terça-feira, 11 de setembro de 2012

Ainda sobre o discurso do medo

Representação da cerimônia de Bois Caiman (1791), que precedeu a Revolução Haitiana
             
         A instrumentalização do medo como catalisador de votos não foi, obviamente, uma descoberta de Regina Duarte.  As pessoas da minha faixa de idade que acompanharam em 1988 os trabalhos da Constituinte talvez se lembrem de José Sarney declarando à imprensa que a radicalização dos parlamentares de esquerda ameaçava as instituições. Pouco depois, no intuito de afugentar votos lulistas, Fernando Collor pediria ao eleitorado nacional que não deixasse o Brasil se transformar num barril de pólvora.  Os octogenários interessados em política se recordarão, sem dúvida, da ojeriza dos colarinhos brancos às mobilizações de trabalhadores que caracterizaram os meados do século XX. 
             Podemos ir muito longe na genealogia destas posturas.  Afinal, a defesa da ordem em sociedades oligárquicas depende em parte nada desprezível da difusão do terror entre  as várias categorias de possuidores.  Alguns temeram as multidões de cativos; outros, os negros sem maiores distinções; outros ainda, os pobres urbanos,  os retirantes, os índios, os ciganos, os favelados, os comunistas...
            Regina Duarte, se tivesse vivido no Brasil oitocentista, não disporia da chance de se manifestar sobre questões de terras em feiras rurais.  Todavia, este hipotético papel foi desempenhado com maestria por muitos "Régis", em numerosas circunstâncias.  Vamos a alguns deles, com o costumeiro recurso às obras sobre o século XIX.              
     
O francês de nome ignorado que atuou como informante da Coroa portuguesa no Brasil de 1822 e 1823, sobressaltado diante dos embates ideológicos em curso, fez o seguinte apelo aos habitantes livres do país:    

Finalmente: todos os brasileiros, e sobretudo os brancos, não percebem suficientemente que é tempo de se fechar a porta aos debates políticos, às discussões constitucionais?  Se se continua a falar dos direitos dos homens, de igualdade, terminar-se-á por pronunciar a palavra fatal: liberdade, palavra fatal e que tem muito mais força num país de escravos do que em qualquer outra parte.  Então toda a revolução acabará no Brasil com o levante dos escravos, que, quebrando suas algemas, incendiarão as cidades, os campos e as plantações, massacrando os brancos e fazendo deste magnífico império do Brasil uma deplorável réplica da brilhante colônia de São Domingos.
(citado em João José Reis.  Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista.  São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 91)

Três décadas mais tarde (1854), a comissão de cafeicultores que se reuniu no município fluminense de Vassouras continuava temendo os escravos, e em especial os que chegavam ao Sudeste através do tráfico interno:  

Se o receio de uma insurreição geral é talvez ainda remoto, contudo o das insurreições parciais é sempre iminente, com particularidade hoje que as fazendas estão se abastecendo com os escravos vindos do norte, que em todo o tempo gozaram de triste celebridade.  Insurreições parciais têm havido em diversos pontos e infelizmente não serão as últimas.  Dormir sobre o caso é uma imprevidência, que entrega-nos desarmados ao perigo, ou faz com que no momento dele se tomem providências desordenadas, insensatas e só próprias para infundirem e arraigarem no espírito dos escravos a convicção do susto e terror que nos causam.  Urge portanto adotar-se um complexo de medidas prudentes e moderadas, um sistema de cautela e vigilância que tenha em vista a segurança de uns, sem ao mesmo tempo despertar as suspeitas de outros.
(citado em Rafael de Bivar Marquese.  Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860.  São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 285)

Futuro barão do Rio Vermelho, José Félix da Cunha Meneses concentrava seus receios nas movimentações dos homens livres pobres, como vemos em um trecho da carta que escreveu em 1831 a Paulino José Soares de Souza, depois visconde do Uruguai:

Há seis mil armas de fogo e munição entregues nas mãos dos bons, porém se isto é capaz de conter a canalhacracia enfurecida é que eu não sei; e os efeitos do estado duvidoso que começa a aparecer de rusgas anunciadas para tal e tal dia, vai produzindo o que querem os malvados: a emigração de capitalistas, e a estagnação do comércio, e por consequência a falta de Rendas na Alfândega e outras Estações Públicas.
(citado em Ilmar Rohloff de Mattos.  O tempo saquarema: a formação do Estado imperial.  São Paulo: Hucitec, 1990, p. 123) 

No distante ano de 1838, os redatores do Correio Mercantil, periódico de Salvador, pareciam invocar a ação das autoridades contra os folguedos populares, vistos enquanto fator de desordem:

Na noite de 29 passado, um estrepitoso batuque lá para as bandas do Engenho da Conceição e Fiaes, levou  o susto e o terror a imensas famílias daquelas circunvizinhanças, que, já recolhidas e em profundo descanso, se ergueram espavoridas pelos gritos horrendos da turba, tornada mais retumbante e dissonora pelo "trinado" de que usam acompanhar o seu alarido batendo com a palma da mão na boca, servindo-lhe mais de "baixo" um tambor ou zabumba.  Esta "lícita" folia, sustentou-se até depois das 2 horas da madrugada do dia 30, com grande e perene inquietação de numerosas famílias, que, sobressaltadas, a cada momento pareciam ver aproximar-se aquela infernal malta.
(citado em João José Reis.  Tambores e temores: a festa negra na Bahia na primeira metade do século XIX. In: Carnavais e outras f(r)estas: ensaios de história social da cultura.  Campinas: Unicamp, Cecult, 2002, p. 121)

O já mencionado Paulino, na posição de ministro da Justiça, manifestaria seu horror aos contingentes sertanejos, supostamente mergulhados na barbárie:

Essa população que não participa dos poucos benefícios da nossa nascente civilização, falta de qualquer instrução moral e religiosa, porque não há aí quem lha administre, imbuída de perigosas ideias de liberdade, desconhece a força das leis, e zomba da fraqueza das autoridades, todas as vezes que vão de encontro aos seus caprichos.  Constitui ela, assim, uma parte distinta da sociedade do nosso litoral e de muitas de nossas povoações e distritos, e principalmente por costumes bárbaros, por atos de ferocidade, e crimes horríveis se caracteriza.
(Paulino José Soares de Souza.  Relatório do Ministério da Justiça, 1841, p. 19.  Citado em Ilmar Rohloff de Mattos.  O tempo saquarema, p. 34)  

         Muitas semelhanças podem ser apontadas entre os reacionários de hoje e os senhores de escravos do Império extinto.  Mas o seu alegado medo não é somente uma tática para agregar simpatizantes apáticos ou dispersos.  Ainda que rejeitem a mudança, eles reconhecem que a sociedade, além de extremamente desigual, é discriminatória e repleta de mecanismos perpetuadores da injustiça, e que uma ampla maioria tem razões de sobra para perder a paciência.       
         Oponhamos ao seu medo um projeto de igualdade, de inclusão, no sentido mais amplo da palavra, e a confiança na participação popular.                      









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