quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Resposta a Pedro Mundim (segunda parte)


                                 Silvio Berlusconi, ex-líder de vários gabinetes italianos de direita, ao lado de seu aliado fascista Gianfranco Fini
     

      Prossigo nesta postagem na análise de um extenso comentário de Pedro Mundim.  Transcrevo abaixo os dois últimos parágrafos, já me desculpando pelos eventuais danos à paciência de alguns leitores:  

Mussolini também veio da plebe, e na juventude chegou a mendigar e ser preso por vadiagem. O fascismo surgiu na História como uma alternativa ao socialismo, ou antes, como um pastiche deste: de resto, ambos eram regimes de massa, de fanfarra, de operários e estudantes desfilando uniformizados, etc. etc. O fascismo não elimina a burguesia, mas inverte a relação que normalmente existe entre a burguesia e o governo nos regimes liberais e conservadores: se nesses, como dizia Marx, o governo era não mais que o comitê onde a burguesia realizava seus negócios, no fascismo a burguesia está submetida ao governo. Hitler permitiu que os burgueses continuassem usufruindo do conforto proporcionado por suas riquezas, mas na prática era o governo que comandava os meios de produção (há aqui uma simetria de espelho com o que acontecia na mesma época na ex-União Soviética, onde os comissários do partido viviam como burgueses, embora não fossem formalemente proprietários das fábricas que administravam). Na verdade, os regimes fascistas criam uma burguesia para seu uso, ao favorecer os burgueses aliados e os membros do partido, ao mesmo tempo em que perseguem e expropriam os burgueses inimigos (quem conhece a dita boliburguesia da Venezuela sabe do que eu estou falando).
Concordo que soa estranho eu aqui referir-me à Venezuela como exemplo de fascismo na época atual. É que o senso comum definiu o fascismo como o mero antônimo do socialismo. É falso. O verdadeiro antônimo do socialismo é o liberalismo (ou neoliberalismo, como queiram). Mas o regime de Chávez tem todas as caracterísitcas do antigo fascismo dos anos 30: organizações de massa, nacionalismo exacerbado, culto ao líder, militarismo, fabricação de um inimigo externo para desviar a atenção dos problemas internos, manutenção do capitalismo, porém sob a égide do estado; criação de uma burguesia fiel e dependente do governo. Quem conhece a História sabe o que é isso.

      A tentativa de iniciar uma desqualificação do fascismo como regime burguês pela menção às origens de Mussolini chega a ser ingênua.  Abundam exemplos de que a filiação ideológica de um político não está necessariamente atrelada às condições de seu nascimento.  O festejado jurista liberal e presidente do México Benito Juárez era filho de camponeses indígenas analfabetos e iniciou sua experiência com os livros como encarregado de espanar a biblioteca do patrão de seus pais.  O ex-primeiro-ministro britânico John Major, também nascido pobre, sem meios para cursar uma universidade na juventude, fez uma carreira de sucesso no Partido Conservador.  Ninguém contestaria, no sentido inverso, a sinceridade esquerdista de um Caio Prado Júnior ou de um Eduardo Suplicy por comprovar os berços privilegiados de ambos.  Para ratificar de vez tamanha obviedade podemos recordar que o "anjo" Nelson Rodrigues foi pai de Nelson Rodrigues Filho, aderente à luta armada contra a ditadura nos anos 70.  
       Longe de ser pastiche de qualquer coisa, o fascismo foi um movimento organizado cujos líderes sabiam bem a direção que pretendiam impor ao Estado quando chegassem ao poder.  O recurso à mobilização das massas pelos fascistas não faz deles um tipo peculiar de socialistas, da mesma forma que uma determinada utilização do canto e de instrumentos musicais não transforma os católicos carismáticos em evangélicos.  Ainda que a analogia fosse verdadeira, ressalto que se tratava de uma militância de direita copiando táticas de esquerda (com objetivos opostos) e não o contrário.  A construção idealizada de uma burguesia manietada e instrumentalizada pelos fascistas e nazistas é outra mistificação.  Para ficarmos em um só caso, diversas multinacionais de países ditos democrático-liberais estiveram voluntariamente empenhadas no triunfo dos franquistas na guerra civil espanhola, não obstante a companhia da diplomacia (e da aviação) nazifascista.      
    A comparação entre fascistas e chavistas é mais do que forçada.  Basta lembrarmos, retornando aos argumentos da matéria antecedente, de que todo fascismo contém uma recusa apaixonada da igualdade.  Mussolini pregava o controle da sociedade por uma elite "forte e audaz".  Chávez apontaria de pronto esta aristocracia autonomeada como um desprezível bando de escualidos.  Embora a economia venezuelana continue, no essencial, sendo capitalista, existe um nítido processo de socialização que não se limita ao discurso. Quanto aos elementos "militarismo", "nacionalismo exacerbado" e "fabricação de inimigos externos", cabem as seguintes observações: ninguém poderia negar o caráter militarista de sucessivos governos dos Estados Unidos, que têm mantido o orçamento astronômico do Pentágono, oito ou nove vezes maior do que os gastos militares da China, que ocupa uma distante vice-liderança; não seria excesso retórico caracterizar as consecutivas declarações de presidentes republicanos e democratas no sentido de que seu país deve liderar o mundo por mais um século, ou indefinidamente, como uma modalidade de nacionalismo exacerbado; também é fácil denunciarmos a constante fabricação de inimigos externos por parte do Estado norte-americano, que já  foi ao cúmulo, em tempos não muito distantes, de estabelecer a derrubada do regime da ilha de Granada como uma das metas prioritárias para a segurança do continente.  Todavia, o direitista brasileiro médio se irritaria caso eu classificasse os Estados Unidos como uma nação fascista, o que descarto como evidente deturpação da categoria "fascismo". 
      Liberalismos e fascismos, cada um a seu tempo, ou em seu lugar, podem ser os regimes mais convenientes aos mais diversos tipos de burgueses, não obstante determinadas preferências de indivíduos e/ou grupos.                         

