sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Dai a Emílio o que era de Ernesto

  


    O principal "fundamento" da fábula do general Geisel esquerdista é, sem dúvida, o rápido reconhecimento prestado pela diplomacia brasileira aos governos marxistas instalados nas ex-colônias portuguesas do continente africano na década de 1970.  Efetivamente, o chanceler Azeredo da Silveira reconheceu a independência da Guiné-Bissau em 16 de julho de 1974, sem que estivessem concluídas as negociações entre o movimento autonomista e a ex-metrópole.  Em março de 1975, o Brasil foi o primeiro Estado a estabelecer relações com Angola, enviando para Luanda uma representação do Itamaraty antes mesmo da autonomia formal do país. O governo local do MPLA foi plenamente reconhecido em 11 de novembro de 1975.  Quatro dias mais tarde, era a vez de Moçambique, cujos dirigentes convidariam o líder comunista Luís Carlos Prestes para as cerimônias de independência¹.
      Os silviofrotistas tardios, convenientemente, ignoram ou põem de lado os aspectos mais práticos da questão.  O regime salazarista, não obstante as fraquezas da economia de Portugal, mobilizou ao longo das guerras de descolonização um milhão e trezentos mil cidadãos portugueses, dos quais 8.290 morreram na África.  Ainda assim, os contingentes militares no Ultramar eram insuficientes para manter o controle sobre aqueles territórios, fazendo com que o governo apelasse em escala crescente para milícias compostas por nativos: para ficarmos em um único exemplo, havia na Guiné-Bissau, em 1973, 6.425 soldados portugueses e 25.610 recrutas africanos.  O acesso dos movimentos de libertação aos lança-granadas, fuzis kalashnikov e mísseis antiaéreos tornou as tropas de ocupação, em nítida inferioridade tecnológica, incapazes de submeter os revoltosos, apesar da insistência do primeiro-ministro Marcello Caetano em prolongar os conflitos aumentando a quantidade dos engajados².  Sintomaticamente, o general António Spínola (1910-1996), considerado leal ao salazarismo e herói das guerras africanas, publicou em 1974, para grande desconforto de Caetano, o livro Portugal e o futuro, no qual defendeu a tese do direito dos povos à autodeterminação e o projeto de conceder a independência às colônias para integrá-las numa "comunidade lusíada" eleita por métodos democráticos³.
         O elemento mais embaraçoso para os divulgadores da falácia, entretanto, é interno e se relaciona às raízes da "diplomacia da prosperidade", que se refletiu numa política externa "sem fronteiras ideológicas".  Segundo o historiador José Flávio Sombra Saraiva, foi o governo Médici que, além de permitir uma maior autonomia do Itamaraty dentro do Estado, nomeou para o ministério das Relações Exteriores o diplomata Mário Gibson Barboza (1918-2007), antigo secretário-geral da mesma pasta na gestão Costa e Silva.  Barboza, classificado pelo autor como um nacionalista, favoreceu a "ruptura do tradicional alinhamento com Portugal" no que dizia respeito às questões coloniais.  Muito antes do nome de Ernesto Geisel ser indicado para a presidência da República, precisamente em 23 de outubro de 1970, Mário Gibson Barboza proferiu palestra na Escola Superior de Guerra na qual afirmou que o Brasil, no intuito de ampliar seu espaço nos novos mercados, deveria adotar "iniciativas próprias" quanto à África4.
          Barboza viajou para o continente africano em 1972, percorrendo ao todo oito países.  Naquela ocasião, sofreu pressões do governo da Nigéria, que reprovava a indefinição brasileira acerca da virtual independência da África Portuguesa.  Quando voltou, declarou que 1972 seria o "Ano da África", recebendo diversas manifestações de apoio, inclusive no Congresso Nacional, onde o partido governista, a ARENA, desfrutava de maioria.  Houve, é fato, resistências a estas diretrizes, como a do ministro da Fazenda, Delfim Netto, que preferia o entendimento com Portugal e África do Sul, em prejuízo da África Negra.  Todavia, antes da deflagração da Revolução dos Cravos, conforme Saraiva, já era nítida a vitória do grupo do Itamaraty, que resultou particularmente na aproximação entre o Brasil e Angola5.
           Só me resta, portanto, restituir o Ernesto em questão à direita que nunca quis abandonar, e talvez ver o nome de Médici (!) associado a novas pérolas do revisionismo selvagem.                      
      

