sexta-feira, 3 de maio de 2013

Os esquerdistas arrependidos e o espírito de Thiers

                            Caricatura de Louis Adolphe Thiers publicada em Le Charivari, edição de 2 de junho de 1833 

      Louis Adolphe Thiers (1797-1877), primeiro-ministro da França durante o reinado de Luís Felipe e mais tarde presidente da República Francesa, é citado com propriedade como um dos principais nomes do liberalismo europeu no século XIX.  Entre seus serviços à ordem burguesa, sobressai o comando da repressão à Comuna de Paris, proclamada em março de 1871.
     O historiador Maurice Agulhon nos revela, entretanto, que Thiers começou sua carreira política na esquerda.  Ele foi um dos fundadores, às vésperas da Revolução de 1830, do jornal Le National, dirigido por Armand Carrel e depois por Armand Marrast, cuja linha era decididamente republicana.  Apesar das posições moderadas que o deixavam mais próximo de um liberalismo avançado do que do socialismo, o periódico pregava a liberdade de associação para os operários como meio de reduzir as injustiças sociais e unia forças aos monarquistas de centro-esquerda na defesa de reformas no sistema eleitoral¹.
       Todavia, diante dos conflitos sociais ocorridos em seu país no ano de 1848, Thiers mudou drasticamente de atitude, derivando para a direita.  A natureza desta conversão ficou explícita na sentença "Atiremo-nos nos braços dos bispos, só eles podem nos salvar".  Thiers assumia a ultrarreacionária perspectiva da instrumentalização do sentimento religioso como mecanismo de contenção das "classes perigosas" e da difusão dos princípios socialistas.  Em seguida,  ingressava no governo conservador encabeçado por Failloux, de tendências monarquistas e clericais.  Seria um dos formuladores da lei de Parieu, promulgada em 1850, que colocava os professores sob a fiscalização de autoridades administrativas que poderiam demiti-los caso considerassem suas ideias nocivas². 
         Cada vez que me deparo com o nome de Thiers, o que ocorre com significativa regularidade em minhas pesquisas sobre o século XIX, sou levado a pensar nos numerosos políticos e acadêmicos brasileiros que, originários das fileiras comunistas, socialistas ou trabalhistas, migraram para o neoliberalismo ou aderiram a alguma das diversas "seitas" conservadoras da contemporaneidade.  Muitos deles, certamente, descreverão o deslocamento ideológico como fruto de um amadurecimento intelectual.  Outros talvez façam referência às desilusões experimentadas por ocasião do desmoronamento do extinto bloco soviético.  Um terceiro grupo, no qual poderíamos incluir bem mais de um elemento notável, suavizou as ideias em troca de volumosos patrocínios às suas carreiras no Poder Executivo, de participações especiais em programas de privatização de empresas estatais ou ainda do ingresso privilegiado em circuitos editoriais.
          Apesar das nuances apresentadas, não desdenharei da sinceridade de nenhum destes convertidos.  Tenho visto muitos deles persistindo em profissões de fé impopulares, sendo fiéis a partidos e candidatos continuamente derrotados e dando mostras de verdadeiro pânico ao menor sinal de avanço dos movimentos sociais.  Mas este quadro também me recorda um antigo diálogo que li a respeito do falecido jornalista Paulo Francis.  Um dos interlocutores se referiu à transformação do célebre opositor da ditadura em histérico direitista.  Recebeu resposta desconcertante: não teria havido qualquer transformação, pois Francis sempre fora elitista, racista e deslumbrado com a "Corte" (os Estados Unidos).
             Minha opinião sobre a maioria dos esquerdistas arrependidos do Brasil não é muito diferente.  São indivíduos que com sua capacidade intelectual, não raro invejável, distinguiram na juventude o caráter perverso da sociedade em que viviam e alimentaram desejos de mudança.  Contudo, jamais efetuaram um autêntico rompimento emocional com as hierarquias tradicionais que um dia pretenderam combater.  O socialismo que idealizaram se concretizaria com a adesão do operariado, do campesinato e dos trabalhadores informais aos valores, opiniões e gostos de seu radicalismo romântico de classe média.                  
             Vendo esgotados determinados projetos de poder à esquerda e sob o fogo de um reagano-thatcherismo aparentemente irresistível nos anos 80 e 90, buscaram o conforto possível no seio de uma burguesia que nunca quiseram de fato destituir.  Hoje, vemo-los com frequência alinhados com teses de inegável teor fascista e postulando medidas de controle social das mais truculentas, embora às vezes sequer se definam como direitistas.  Têm horror à mera suposição de que o povo do qual se arvoravam em porta-vozes possa vir a ocupar mais espaços decisórios, afirmar  com orgulho seus costumes e sua estética, votar com autonomia em defesa de seus interesses imediatos ou, o que seria pior, definir interesses de médio e longo prazo. 
              Esquerdistas arrependidos têm o dom de me irritar, bem além do que conseguiria um fascista sem disfarce ou um conservador rançoso.  Meu juízo sobre eles se assemelha ao de Maurice Agulhon sobre o velho estadista francês:

"Mas Thiers não era um espírito forte, e o ano de 1848 realmente o assustara".         
                                                 

Notas:
1- Ver 1848: o aprendizado da República.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 26/27.
2- Idem, p. 146-147.   

Um comentário:

  1. Agradeço as visitas recentes dos leitores do Brasil, Estados Unidos, Índia, Alemanha, Polônia, Portugal, Rússia, Angola, França e Belarus.

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