4 comentários:

  1. Concordo que as origens de um indivíduo não são determinantes para sua orientação política quando ele se tornar um líder de determinado partido ou movimento. Mas Mussolini não apenas teve origens humildes, como também origens socialistas - seu pai era um socialista militante, e Mussolini foi por muito tempo diretor de um jornal socialista, até que suas idéias nacionalistas entraram em conflito com o caráter internacionalista do movimento - isso correu pouco antes do deflagrar da 1a guerra, no conflito entre italianos e turcos por causa da Líbia. Parece-me que seja coincidência demais que haja tantos exemplos de indivíduos que foram esquerdistas em sua juventude e direitistas na maturidade - além de Mussolini, podemos citar Carlos Lacerda, Reynaldo Azevedo, Olavo de Carvalho, Arnaldo Jabor, Paulo Francis. Às vezes acontece o percurso inverso, como o caso de Dom Helder Câmara, que foi integralista quando jovem. Continuo achando que é coincidência demais, e prefiro apontar aí um traço de afinidade entre ideologias.

    O fascismo não é igual ao socialismo, não sou tão simplório a ponto de fazer tal afirmação. Mas as afinidades existem. O fascismo é inerentemente contrário à igualdade, já que se auto-justifica pela crença de que existem superiores e inferiores - a superioridade de uma nacionalidade, justificando o imperialismo, e no caso muito específico do nazismo, o conceito de raça sobrepõe-se ao de nacionalidade. Uma doutrina firmada no dogma da desigualdade entre superiores e inferiores necessariamente conduz à formação de uma aristocracia. Mas essa aristocracia NÃO ERA a velha aristocracia do dinheiro. Daí que a solução da dita "questão social" tenha sido um tópico central do fascismo, a ponto da legislação trabalhista daí derivada ter inspirado a muitos países não-fascistas, inclusive o Brasil, cuja CLT foi baseada na Carta Del Lavoro de Mussolini. Bem diferente dos regimes liberais e conservadores, que sequer reconhecem a existência de uma questão social, o fascismo procurou aplainar as desigualdades sociais, vistas como um defeito a ser corrigido, e em algum grau, conseguiu. As manifestações de massa características dos regimes fascistas foram sim, em algum grau, espontâneas - trabalhadores não saem à rua paara aplaudir patrões, e os trabalhadores brasileiros não só compareciam com gosto às manifestações de Vargas (na época claramente inspirado pelo fascismo), como o reelegeram.

