segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Flagrantes oligárquicos

        

        Um traço comum a todos os conservadores, e sobretudo aos mais empenhados em defender seus princípios do que em ganhar eleições, é a crença na necessidade de aristocracia.  Segundo eles, os indivíduos das classes mais altas não apenas são dotados de mais iniciativa, em comparação com o homem médio, como também de uma moralidade avantajada.  Desta maneira, toda rebelião contra a autoridade, seja patronal, seja do Estado oligárquico, torna-se condenável, exceto nos casos em que a corrupção e os abusos de poder atingem níveis intoleráveis para as próprias elites.  Nesta perspectiva, as classes populares, tidas como desregradas e voltadas para o ócio, estão condenadas à miséria e à anarquia se privadas de uma "direção superior".
        Embora bastante difundidas em todas as classes, estas ideias são evidentemente fantasiosas e não resistem ao simples exame dos jornais.  "Nossos" políticos, em sua maioria, procedem dos segmentos mais endinheirados da sociedade, e diversas estatísticas já comprovaram que o índice de transgressões ao Código Penal verificado entre eles é bem mais elevado do que o encontrado no conjunto da população.  Diariamente podemos constatar que as autoproclamadas elites, quando ameaçadas em suas posições políticas ou em seus interesses econômicos e/ou pessoais, são capazes das mesmas atrocidades atribuídas aos gerentes das bocas de fumo.  
         O Brasil se transformou em um país com economia de dimensões consideráveis  e nível mediano (ou medíocre, se formos um pouco rigorosos) de qualidade de vida apesar de sua aristocracia, urbana ou rural, sofisticada ou grileira, muito mais do que graças a ela.  Selecionei e adaptei para os leitores quatro episódios, entre um leque infinito de opções, que bem resumem a natureza dos nossos "condutores", pouco mudada ao longo dos séculos.  Contive o impulso de incluir dezenas de outros pela necessidade de não exceder os limites espaciais adequados para um texto de blog.       
     
   
            
                                                              (...)

      Antes do final do século XVII, Garcia Rodrigues Paes foi encarregado da abertura do Caminho Novo, viabilizando as comunicações e o comércio entre o Rio de Janeiro e as Minas Gerais que se integravam à América Portuguesa.  Ele seria premiado pela Coroa, em 1711, com sesmarias equivalentes, em termos de superfície, ao quádruplo da média do que recebiam os beneficiários deste tipo de concessão.  Rodrigues Paes construiu uma venda, ranchos para os viajantes e cultivou parte das terras.  Entretanto, nem ele nem seus descendentes teriam recursos para ocupar todas aquelas áreas.  Outros homens chegaram à região e montaram suas fazendas no território que hoje corresponde ao município fluminense de Paraíba do Sul, sendo entretanto obrigados a pagar foros aos sucessores do desbravador.
       A partir da terceira década do século XIX, fazendeiros como Antônio Barroso Pereira passaram a pleitear a caducidade das sesmarias, tentando escapar da condição de foreiros.  Eles enfrentavam o marquês de São João Marcos, o mais poderoso dos herdeiros de Garcia Rodrigues Paes.  O marquês não residia na área conflagrada, mas se fazia representar por um parente e procurador, Joaquim José dos Santos Silva, vereador da vila de Paraíba do Sul.  Santos Silva, acumulando vitórias e derrotas, lutou contra vários cafeicultores na Justiça, chegou a ser afastado da vereança por responder a processos criminais, mas conseguiu ascender à presidência da Câmara Municipal em 1839, valendo-se de uma licença de Antônio Barroso Pereira, seu grande inimigo.
          Todavia, não saboreou este sucesso por muito tempo.  Quando vinha da fazenda em que morava para mais uma sessão da Câmara, em 29 de julho de 1839, Joaquim José dos Santos Silva sofreu uma emboscada e morreu a tiros.  Os demais vereadores, adversários de seus interesses, sequer lhe prestaram uma homenagem póstuma.  O principal suspeito de ser o mandante do crime era outro vereador, José Agostinho de Abreu Castelo Branco, que acabou sem tempo para se defender.  Em 28 de setembro do mesmo ano, quando se dirigia às suas terras, Castelo Branco foi morto por um capanga que cortou uma orelha do cadáver.  Somente em 1841 o marquês de São João Marcos e seus irmãos doaram o terreno onde se instalara a vila de Paraíba do Sul à respectiva Câmara, livrando seus habitantes dos foros.
(Adaptado de Márcia Maria Menendes Motta.  Nas fronteiras do poder: conflito e direito à terra no Brasil do século XIX.  Rio de Janeiro: Vício de Leitura; Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998)    

