domingo, 23 de setembro de 2012

Devassando o imperialismo (IV)



                  Inspirado pela leitura de Immanuel Wallerstein, recupero uma série que iniciei há cerca de quatro meses.  Por razões óbvias, praticamente toda a direita ocidental contemporânea  se empenha, senão na negação das atrocidades e do caráter destrutivo das colonizações, ao menos na minimização destes aspectos, aos quais procura confrontar os avanços tecnológicos relacionados àqueles processos e uma presumida elevação moral das populações dominadas, por meio do contato com as doutrinas originárias das nações colonizadoras.  
         A tentativa de reabilitação das antigas metrópoles nada tem de gratuita ou de surpreendente.  A crença dos direitistas, assumida ou envergonhada, em noções como "necessidade de aristocracia", "organização meritocrática" ou mesmo "ordem natural das sociedades" fatalmente conduz, por extensão, à legitimação das hierarquias entre países, regiões, blocos econômicos e culturais.  Nesta perspectiva, caberia aos Estados Unidos e a seus principais aliados europeus, na atualidade, a manutenção de um status quo fundamentado na defesa a todo custo do sistema capitalista, na relativização da soberania dos países não ocidentais e/ou subdesenvolvidos e no direito de intervenção contra regimes rebeldes ou "traidores".  
           É fácil identificar a incoerência e a hipocrisia por trás do discurso mencionado.  Condena-se a associação entre Estado e religião oficial no Irã, mas não na Arábia Saudita, dócil quanto à presença militar da OTAN no Oriente Médio.  Exalta-se um suposto caráter especial dos povos anglo-saxônicos quando estes triunfam na concorrência industrial, enquanto o crescimento das exportações chinesas é atribuído a práticas comerciais desonestas.  As vitórias eleitorais dos partidos conservadores da América Latina são saudadas como expressão da vontade popular; quando prevalecem forças esquerdistas, nacionalistas ou reformistas, ressurgem espantalhos dos tempos da Guerra Fria.  
               Entretanto, não nos faltam dados que demonstram que a tutela das potências capitalistas ocidentais sobre vastas porções do mundo, embora tenha invocado ao longo de séculos, infalivelmente, as virtudes civilizatórias dos ocupantes, na verdade encobre interesses econômicos e ambições individuais que não recuam ante o genocídio para sua concretização.  Recorro mais uma vez a bibliografia bastante acessível para recordar, em seis estações, a distância entre as promessas e a realidade do imperialismo.               
  
1-Argélia, década de 1840- Terra arrasada contra as forças autonomistas:

Bugeaud devastou a colônia, e em 1842, por exemplo, mandou queimar tudo o que havia entre Miliana e Cherchell.  "Não se combate, incendeia-se", escreve, de seu lado, Saint-Arnaud.  "Queimam-se todos os aduares, todas as aldeias, todos os casebres... Quantas mulheres e crianças, refugiadas nas neves do Atlas, morreram de frio e de miséria... Devasta-se, saqueia-se, destroem-se as casas ... os incêndios que ainda ardem indicam-me a marcha da coluna...".  Bugeaud acobertou, com sua autoridade, o general Pélissier que matou asfixiados pela fumaça mil árabes nas grutas de Dahra em 1845.
Ele acabou derrotando Abd el-Kader, venceu o filho do sultão do Marrocos que fora socorrê-lo (batalha de L'Isly, 1844) e não queria saber das admoestações de Paris, horrorizada pela repercussão de tais devastações.  Bugeaud inaugurou essa tradição de que um general, em além-mar, deve agir a seu bel-prazer, sem se preocupar com seu governo.  Este, porém, o fez duque d'Isly, "por ter dado a Argélia à França".
(Marc Ferro.  História das colonizações: das conquistas às independências, séculos XIII a XX.  São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 105-106) 

2-China, fins da década de 1850- O vandalismo como arma de intimidação:

Os aliados decidiram então marchar sobre Pequim.  Ao atingirem Tung-Tchiu, situada nos arredores da capital, novas negociações foram entabuladas por intermédio do Príncipe Kong, irmão mais novo do imperador, que no curso do período seguinte viria a ser o grande estadista manchu.  Tendo fracassado as negociações preliminares, os exércitos aliados avançaram até o Palácio de Verão, a esplêndida residência que Chien Lung mandara construir sobre um lago.  Aí, a soldadesca aliada retomou a tradição de vandalismo que já se manifestara no Pagode de Porcelana, em Nanquim: o palácio que, segundo as palavras do comandante francês Montauben, "era de uma riqueza e de uma beleza sem igual na Europa", foi submetido sistematicamente à pilhagem pelos oficiais. 
Mas o insaciável Lorde Elgin, após ter entrado em Pequim, ordenou que se tocasse fogo a todos esses "esplendores" que os próprios conquistadores haviam considerado "difíceis de descrever".  Elgin imaginava, candidamente, que o incêndio do Palácio de Verão impressionaria os orientais e deixaria aos chineses um duradouro pavor dos europeus.
(K. M. Panikkar.  A dominação ocidental na Ásia.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 139)

3-Cuba, século XIX- O racismo comum às sociedades coloniais:

