quinta-feira, 9 de maio de 2013

A culpa é do português?



     A Companhia Holandesa das Índias Orientais enviou, em 1652, três navios para a região do Cabo da Boa Esperança, que trouxeram pouco mais de cem homens e quatro mulheres.  Eles deveriam construir uma estação de repouso, destinada a abastecer os navios batavos de frutas, legumes, verduras e carne.  Logo despontou o problema da mão de obra.  Os colonos não tinham estímulo para cavar o solo com as próprias mãos em benefício de uma empresa interessada em pagar o preço mais baixo possível.  Os hotentotes, nativos daquela parte da África, aceitavam prestar certos serviços, mas eram pastores seminômades e rejeitavam a enxada.  Como a Companhia proibia sua escravização, os primeiros administradores do Cabo, Jan van Riebeeck e Zacharias Wagenaar, providenciaram a vinda de cativos da África Ocidental e de Angola, além de indianos e indonésios.  
      Por volta de 1700, havia 800 escravos, considerados propriedade da Companhia das Índias Orientais ou dos burgueses livres (denominação atribuída aos colonos livres de contrato com a empresa).  As primeiras fugas ocorreram imediatamente após os primeiros desembarques.  Os holandeses acusavam os hotentotes de dar abrigo aos fugitivos e passaram a tomar alguns deles como reféns para forçar possíveis devoluções.  Os nativos, então, se viram forçados a perseguir os escravos que escapavam, dos quais se tornaram adversários. 
       Aprendendo com os hotentotes a criar o gado solto, ao contrário do que acontecia na Holanda, alguns colonos se livravam do rígido controle econômico exercido pela Companhia, que impunha os preços dos gêneros produzidos.  Entretanto, corriam graves riscos.  Os que fossem apanhados descumprindo as regras estavam sujeitos ao açoite, aos trabalhos forçados e a torturas, como ter as mãos presas a uma árvore com pregos.  Havia pena de morte na forca, fuzilamentos e afogamentos na praia.  A opressão levou 42 pessoas a retornarem à Holanda em 1660, ingressando como clandestinos num navio de passageiros.  A população europeia também crescia lentamente: os brancos do Cabo não chegavam a seiscentos em 1672, entre os quais apenas 64 colonos livres, 39 deles casados.
       Enquanto isso, os hotentotes que lutaram contra os holandeses de 1658 a 1660 tinham perdido todo o seu gado, ou quase.  Parte deles retornou à condição de caçadores/coletores.  Alguns aceitaram se transformar em pastores nas terras dos colonos, que empregavam suas mulheres como domésticas.  Outros ainda migraram nos sentidos norte, nordeste e leste, entrando em choque com os bosquímanos. A embriaguez e a vadiagem se enraizaram entre os nativos².     
                  
                                                                         (...)

      O início do povoamento da Austrália por europeus, em 1787, esteve relacionado à intenção, por parte das autoridades britânicas, de se livrar de parcelas da população inglesa que consideravam indesejáveis.  Somente em Londres, no reinado de Jorge III, o número de criminosos girava em torno de 115 mil.  Com a intensificação das campanhas humanitárias, as execuções, que antes poderiam atingir qualquer delinquente que atentasse contra a propriedade privada, escasseavam.  As prisões ficavam abarrotadas com os ladrões capturados aos milhares pelo Exército e pela Marinha.  Como não era mais viável transferir este contingente para a América do Norte, surgiu a ideia de mandá-lo para a terra dos cangurus e coalas, no fim do mundo. Entre os primeiros 733 prisioneiros embarcados, existiam 431 condenados por pequenos roubos e 44 ladrões de carneiros.  Quarenta e oito pessoas morreram na viagem de 252 dias, na qual o escorbuto fez enormes estragos.  Na metrópole, outros 25 mil homens e mulheres aguardavam na lista de espera.  
      O governador Philips chegou ao continente em 1797.  Calcula-se que a população aborígine, nesta época, estava na faixa de 300 a 400 mil.  Um século depois, restavam cerca de 10% deste total, e os remanescentes tinham sido expulsos para os territórios do Norte e do Oeste.  Como o trabalho na colônia, em tese, cabia aos condenados, os nativos eram considerados inúteis, não havendo interesse em "domesticá-los".  Os prisioneiros, por sua vez, viviam sujeitos à disciplina do açoite.  Seus filhos e netos, já misturados aos colonos vindos por vontade própria, continuaram a receber o tratamento destinado aos criminosos, sendo obrigados a recorrer às autoridades judiciárias para se emancipar.  Isto fez com que advogados e juízes figurassem com destaque entre os primeiros políticos da Austrália¹.

                                                                         (...)

