sexta-feira, 15 de março de 2013

Os muitos felicianos e seu deplorável mito camítico

     

        A polêmica acerca da nomeação do pastor Marco Feliciano para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados ocupou um espaço significativo no noticiário impresso e televisivo das últimas semanas, além de provocar milhares de manifestações pela Internet.  Pouco ou nada tenho a acrescentar às críticas dirigidas ao exótico parlamentar, sobretudo quando o próprio invoca em sua defesa (!) o depoimento de Silas Malafaia que exponho abaixo: 

http://www.marcofeliciano.com.br/noticia/113/a-carta-aberta-de-pastores-que-acaba-ajudando-aqueles-que-nos-odeiam-pr-silas-comenta.html


         Descobrimos, desta maneira, que impedir a contratação de gays numa empresa não é homofobia.  Afinal, não é preciso surrar os semelhantes para tomar esta "providência".  Na mesma linha, adquirimos o conhecimento de que é impossível que descendentes de negros discriminem outros negros; Malafaia, provavelmente, "lava o sangue" de Nina Rodrigues e Oliveira Vianna, entre muitos antigos profetas do racismo científico.
       Mas agora deixo de lado as pretensões de absolvição de Marco Feliciano, que terá o imerecido direito de produzir um vasto repertório de gafes antes de ser arrancado da citada comissão.  O que importa é que, ainda que nenhum racista brasileiro se assuma como tal em público, encontramos sem grande dificuldade a difusão da mitologia discriminatória que foi atribuída ao deputado federal.  O velho mito camítico que já serviu para justificar o apartheid, a segregação étnica nos Estados Unidos e (em proporção bem menor) a escravidão no Império do Brasil.      
          Numa revista virtual de estudos bíblicos vemos um texto, suposta tradução de trabalho do pastor Forrest Keener, que claramente identifica os povos africanos e de uma parte do Oriente Médio como a descendência  amaldiçoada de Cão (ou Cam), filho de Noé.  Com intenções mais do que óbvias, põe-se em negrito a palavra preto.  Sob o ridículo arrazoado, há um questionário que  em uma das perguntas se destina a fixar a posição geográfica da maldição:

http://www.estudosnovotempo.com.br/sem-cao-e-jafe/




          Outro site, intitulado Palavra Prudente, traz considerações semelhantes a partir do mesmo Keener.  Sem qualquer sutileza, fala-se de uma "perpétua diferença racial", estabelecida em prejuízo dos "povos negros":



           No site da Fundação Betel temos outra versão, pela qual somente um dos filhos de Cão, Canaã, seria portador da maldição extensiva aos descendentes.  Porém, o termo Cão é apontado como sinônimo de preto (também com destaque!), em contradição com Forrest Keener, para quem o nome de Cuxe, irmão de Canaã, teria este significado.  Em suma, os amaldiçoados nunca perdem a qualidade de "pretos":  



Noé era canal de Deus na terra,era autoridade de Deus na terra.
Por que Noé amaldiçoou Canaã e não Cão? Hipóteses:
- Talvez porque Deus tivesse abençoado Cão ( Gn 9: 1), e a benção não poderia ser removida.
Nm 23: 20 - "Eis que recebi mandado de abençoar; pois ele tem abençoado, e eu não o posso revogar."
- Talvez porque Canaã seria motivo de vergonha para seu pai (Cão) assim como Cão foi vergonha para seu pai Noé. O que Cão fez para Noé, Canaã faria para Cão.
- Acima de tudo, porém, a maldição de Noé foi profética. As bençãos e maldições dos patriarcas eram profecias.
Noé não foi a causa da maldição, ele simplesmente profetizou, foi boca de Deus.
Os filhos de Noé - ( a origem das nações )
Cão = preto ou quente
Sem = nome
Jafé = expansão
Cão - seus descendentes : Canaã - os que habitavam a Palestina; Pute ( Líbia ); Mizraim ( Egito ); Cuxe ( Etiópia ).
As práticas cananitas e de seus descendentes, eram totalmente idólatras e imorais.
Os descendentes de Canaã foram os povos expulsos da terra prometida, por sua rebeldia a Deus. 


     
          Um blog editado por seguidores da Assembleia de Deus aparentemente estende a maldição de Cão a todas as populações não brancas, inclusive os índios americanos.  Naturaliza-se a escravidão antiga e moderna e passa-se a mensagem quase explícita de que é necessário submeter os muçulmanos do Oriente Médio ("assírios", "babilônios" e "egípcios") aos "filhos de Jafé":
           

              http://igrejaemvilafelizpilar.blogspot.com.br/p/noe-era-descendente.html


           Já na página de mórmons cujo endereço também copio é explicada uma pretendida tolerância quanto ao ingresso de negros na igreja, tendo-se em vista o fim recente da praga bíblica.  Entretanto, o autor derrapa de forma bastante comprometedora pouco antes de chegar ao resumo-conclusão, ao afirmar sem meias medidas que os filhos de pele branca de casais "interraciais" escaparam do estigma da maldição:  

 http://apologeticamormon.blogspot.com.br/2010/10/o-sacerdocio-para-os-negros.html




         Conheço de longa data a vocação de certos conservadores para distorcer as palavras alheias.  Declaro então, com veemência, que esta postagem não é um libelo antievangélico.   Preciso também dizer que para cada um destes discursos escatológicos localizei dezenas de explanações de líderes religiosos que negam categoricamente qualquer validade ao mito camítico.   Quem desejar lê-las, precisa apenas colocar na busca do Google o nome de Marco Feliciano, que em regra recebe dos autores os adjetivos que lhe são devidos.  
        Todavia, esta denúncia é pertinente e muito atual.  Milhares de brasileiros negros "aprendem" que são netos distantes de criaturas danadas.  Convenientemente, não lhes prometem as chamas eternas, o que afastaria numerosos dizimistas, mas lhes induzem à submissão.  Milhares de brasileiros brancos "aprendem" que devem manter a hierarquia étnica como obediência a uma determinação divina, o que é extremamente nocivo à cidadania.  Por extensão, fica subentendido que um país formado por tantos amaldiçoados está condenado à subalternidade na política internacional.  
            Combatamos o mito camítico sempre e onde estiver, inclusive com as armas do Código Penal para quem incorrer em pregações racistas!   


Um comentário:

  1. Esse seu artigo é um verdadeiro exame de fezes. Entenda, não é uma crítica depreciativa, mas uma análise objetiva: você pegou dois excrementos (o pensamento de Malfaia e Feliciano, se é que é possível chamar isso de pensamento) e analisou meticulosamente. Um exame de fezes, portanto.

    ResponderExcluir