações não consensuais, seja pelo estupro direto de índias, escravas e eventualmente de muitas outras mulheres que não dispunham da proteção física de pai ou marido, seja por outras situações em que a hipótese de dizer não implicaria nas piores sanções, inclusive a violência física. Novamente chegamos a uma quantificação impossível. Quantos "brasileiros" de 1600 eram filhos de mulheres violentadas? 10%? 20%? 40%? Nunca teremos resposta.
    Por outro lado, fica difícil afirmar que os 55% de bolivianos que falam melhor o quíchua ou o aimará do que o espanhol são tão ocidentais quanto a Lady Gaga. Para não irmos muito longe, não me parece possível entender nem o Rio de Janeiro sem mensurar as influências africanas. Mas voltamos ao mesmo ponto: em nenhum lugar você encontrará a cultura portuguesa de 1500, a potiguara de 1600 ou a daomeana de 1800. Todas as "influências" são reelaboradas de geração em geração por descendentes e não-descendentes de cada etnia. Estipular quanto se deve a quem é uma tarefa irrealizável. Mudando de hemisfério, quanto o Líbano de hoje deve aos fenícios, aos bizantinos e aos cruzados, e em que proporção ele é especificamente árabe? Eu nem tentaria uma primeira especulação.

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