       A tese de que a colonização do Brasil pelos portugueses arruinou qualquer possibilidade de futuro promissor para o país alcança há várias gerações enorme popularidade entre uma determinada categoria de sociólogos, antropólogos e historiadores de botequim.  O discurso comporta variantes, mas pode ser resumido em versão básica num punhado de frases: "Portugal sempre foi um dos países mais atrasados da Europa, com um povo que nunca teve iniciativa. Para piorar, só mandaram para cá bandidos, dominaram gente ainda mais atrasada, de mentalidade tribal, e implantaram a escravidão.  Começando com uma mistura destas, nada pode dar certo".
       É óbvio que tal visão resulta de diversos preconceitos e bastante ignorância.  Seria fácil comprovar que todas as demais nações europeias colonizadoras, ao menos em seus domínios tropicais, fizeram uso de diversos sistemas de trabalho compulsório.  Também abundam exemplos de que vários reinos tidos como civilizadíssimos despejaram parte de sua massa carcerária no Novo Mundo.  Uma crônica deste tipo talvez começasse com o célebre Villegaignon incorporando centenas de detentos tirados dos calabouços franceses à expedição fundadora da França Antártica.  Invertendo o sentido da investigação, organizaríamos igualmente uma base de dados para demonstrar em definitivo que, além dos numerosos degredados que de fato foram trazidos para a América Portuguesa, todos os demais segmentos da população lusitana estiveram representados na sociedade colonial.  Poderíamos alegar ainda que nada permite julgar que os  milhares de cristãos novos desterrados na costa brasileira apenas por suas práticas judaizantes, supostas ou comprovadas, seriam colonos necessariamente piores do que os peregrinos do Mayflower, a não ser que se parta do mais descarado racismo.
       Todavia, não estamos diante de um debate acadêmico, e sim da desconstrução de uma mitologia, tarefa que tende a ser espinhosa.  Independente de quem o criou e dos propósitos a que serve, um  mito histórico persistente é um elemento em que muitos querem acreditar.  Fornece explicações rápidas para realidades complexas, cuja compreensão demandaria esforços intelectuais consideráveis.  Sua força se baseia na repetição exaustiva e na adesão emocional dos que repetem, muito mais do que em algum trabalho escrito visando a comprovação factual.  Contra o adepto fervoroso da máxima "o português foi o pior colonizador", pouco valeria uma exposição sobre a natureza invariavelmente exploratória de todas as colonizações e as mazelas impostas a dezenas de países por seus antigos dominadores espanhóis, franceses, holandeses ou ingleses, nisto incluídos os episódios que ilustram o início desta postagem.  Ele se sente confortável crendo que pertence a uma espécie de Terceiro Mundo compulsório e taxará de estúpido quem discordar, mesmo que lhe falte qualquer argumento consistente para sustentar o que afirma. 
       Preciso deixar claro, sobretudo para o leitor de primeira viagem, que esta matéria não é um panfleto ufanista de linha freyriana elaborado para noticiar à humanidade as  antigas maravilhas da América Portuguesa.  Muito menos uma banalização das perseguições religiosas e das relações escravistas promovidas pelos portugueses a partir da constatação de que estas práticas foram a regra geral na Idade Moderna.  O que me inquieta, no essencial, são os desdobramentos políticos do discurso.
       Os propagandistas do que já foi chamado de "racismo contra", quando passam recibo do que entendem como a inferioridade crônica e permanente dos brasileiros, derivada da colonização retrógrada e das matrizes étnicas desfavoráveis (em regra se auto-excluindo dela por razões nebulosas), aderem de maneira explícita ou velada a uma proposta de tutela.  Sendo o próprio conceito de "inferior" um dado subjetivo que implica obrigatoriamente em comparações, eles se voltam de maneira infalível para os modelos que elegem como superiores.  O Brasil atrasado e seu povo incorrigível precisam, desta forma, funcionar sob a batuta do bloco que nossos jornais do século XIX qualificavam como "os países adiantados", que na verdade seriam os mesmos, talvez com poucos acréscimos. 
       A naturalização da inferioridade não se atrela a um projeto político exclusivo: ela pode alimentar tanto um neofascismo quanto um liberalismo de retórica sofisticada ou um conservadorismo clerical.  Todavia, sempre conduz a duas orientações: a rejeição a uma política externa independente e, no âmbito interno, a aceitação passiva de um status quo no qual uma pequena minoria com pretensões de superioridade nos mais variados campos exerce a direção sobre um povo tido alternadamente como infantilizado ou perigoso.  
       Cabe à esquerda brasileira, sobretudo, a destruição do mito, profundamente irracional e sem fundamentação, mas extraordinariamente vivo e operacional.             
        

Referências:
1- Marc Ferro.  História das colonizações: das conquistas às independências, séculos XIII a XX.  São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 177 a 181.  
2- Alberto da Costa e Silva.  A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700.  Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2002, p. 765 a 770.                                                                    
       

5 comentários:

  1. Fico surpreso que você tenha abordado este tópico, pois a culpabilização do português por todos os nossos males é clichê da retórica do intelectual esquerdista (mas reconheço que muitos comentaristas liberais e direitistas também afirmam essa abobrinha).