Notas:
1-Ver José Flávio Sombra Saraiva.  Um momento especial nas relações Brasil-Angola: do reconhecimento da independência aos desdobramentos atuais.  In: Angola e Brasil nas rotas do Atlântico Sul.  Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p. 237 a 243.
2- Cf. Lincoln Secco.  A Revolução dos Cravos e a crise do império colonial português: economias, espaços e tomadas de consciência.  São Paulo: Alameda, 2004, p. 101 a 105.
3- Idem, p. 109-110.
4- Saraiva, p. 231.
5- Idem, p. 232 a 236. 
  

4 comentários:

  1. A explicação que eu acho mais plausível para o discutido esquerdismo do ex-presidente Geisel é seu estilo autoritário ao extremo. O general pouco se lixava para as fichas do SNI, e nomeava para seu gabinete os "comunistas" que bem queria, para desgosto dos frotistas, e na política externa, igualmente pouco se lixava para os ditames ideológicos da guerra fria, e punha em primeiro lugar os interesses imediatos do Brasil. Também não escondia sua antipatia pelos norte-americanos, e outro ponto de atrito foi o acordo nuclear com a Alemanha - aí já não se colocava a questão ideológica, pois a Alemanha Ocidental também era do bloco capitalista, mas mesmo assim o episódio causou grande desconforto aos EUA.

    Esse modo de agir fez Geisel convergir com a esquerda, mesmo a contragosto deste e embaraço daquela. Mas bem considerando, não há nenhuma contradição aí - afinal, autoritarismo e nacionalismo são elementos constitutivos da direita fascista, e isso ninguém pode negar. Se esses atributos, no Geisel, não bastam para tipifica-lo como um esquerdista, ao menos são um testemunho do PARENTESCO entre fascismo e comunismo que eu várias vezes apontei aqui. Ao contrário do que afirma o senso comum, o antônimo do comunismo não é o fascismo, mas o liberalismo. Fascismo e comunismo derivam do mesmo tronco, surgiram na mesma época, produtos da mesma fenomenologia social e política.

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  2. Devo discordar em vários pontos:
    .O "esquerdismo" de Geisel foi uma criação dos frotistas, cuja preocupação definitivamente não era o autoritarismo do presidente (Frota seria ainda mais autoritário) e sim a sua falta de ortodoxia.
    .Continuo insistindo na tecla de que há uma diferença qualitativa entre a tentativa de estabelecer uma política externa com maior independência e ser antiamericano. É quase impensável que um general bastante influenciado pela ESG pudesse ser antiamericano.
    .Tecnicamente, também não é válido classificar Geisel como fascista: faltariam elementos como a arregimentação das massas para as causas da direita, o expansionismo territorial e mesmo o culto à sua personalidade. Ele sequer deu a impressão de que poderia se eternizar no poder. A não ser que, e creio que você não faria isto, o termo fascista seja usado como um xingamento banal.
    .Como já coloquei em outra postagem, nada é mais forçado do que remeter comunismo e fascismo à mesma época. Já havia um movimento comunista em meados do século XIX, e o fascismo só se tornou visível por volta de 1920. No máximo, poderíamos revisitar a tese reducionista de que o fascismo seria uma mera reação à formação da União Soviética, mas neste caso você precisaria admitir que fascistas e comunistas são muito mais simétricos do que semelhantes.
    .A noção de "antônimos" (talvez fosse melhor dizer antípodas) é complicada e quiçá indefensável no que diz respeito a ideologias. Basta pensarmos nos liberais italianos que deram aval a Mussolini sem necessariamente renunciar à doutrina liberal, ou numa figura como Von Mises afirmando que o mérito do fascismo viverá para sempre na História.

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