quarta-feira, 18 de setembro de 2013

E o general Geisel virou comunista: um efeito colateral do reacionarismo caricato na Internet

      

       Entre todas as Ciências Humanas, a História é possivelmente a que mais concentra carga político-ideológica em sua escrita.  Talvez seja também a disciplina em que mais leigos tentam interferir, fato que embora positivo e até desejável não deixa de provocar certos desastres.  Difundida a Internet entre todos os segmentos situados acima da miséria absoluta, as obras dos especialistas ultrapassam os limites de um público tradicional restrito a algumas centenas ou, na melhor das hipóteses, às unidades de milhar.
       As teses dos historiadores que são reconhecidos, à direita ou à esquerda, como defensores de posições doutrinárias tidas como fundamentais, ou que sustentam opiniões sobre determinados processos consideradas indigestas para o "inimigo", logo ganham versões vulgarizadas, de qualidade decrescente, que muitas vezes atingem o último nível deturpadas por completo, senão incompreensíveis.  Mesmo nestes casos, textos repletos de contradições e decorados com dúzias de erros gramaticais ainda reivindicam, como fonte de autoridade, o original construído pelo "medalhão".  Os leitores que se atrevem a emitir comentários críticos recebem como retorno a pecha de ignorantes, quando não são acusados de desonestidade por pregar "mentiras".
         Outras vezes, porém, a árvore genealógica das vulgarizações é curta.  Não conseguimos encontrar entre os parteiros de algumas loucuras sequer um recém-graduado em História, quanto mais um prestigiado doutor cercado de jovens discípulos.  Isto não impede que a repetição contínua, realizada dentro de círculos específicos, transforme afirmativas estapafúrdias em verdades irrefutáveis para numerosas pessoas.
          Envio estas reflexões para o teclado pensando em um exemplo bem concreto: a sentença "O general Geisel era esquerdista (ou comunista)" tem alcançado nos últimos anos uma enorme popularidade entre parte da militância conservadora, apesar de provocar boas risadas numa escala provavelmente maior.  A difusão de uma ideia tão aberrante atende a pelo menos três objetivos convenientes aos seus propagadores: a exaltação do projeto do Estado mínimo, o apagamento retórico dos vínculos da direita civil com uma ditadura cujos ônus ficam depositados exclusivamente sobre sua ala militar, e uma associação bastante forçada entre o petismo e o desenvolvimentismo dos anos 70, "unificados" dentro de uma categoria ampla e imprecisa intitulada estatismo.
          O mito do presidente vermelho, esquerdista ou comunista infiltrado tem origem bem nítida.  Ele procede do maior inimigo de Ernesto Geisel dentro das Forças Armadas, o general Sylvio Frota, um dos líderes da linha dura ditatorial.  Vencido por Geisel em disputas internas do regime e frustrado em definitivo na pretensão de um dia chegar à presidência da República, Frota utilizou contra o rival doses generosas do histrionismo que era marcante em sua personalidade, associadas à autêntica paranoia anticomunista.  Entre muitas matérias que descrevem aquela campanha, recorro a estas linhas da Folha de São Paulo:                

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2310200517.htm

A escalada contra o Partido Comunista naqueles meses seria uma demonstração de força da chamada linha dura, que tinha em Ednardo um representante destacado e o ministro do Exército, Sylvio Frota, como expoente. "Chegaram a soltar panfletos nos quartéis acusando Geisel e o Golbery do Couto e Silva [ministro-chefe do Gabinete Civil] de comunistas", afirma o ex-secretário de Imprensa.

Décadas mais tarde, Graça Salgueiro (entre outros)  endossou esta visão ainda se reportando à fonte primária.  Além de esquerdista, Geisel era o traidor dos ideais "revolucionários":

http://www.midiasemmascara.org/arquivos/6414-ideais-traidos.html

A esse respeito o Gen Sylvio Frota denunciou ao presidente Geisel de que havia 97 funcionários em cargos de DAS que foram classificados pelos órgãos de Segurança como comunistas militantes; entretanto, tal alerta caiu no vazio, mais uma vez. Delineava-se assim, cada vez mais claramente, aquilo que o Gen Sylvio Frota tanto temia e relutava em crer: o pendor esquerdista do Presidente Geisel.

Batendo na tecla do estatismo e fazendo alusão a um tema especialmente caro aos conservadores, o da suposta decadência moral do Ocidente, Orlando Fedeli aponta os militares, e Geisel em particular, como promotores do socialismo no Brasil:

http://www.transcriptsearch.com.es/id/8SB4ZiWsU7o

Quem fez as leis socialistas que o Lula tá aplicando foram  os generais. Quem fez o divórcio? O Geisel.  Quem socializou o Brasil?  Foi o Delfim Neto com o Geisel. O Brasil chegou a ter entre 70 e 80% da economia controlada pelo Estado.  Uma economia mais centralizada, mais estatizada que a da Tchecoslováquia em poder da Rússia  e da Iugoslávia em poder da Rússia. O Brasil era mais "comunista" do que países soviéticos. 


Para não cansar o leitor com uma lista exaustiva que, se for do seu interesse, poderá levantar com facilidade através do Dr. Google, passo ao último degrau da "cadeia alimentar", algo como os peixes limpa fundos dos aquários domésticos: a página Meu professor de História mentiu para mim, do Facebook.  Seu administrador, já conhecido jocosamente por muitos como Mezzo Cérebro, diagnostica cheio de convicção a condição de retardados dos que desconhecem um dado tão evidente quanto o comunismo de Geisel.
 