                                                                         (...)

         Antônio Manuel de Freitas nasceu em Cunha, no Vale do Paraíba paulista, em 1778.  Por volta de 1815, mudou-se para São João Marcos, na província do Rio de Janeiro, onde prosperou como cafeicultor.  Adquiriu novas terras na região que depois constituiria o município de Rio Claro, integrou as Milícias locais e se lançou à política, o que lhe rendeu, em 1829, o cargo de capitão-mor da vila de São João Marcos.
           Pai de onze filhos, Freitas criou um esquema original para ampliar sua riqueza.  Ele fazia batizar as crianças não com o próprio sobrenome, mas com nomes idênticos aos de parentes e estranhos sem herdeiros, apoderando-se de seu patrimônio quando faleciam.  Uma das "vítimas" foi o cunhado José Luís de Andrade, seu companheiro na migração para as terras fluminenses.
             Isto não impediu que Antônio Manuel de Freitas continuasse a receber distinções.  Em 1849, comissionado pela Câmara do município de São João do Príncipe, organizou a construção das primeiras ruas, praças e prédios públicos que formariam o núcleo inicial da vila de Rio Claro.  Logo depois, D. Pedro II concedeu-lhe o título de barão de Rio Claro.
(Adaptado de Dilma Andrade de Paula.  História de Rio Claro.  Rio Claro (RJ): Prefeitura Municipal, 2004)   

                                                                        (...)

          Raul Salles, filho de um fazendeiro do município paulista de Rio Claro¹, era também sobrinho do presidente Campos Salles.  Ele tentou seduzir, no ano de 1900, a filha de um dos colonos italianos que trabalhavam na fazenda paterna.  Prometeu, a princípio, instalar a família dela no local mais fértil da propriedade caso a moça cedesse às suas investidas.  Sendo rejeitado, planejou um rapto que também resultou em fracasso.  Tentou, em seguida, acionar a polícia local contra o irmão da vítima.  Como tudo falhava, convenceu o pai, Diogo Salles, a expulsar a família italiana de suas terras. 
              A situação era particularmente grave para os colonos, que sairiam da fazenda antes da colheita e sem garantias de poder se instalar em outra a tempo de plantar alimentos na época ideal. Além disto, seriam obrigados a pedir grandes adiantamentos a um possível novo patrão.  Uma áspera discussão entre Diogo Salles e os italianos desembocou numa agressão física do fazendeiro ao idoso chefe da família.  O irmão da moça, o mesmo que Raul Salles desejara ver preso, matou o irmão do presidente da República com um tiro, sendo obviamente processado.  
           A colônia italiana de Rio Claro mobilizou-se para pagar um bom advogado de defesa, mas isto não foi suficiente para livrar o acusado, submetido a uma dura pena ao final do julgamento. Anos depois, o Supremo Tribunal, no Rio, revogou a sentença, mas o caso já havia pesado na decisão do governo da Itália de proibir a imigração para o Brasil em 1902.
(Adaptado de Robert W. Slenes.  Senhores e subalternos no Oeste paulista. In: História da vida privada no Brasil 2.  São Paulo: Companhia das Letras, 1997) 


                                                                 (...)