    Quanto ao caso Chávez X EUA, só alguém muito ingênuo acreditaria que no mundo pós-guerra fria, os regimes esquerdistas latino-americanos ainda constituam algum perigo para os EUA, e que exista ainda um mínimo motivo para os EUA intervirem militarmente onde existam tais regimes - se quisessem fazê-lo já teriam-no feito, pois não existe mais a URSS para opor-se, e eles já interviram recentemente em países inimigos muito mais bem armados. Os arroubos chavistas sequer são mencionados na mídia norte-americana, ou quando o são, é em tom de chacota, exatamente como se fazia antes da guerra fria. A América Latina não tem mais qualquer importância no mundo atual, e como economia emergente, foi desde muito superada pelo sudeste asiático.

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  2. O emparelhamento de Mussolini com Carlos Lacerda é praticamente perfeito, se lembrarmos que o político carioca era filho de Maurício de Lacerda, homem que em regra, ao longo da carreira, se posicionou à esquerda. Mas objetivamente, o que Mussolini ou Lacerda acrescentaram ao socialismo em termos doutrinários? Você justificaria, dentro de um determinado tipo de analogia, o apoio de Lacerda a 1964 por sua suposta formação autoritária dentro do PCB?
    O conceito de "afinidade de ideologias" fica confuso, sobretudo se atentarmos aos exemplos. Paulo Francis, que nos últimos vinte anos, pelo menos, se disse liberal, era fascista? Jabor, que se pretende de esquerda até hoje, embora ninguém acredite, é fascista?
    Também não sou simplório a ponto de afirmar que todos os movimentos de direita são idênticos. Mas um partido cuja meta seja substituir a burguesia antiga ("acomodada", se recorrermos à sua terminologia) por uma "elite forte e audaz" como a idealizada por Mussolini não é menos direitista, antes ao contrário, do que os tories britânicos. Seria ultradireitista, igualmente, um movimento de restauração do poder dos descendentes da nobreza feudal.
    Tampouco faz sentido alinhar fascismos e socialismos tendo em vista a existência de políticas sociais. O liberalismo, a social democracia ou qualquer regime consolidado nos últimos noventa anos deixou de tê-las? Que chance eleitoral teria na grande maioria dos países uma coalizão que propusesse um laissez-faire puro?

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  3. Sobre o "caso Chávez X EUA", as questões geopolíticas vão muito além do campo militar. Na verdade, a América Latina jamais representou perigo para os EUA, se entendermos como perigo a execução de um ataque convencional bem sucedido. Mesmo quando existia a URSS, era certo que os soviéticos jamais interviriam diretamente contra tropas americanas que invadissem países latino-americanos. Reagan armou os contras, os esquadrões da morte salvadorenhos, derrubou o governo de Granada, e a oposição soviética não foi muito além da retórica. Voltando mais no tempo, temos ainda a Guatemala de 1954 e a República Dominicana de 1965
    Dizer que a AL não tem importância com base apenas nos dados sobre o volume do comércio exterior é um absurdo. Basta constatar que o governo americano não se mostra disposto a abrir mão desta área de influência. Seguindo a sua linha de raciocínio, a preocupação europeia com a expansão do Islamismo e a penetração chinesa na África teria ainda menos sentido. Já a preocupação do governo venezuelano tem a lógica a seu lado: os chavistas se lembram do posicionamento da administração Bush quando houve o golpe fracassado de 2002.

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  4. A confusão em que incorre Mundim está em perceber, corretamente, que as bases sociais do fascismo não são as mesmas dos regimes que ele substituiu, que o fascismo, longe de representar o interesse do Grande Capital (e, no caso alemão especialmente, da velha aristocracia prussiana) representa o da pequeno-burguesia. Só que base social diversa não representa (necessariamente) mudança de projeto político último: do mesmo modo que a Social-Democracia européia tem uma base histórica operária, mas a utilizou na preservação do Capitalismo, o fascismo tinha uma base social pequeno-burguesa, que ele incorpora à base social burguesa previamente existente, mas esta coalizão de classes, sob uma ditadura unipartidária e pessoal, governa no interesse do Capital: "O fascismo é uma destilação quimicamente pura da cultura do Imperialismo" (Trotsky). Sugiro a leitura do livro de autor não-marxista, "Os Alemães", de Norbert Elias (ed, brasileira, Ed. Jorge Zahar), para maiores esclarecimentos.

    Sds., Carlos Rebello

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