Salvador Allende Gossens (1908-1973), presidente do Chile entre 1970 e 1973, é um dos estadistas do século XX mais difamados pela mídia conservadora latino-americana. Seus detratores não cessam de "descobrir" novas mazelas em seu governo e novas taras em sua personalidade no intuito de justificar a extinta ditadura de Pinochet, beneficiar eleitoralmente a direita chilena contemporânea e/ou proclamar a necessidade de alinhamento ideológico de toda a região com as forças mais retrógradas e elitizantes do Hemisfério Norte.
Provavelmente dispondo de um bom patrocínio, o historiador chileno Víctor Farias é um dos agentes mais ativos neste processo. Ele publicou, em 2005, o livro Salvador Allende: Antisemitismo y eutanasia, vastamente traduzido e divulgado. A obra, como o título indica, se destina a caracterizar o biografado como racista e adepto de práticas de extermínio.
Ninguém se surpreenderá com o fato de que, no Brasil, a revista Veja tenha sido um dos canais de promoção do livro de Farías. Na edição de 8 de junho de 2005, o notório pasquim do udenismo tardio trouxe uma reportagem da qual Allende emerge como monstro genocida. Emprestando ares de veracidade à farsa, foi construída uma versão deturpada do trabalho Higiene mental y delincuencia, apresentado pelo falecido presidente chileno ao se graduar em Medicina no ano de 1933. Para dar sustentação a um discurso anticomunista rasteiro e fabricar uma associação inteiramente forçada entre o pensamento do jovem Allende e o nazismo, a redação de Veja distribuiu entre seus argumentos frases isoladas da tese, arrancando-as de seu contexto original.
O procedimento descrito, na verdade, não difere muito do método empregado por Víctor Farías para compor seu livro. Porém, enquanto Farías era desmascarado pelos admiradores de Salvador Allende nos países de língua espanhola, que apontaram suas falácias e manipulações praticamente linha por linha, no Brasil, salvo grave e até desejável engano da minha parte, prevaleceu a mistificação. Portanto, penso que um desagravo em português com quase oito anos de atraso ainda terá serventia. Na pior das hipóteses, algumas centenas de pessoas perceberão o nível de credibilidade que se pode conferir à imprensa burguesa.
Limito-me a extrair dois recortes: no primeiro, Allende é acusado de relacionar o pertencimento étnico de ciganos e judeus à prática de determinados crimes; no segundo, escassas linhas divididas por dois parágrafos são exibidas como prova de uma homofobia radical e associada a tendências totalitárias.
O procedimento descrito, na verdade, não difere muito do método empregado por Víctor Farías para compor seu livro. Porém, enquanto Farías era desmascarado pelos admiradores de Salvador Allende nos países de língua espanhola, que apontaram suas falácias e manipulações praticamente linha por linha, no Brasil, salvo grave e até desejável engano da minha parte, prevaleceu a mistificação. Portanto, penso que um desagravo em português com quase oito anos de atraso ainda terá serventia. Na pior das hipóteses, algumas centenas de pessoas perceberão o nível de credibilidade que se pode conferir à imprensa burguesa.
Limito-me a extrair dois recortes: no primeiro, Allende é acusado de relacionar o pertencimento étnico de ciganos e judeus à prática de determinados crimes; no segundo, escassas linhas divididas por dois parágrafos são exibidas como prova de uma homofobia radical e associada a tendências totalitárias.
A montagem parece impecável, mas somente se ignorarmos que a tese está disponível na Internet, com texto integral, apresentação e notas:
http://www.salvador-allende.cl/Documentos/1939-49/MemoriaSAG.pdf
Notamos de imediato que Veja, ao reproduzir a passagem supostamente racista do trabalho de Allende, ocultou um trecho anterior, no qual fica evidente que o autor se referia ao pensamento do médico e criminologista italiano Cesare Lombroso (1835-1909).
Verificando as notas impressas no final da tese, temos as referências completas de uma tradução de Lombroso publicada na Espanha. O que fica provado, então, é que o panfletário na época encarregado dos assuntos latino-americanos pela família Civita, no mínimo, copiou desavisadamente um material estrangeiro produzido de maneira totalmente desonesta.
Mais grave ainda é constatarmos que Veja, tal como Víctor Farías, omitiu a conclusão de Salvador Allende, que não se mostrava convencido de que o fator raça influía sobre a delinquência no "mundo civilizado".

A tentativa de pintar Allende como um exterminador potencial de gays também cai no ridículo. A afirmativa de que a homossexualidade é vista na tese como doença procede, mas estamos diante de um senso comum dos anos 1930. O fato em si em nada auxilia os conservadores, que ao menos para consumo externo continuam proclamando, até os dias atuais, que a personalidade homossexual constitui uma patologia. Além disto, o parágrafo anterior, só para variar omitido, demonstra que os homossexuais que Allende pretendia "curar" seriam pessoas levadas à prática homossexual por distúrbios endócrinos. Mesmo que saibamos há muito que ninguém é gay por falta de testosterona, não existe no texto qualquer manifestação de intolerância.
Pelo contrário: Allende expôs em seguida citações de dois autores, Asúa e Marañón, que recriminam as possíveis punições ao homossexualismo, tido como um problema orgânico e não como falha de caráter. Dificilmente o faria se desejasse confinar os "doentes" em campos de concentração ou unidades de reeducação.
O publicista de direita, partindo de uma rejeição visceral à igualdade, se vê obrigado a procurar episódios discriminatórios na trajetória de pessoas de esquerda ou contradições no igualitarismo destas, para se encaixar no papel do verdadeiro humanista. O resultado, em regra, é o que vimos acima.