          O estado brasileiro de Goiás, na virada do século XX, era controlado pelo senador Leopoldo Bulhões, um homem culto que já fora duas vezes ministro da Fazenda.  Bulhões dizia, ao se referir à sua terra natal, que "ali quanto pior melhor".  Para ele, Goiás deveria continuar a ser o domínio dos fazendeiros que lhe garantiam os votos necessários para permanecer indefinidamente no Senado.  Rejeitou a construção de rodovias rumo ao interior goiano por temer a vinda de "aventureiros" que poderiam causar danos à sua máquina eleitoral.
         Todavia, a oposição a Leopoldo Bulhões conseguiu se fortalecer e estabeleceu, por volta de 1912, Antônio Ramos Caiado, o Totó, como novo homem forte do estado.  Totó Caiado prometeu reformas, mas agiu exatamente como seu antecessor: submeteu-se aos interesses dos grandes fazendeiros, mudou-se para o Rio de Janeiro e deixou a administração de Goiás nas mãos de parentes.  Utilizou as tropas estaduais e por algum tempo as federais para combater pelas armas seus inimigos políticos do norte goiano.  Após anos de combates, a maioria dos últimos tinha morrido ou fugido para o sertão baiano.
          Apesar de tudo, o senador Totó Caiado se manteve no poder durante duas décadas, enquanto o povo goiano pagava uma fatura elevada. Em 1925, quando Goiás possuía mais de 500 mil habitantes, somente 7 mil crianças estavam na escola primária; no vizinho Mato Grosso, cuja população era muito menor, havia 9 mil alunos naquele nível de ensino.
(Adaptado de Neill Macaulay.  A Coluna Prestes.  Rio de Janeiro; São Paulo: Difel, s/d [original de 1977])             

1-Não confundir com o município fluminense do episódio anterior.     
    
         

4 comentários:

  1. Há um consenso geral de que nós, no Brasil, somos governados pela elite, e que essa elite é má. Acho que qualquer garoto que já cursou o ensino médio repete isso. Mas se esquecem de que o termo elite, assim descontextualizado, não quer dizer rigorosamente nada. De que elite estamos falando? Há várias elites, desde os times da primeira divisão do campeonato até os cidadãos mais ricos da cidade. Sem contar que não se É elite, mas se ESTÁ na elite. Se não é especificado do que se está falando, a tal da elite torna-se um espantalho, um judas de sábado de aleluia, espécie de entidade maligna que é culpada por todos os males do país, mas que ninguém sabe dizer exatamente o que é, exceto que seus integrantes são sempre os outros!

    É fato, porém, que a elite sempre ocupa as posições de relevo. Disto ninguém discorda. Mas por que é assim? Sem querer complicar, eu penso que é mera consequência da seleção natural - as pessoas, de modo geral, querem fazer parte da elite, mas se não o conseguem, apoiam aqueles indivíduos que, por conta deste ou daquele atributo, estão melhor habilitados para ocupar as posições de relevo. Para citar um exemplo bem simples, em um time de futebol, todos os jogadores, obviamente, querem ser titulares, mas se não conseguem, então desejam que os titulares sejam os melhores entre eles, pois é melhor ser reserva de um time vencedor do que de um time perdedor.

    Disso decorre que a luta para apear as elites do poder é sempre uma quimera, tipo um cachorro que corre atrás do próprio rabo, pois no momento em que aqueles indivíduos que não são parte da elite conquistarem o poder, eles necessariamente passarão a fazer parte de uma elite - primeiro, da elite política dos governantes, mas também de uma elite econômica, pois mesmo que não tenham ganhos ilícitos, os salários e as benesses dos cargos que ocupam são suficientes para alça-los a uma posição de elite econômica, e a partir daí se habilitarão a ingressar em outras elites mais. Enfim, seremos sempre governados por algum tipo de elite, seja a elite dos mais inteligentes e capazes ou a elite dos mais audazes e descarados. Ou a elite dos mais bem apadrinhados no partido.