    Em primeiro lugar, mesmo se fosse mesmo do português a culpa por todos os nossos males, que autoridade moral temos nós, com os sobrenomes que ostentamos, para falar mal de nossos ancestrais portugueses? Se a colonização do Brasil foi, como afirmam, um tremendo desastre, então temos que concluir que desse desastre nós, brasileiros, não fomos vítimas. Fomos sócios! É um teatrinho bobo, e sobretudo hipócrita, achar que somos porta-vozes de povos originários que foram invadidos e oprimidos no passado justamente por nossos tetravós.

    Mas a conclusão que afirma ser o português "o pior colonizador" é, sobretudo superficial - coisa de historiador de botequim, como você afirmou. Resulta de uma exposição de fatos apartados de seu contexto histórico. O domínio colonial português foi, sim, opressivo, e também é verdade que Portugal se tornou pobre após o século 17. Mas é preciso lembrar que os países ricos que servem de contraponto - Inglaterra, França, Holanda - também tiveram colônias nos trópicos, também utilizaram trabalho escravo, também foram opressivos, e seu enriqueceimento pouco teve a ver com a extensão de seus domínios coloniais - outros países sem colônias, como a Suíça e a Alemanha, também prosperaram. A razão de sua prosperidade foi a entrada desses países no novo sistema econômico, o capitalismo, no que não foram acompanhados de imediato por Espanha e Portugal, que permaneceram atrelados ao sistema anterior, o mercantilismo.

    Enfim, as colônias nos trópicos e seu corolário de atrocidades - escravidão, espoliação, falta de desenvolvimento econômico - não é a marca de um estilo português específico, mas traço comum de um sistema denominado mercantilismo, que imperou no ocidente entre os séculos 15 e 17, e que se caracterizava pelo estabelecimento de colônias monocultoras para o consumo exclusivo da metrópole. As antigas colônias de Inglaterra, Holanda e França, que seguiram esse modelo, hoje não estão melhores do que nós (ao contrário, muitas estão piores). A modernização capitalista dessas metrópoles não foi estendida a suas colônias porque tais colônias estavam presas ao paradigma econômico do modelo anterior, o mercantilismo. Por esse motivo, o processo de descolonização dessa metrópoles seria relativamente pouco traumático, uma vez que a importância econômica delas era declinante, ao contrário do que aconteceu com Portugal, que permaneceria ainda preso aos paradigmas do mercantilismo e dependente de suas colônias por um bom tempo. Outra conseqüência desse colonialismo tardio lusitano foi a impressão, presente no senso comum da época atual, de que os portugueses foram muito mais opressivos que os demais colonizadores - o que ocorreu de fato é que as atrocidades cometidas por eles ainda são relativamente recentes, aconteceram ainda no século 20 e ainda existem testemunhas vivas, enquanto as atrocidades cometidas pelas demais potências ficaram uma lembrança esmaecida no passado.

    O papel do português na nossa formação ainda é avaliado de forma muito preconceituosa, mesmo por pretensos acadêmicos. Mas fico satisfeito de que você deseje eliminar alguns desses preconceitos.

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  2. Sem muito tempo para responder a um comentário tão longo, gostaria de fazer dois retoques importantes:
    .O antilusitanismo no Brasil tem raízes muito anteriores à formação de qualquer movimento que possa ser classificado como esquerdista. Já no Período Regencial havia críticas aos portugueses pelo suposto atraso imposto ao país, potencializadas pelo virtual monopólio luso sobre o comércio de retalho.
    .As atrocidades do colonialismo português podem ter se estendido até a década de 1970, mas muitas populações africanas e asiáticas, como os argelinos, os vietnamitas, os quenianos (rebelião dos Mau-Mau), os etíopes (uso de armas químicas na invasão de 1936) e os indonésios ainda guardam na memória do século XX os massacres que sofreram por parte de ingleses, franceses, italianos e holandeses.

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  3. O que é os francesese fizeram na Argelia, ou Guiana? O que fizeram os holandeses na Indochina, ou os ingleses na antiga Rodésia? Apenas branco rico e preto mais pobre. O Brazil é muito mais evoluido que esses locais e deveria deixar de ser influenciado pelas correntes néo nazistas de que os norte europeus é que são bons e o mal vem lá do sul. A Alemanha em 10 anos escravisou mais pessoas do que 3 seculos de esclavagismo no Atlantico. Afinal esses Portugueses são Brazileiros hoje e o Brazil tem que ter orgulho pelo que é e assumir aquilo que quer mudar!

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  4. Olá. Não entendi muito bem as analogias apresentadas, uma vez que os exemplos apresentados, apesar de certamente lamentáveis, parecem-me "menos horríveis" (se é que podemos colocar assim) que a exploração totalmente predatória e escravocrata realizada no Brasil.

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    1. O texto não teve a finalidade de descrever as atrocidades de todos os colonialismos e compará-las entre si. Apenas quis demonstrar que as demais "metrópoles possíveis" também implantariam o escravismo e enviariam para cá os seus indesejáveis.

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