Assim que se abriu a Ilha a uma grande migração branca, e chegaram milhares de jovens ibéricos  e canários buscando trabalho, o domínio negro [sobre certas profissões] revelou sua verdadeira face.  A sociedade, radicalmente racista, preferia o trabalho branco ao trabalho negro, isso dito nos termos da época.
Um caso paradigmático foi o dos cocheiros: em 1830 todos eram negros.  Em 1860 todos são espanhóis ibéricos ou canários.  Ou seja, não somente se substituiu o negro, mas também o criollo branco.  Algo semelhante ocorreu com os músicos: numa sociedade rica onde as orquestras e em geral os conjuntos de música popular eram bem apreciados, os negros e mulatos praticamente monopolizaram o ofício.  Nisso, ademais, eram ajudados por um certo preconceito.  Ser aficcionado à música era uma demonstração de espírito seleto, de vocação artística; mas viver da música, fazendo da arte um ofício para diversão alheia era, de acordo com as normas brancas da época, uma atividade degradante.  Por isso todos os grupos musicais que atuaram em Cuba, até meados do século, em festas particulares e em sociedade, eram integrados por negros.  Por volta de 1847, organizou-se uma orquestra de brancos em Havana e anunciou-se nos jornais e panfletos como uma extraordinária novidade.
Mediante todos esses recursos que impunham obstáculos ao trabalho livre tratou-se de, e em grande parte conseguiu-se, minar a vida econômica da que poderíamos chamar de uma classe média mulata e negra.
(Manuel Moreno Fraginals.  Cuba/Espanha, Espanha/Cuba: uma história comum.  Bauru: Edusc, 2005, p. 229)  

4-Vietnã, 1885- "Pacificação" por meio da expansão dos cemitérios:  

Quando os franceses deram assalto à cidadela de Huê, que abrigava os palácios imperiais onde a corte residia, os relatórios mencionaram os massacres (1500 vietnamitas mortos, contra 11 franceses), incêndios e pilhagens da cidade.  Os palácios, os arquivos, a biblioteca, toda uma preciosa herança cultural, foram reduzidos a cinzas.  Até generais serviram-se deles: "Tal pilhagem a frio, que durou dois meses, ultrapassa em muito ... a do Palácio de Verão de Pequim".
Ao cabo da conquista e da "pacificação" do norte e do centro do Vietnã, que duraram de 1883 a 1896, esses países foram palco de uma verdadeira catástrofe demográfica.  Foi preciso esperar 1910-1920 para que a população deles retomasse um crescimento normal.
(Pierre Brocheux.  O colonialismo francês na Indochina.  In: O livro negro do colonialismo/org. Marc Ferro.  Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p. 403)   

5-África Ocidental Francesa, século XIX- Um império construído sobre relações escravistas:

Como acontecia em relação à utilização de escravos nos exércitos coloniais britânicos, os franceses também dependiam de escravos para os seus tirailleurs senegaleses, bem como para seus auxiliares.  Como os franceses nunca tinham tido mais do que 4.000 soldados na África Ocidental, a conquista do Sudão Ocidental dependia de recrutas africanos, de modo que- assim como em outros lugares- uma força incluindo muitos ex-escravos conquistou a África para os colonialistas.  Em certo sentido, os franceses criaram uma força escrava que lembrava os antigos guerreiros escravos tyeddo derrotados pelos reformadores muçulmanos no século XIX.  Mesmo quando o compromisso francês com a abolição tornou-se mais firme- apesar de ações individuais de administradores-, o exército francês continuou a recrutar escravos, quase como se o exército estivesse ligado a alguma tradição arcaica que os oficiais franceses convenientemente não compreendiam.  Esse atavismo era levado a extremos.  Até mesmo em 1891, o commandant em Kita podia relatar ao seu superior que alguns dos escravos- principalmente mulheres, capturados durante as campanhas militares estavam sendo distribuídos aos soldados, como parte do salário: "Eu vou distribuir os escravos de modo a ter menos bocas para alimentar.  Naturalmente manterei um certo número para os nossos homens, que estará disponível para eles após a campanha: pode contar a eles para estimulá-los um pouco.  Assim como os engagés à temps e as villages de liberté, a escravidão era adaptada às ambições coloniais sempre que possível; apenas a propaganda mudava, de modo a disfarçar a exploração colonial com a linguagem da abolição.
(Paul Lovejoy.  A escravidão na África: uma história de suas transformações.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 384)      

6-Iraque, século XX- Bombas, gases e cordas contra os que ousam desafiar o Império: 

As três primeiras décadas do regime monárquico-imperial foram um desastre sem atenuantes para o povo local.  O custo da imposição do regime colonial e de uma monarquia vinda de fora foi elevado: o uso de armas químicas e do poderio aéreo provocou 98.000 baixas.  E havia ainda a selvagem repressão política em casa, simbolizada pelos enforcamentos públicos: um dos que assim foram tratados foi o líder comunista Fahd.  O número de pessoas mortas no período 1920-48 foi altíssimo quando comparado, por exemplo, com a Índia colonial.  E as avaliações críticas do domínio britânico do Iraque não se confinaram aos escritores nacionalistas ou esquerdistas.  O balanço apresentado por Elie Kedourie, historiador que não ficou famoso por sua simpatia pelos impérios, foi, neste caso, totalmente negativo.  Kedourie descreveu o Iraque hashemita como um despotismo baseado no poder de coerção do Império Britânico e que inaugurou um período "cheio de derramamento de sangue, traição e rapina", cujo fim estava "implícito em seu início".
(Tariq Ali.  Bush na Babilônia.  Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 69)    












2 comentários:

  1. Fico surpreso por nenhum desses autores ter feito uma estimativa total das vitimas do colonialismo(incluindo mortos de fome,guerras e execuções)a lista seria tão numerosa quanto a do livro negro do comunismo.

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  2. O Livro Negro do Capitalismo tem muitos números sobre as vítimas das colonizações.

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