    Eu entendo, entretanto, que irrite saber que o senso comum considera os integrantes das elites como dotados de mais capacidade e iniciativa, bem como de um padrão de conduta moral superior, e que os atributos assim creditados sirvam para legitimar sua posição de relevo. Mas eu penso que isso é também consequência do processo de seleção natural a que eu me referi: entre os atributos valorizados que distinguem os indivíduos e os levam a ser apoiados por seus pares, se incluem a capacidade, a iniciativa e a moralidade. Por este motivo, a elite é sempre superior à média, e de fato pode-se afirmar que a elite, POR DEFINIÇÃO, é superior à média. Uma elite "ruim" nada mais é do que o sintoma de uma média pior ainda. Afinal, é preciso convir que a elite brasileira que nos governa, e que protagoniza tantos malfeitos, não surgiu de repente, vinda em uma espaçonave do planeta Marte - essa elite também se origina do povo. A diferença entre a elite e o resto da população diz respeito à renda e aos cargos ocupados, de resto ambos são cultural e psicologicamente assemelhados. É claro que eu desejo que o povo brasileiro seja melhor em termos de competência e honestidade, mas enquanto isso não acontece, eu ainda acho que ser governado pelas elites é melhor do que ser governado pelos piores.


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  2. A primeira crítica, sem vitimismo, é injusta. O termo "elites" não foi empregado de forma vaga. Qualquer leitor perceberá que me referi aos grupos que detêm tradicionalmente o poder econômico e o político. Não há como dizer que o "meu espantalho" pode incluir o operário mais habilidoso da montadora de liquidificadores ou o mendigo que tomou para si a porta da paróquia mais rica. Mas aproveitando o seu discurso, o fato de praticamente ninguém se apresentar como membro de uma classe já diz muito sobre ela.
    Permita-me discordar da tese da seleção natural. A formação das elites, ou classes dominantes, ou oligarquias, como preferir, nada teve de espontânea no Brasil, na medida em que seu primeiro mecanismo foi a concessão de sesmarias pela Coroa. Com raríssimas exceções, poderíamos mesmo afirmar que, sem o patrocínio do Estado oligárquico e sem o emprego da violência particular dos capangas de todos os matizes, ninguém se sustenta nas "posições de relevo". Incluindo na análise todos os meios de concentração de renda e de saber, as barreiras informais opostas a quem vem "de baixo", é fácil constatar que jamais houve um simulacro que fosse de meritocracia no país. Tanto que, ao pensar em sistema de mérito, você busca exemplo nos times de futebol...

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  3. Devo também discordar da suposta inutilidade da luta para "derrubar as elites". Em primeiro lugar, nem toda troca de comando é uma troca de seis por meia dúzia, e principalmente se a mudança obedece a objetivos claros traçados antes do processo. Em segundo, pode-se, em tese, e é exatamente isto o que defendo, apear as oligarquias criando regras de governo antioligárquicas, ou seja, impedimentos para que os filhos, pupilos e compadres dos novos mandatários monopolizem o poder na segunda geração.
    Por outro lado, não entendo como o igualitarismo ideal ou possível uma paridade salarial absoluta. É óbvio que um senador sempre terá um padrão de consumo superior ao de um caixa de banco, sob pena até de não conseguir exercer suas funções de maneira minimamente eficaz. Mas isto não impede que os filhos de ambos sejam encaminhados às mesmas escolas, aos mesmos postos de saúde, que brinquem nas mesmas praças sem o velho instituto do "sabe com quem está falando?".

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  4. Por fim, de certa maneira você ratifica o que eu disse nas primeiras linhas. Quando reafirma sua crença na superioridade moral das elites, não apela para tratados sociológicos ou para exemplos práticos, bem ou mal contextualizados, e sim... para o senso comum! A sua prova da tal superioridade, no máximo, é a obediência dos dominados, sobre a qual tenta colocar em destaque os elementos de consenso enquanto passa ao largo dos de violência, da memória popular a respeito das chacinas, prisões, torturas e desaparecimentos impostos à maioria dos que ousaram divergir ao longo do tempo, sobretudo quando pobres e sem relações.
    Peço mais uma vez desculpas pela demora em responder a comentários longos. Talvez no dia em que você puder me apontar como membro da "nova elite", e alguém se dispuser a funcionar como equipe editorial deste blog, a coisa mude!

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