"Geisel era comunista". A gente publica um FATO do ordem da realidade arquiconhecido por qualquer um com mais de 2 neurônios em funcionamento e aparece gente gritando "fonte?", "fonte?", "fonte?"!!!! Jesus! daqui a 5 anos o povo vai pedir fonte quando alguém disser que Pedro Alvares Cabral descobriu o Brasil. Eita, MEC!!!!!


           Pouco adianta, é claro, discutir com ideólogos cuja única preocupação é empurrar seus seguidores cada vez mais para a direita, não importando o quanto a razão venha a sair machucada deste processo.  Mas não custa oferecer a um público amplo alguns elementos de realidade, muito mais para vacinar eventuais incautos contra a estupidez do que para fazer justiça ao ditador, que bem merece se contorcer no túmulo até pelos "crimes" que não cometeu.

.A formação ideológica e profissional de Ernesto Geisel foi muito semelhante à de Humberto de Alencar Castelo Branco.  Em 1945, Geisel estudou no Army Command and General Staff College, localizado em Fort Leavenworth, no estado norte-americano do Kansas.  No biênio seguinte, trabalhou na equipe do governo Dutra encarregada de eliminar a influência de comunistas e esquerdistas em geral nos sindicatos brasileiros.  Como os demais castelistas, engajou-se também na Escola Superior de Guerra (ESG), na qual foi membro do corpo permanente¹.  Caso julguemos o delírio verdadeiro por um minuto, estaremos diante de uma raríssima amostra de anticomunista visceral convertido em vermelho na velhice.

.Durante a crise de 1961, em que os ministros militares tentaram impedir, após a renúncia de Jânio Quadros, a posse do vice João Goulart, Geisel aderiu ao plano golpista e foi feito chefe da Casa Militar pelo presidente interino Ranieri Mazzilli.  Referindo-se posteriormente ao recuo dos conspiradores que não quiseram se arriscar à deflagração de uma guerra, ele se manifestaria nestes termos:

Ninguém queria ir combater os militares no Sul e dividir ainda mais o Exército.  Quando vi que as forças não iam para o Paraná e que o Cordeiro não ia assumir o comando do III Exército, senti que não teríamos a solução desejada. Aliás, todos nós víamos que não ia dar.  Foi aí que se partiu para o parlamentarismo como a solução menos ruim.

Naquela semana de agosto de 1961, integrantes do Comando Militar do Planalto chegaram a planejar a prisão de Ernesto Geisel, e a razão certamente não foi o seu "esquerdismo", e sim a intenção de quebrar, à direita, as regras constitucionais.  Registremos ainda que um dos irmãos do futuro presidente, o general Orlando Geisel, obedecendo ao marechal Denys, ordenou ao III Exército em 28 de agosto que "fosse o governo do Rio Grande do Sul [favorável a Goulart] compelido ao silêncio, com o emprego da força e do bombardeio pela aviação, se necessário"². 

.Após a derrota da ARENA para o MDB nas eleições legislativas de novembro de 1974, o ministro da Justiça de Geisel, Armando Falcão, empreendeu uma operação de caça aos comunistas, vistos como artífices dos resultados alcançados pela oposição.  Em janeiro de 1976, Geisel fez uso do AI-5 para cassar os mandatos de dois deputados estaduais paulistas, sob o pretexto de que os mesmos haviam sido apoiados pelos comunistas³.

           É certo que contra a exposição destes fatos de domínio público certos malabaristas conservadores  oporão velhos e novos enredos na linha da "estratégia das tesouras", sobre como comunistas enrustidos perseguem comunistas notórios para favorecer a ascensão ao poder de outros comunistas.  Sobre isto, evitarei comentários, pois não ouso me aventurar como leigo no campo da Psiquiatria.          
                
Notas:
1-Ver Thomas Skidmore.  Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 316.
2- Ver Vivaldo Barbosa.  A Rebelião da Legalidade: documentos, pronunciamentos, noticiário, comentários.  Rio de Janeiro: FGV, 2002, p. 114 e 224.
3- Skidmore, p. 369/370.
         
                       

6 comentários:

  1. Essa do Geisel Comunista é uma amostra de como a formatação simplificada e maniqueísta dos personagens históricos os reduz a peças tão isentas de arestas e complexidade, que basta umas marretadas para encaixa-los no quebra-cabeça de modo a formar o desenho que se deseja. Eu penso que a função do historiador deveria ser justamente afastar o formatador ideológico e mostrar os personagens em todas as suas nuances, arestas e complexidades.

    É evidente que Geisel não era nenhum comunista. Mas ele era um notório nacionalista antiliberal, também antiamericano, mais ou menos do corte de um Nasser ou um Velasco Alvarado. Ele odiava tanto o estado mínimo quanto qualquer esquerdista de hoje em dia. Embora a contragosto, essas características o aproximavam da esquerda, conforme foi reconhecido pelo Glauber Rocha, em um memorável manifesto que fez seus colegas se convencerem de que o ex-genial cineasta tinha endoidado de vez após haver fumado todas... coisas da vida.

    Os quatro governos militares não foram idênticos um ao outro, mas de modo geral eles deram continuidade ao nacional-estatismo de Vargas e Kubitcheck, oscilando entre sua vertente "nacionalista" (Vargas e Geisel) e sua vertente "entreguista" (Kubitcheck e Castelo). Kubitchek é outro bom exemplo: foi um dos presidentes que menos investiu na área social, e concedeu a empresas estrangeiras subsídios e privilégios de tal monta, que na época até os mais conservadores acharam um escândalo. Mas que é que hoje tem alguém por aí a dizer que JK foi "neoliberal"? De modo algum. JK é considerado o Pelé dos presidentes. Mas ele e Geisel são bons exemplos, pois aconteceu com ambos um fenômeno raro: vistos retrospectivamente, eles parecem hoje maiores do que foram no passado. São figuras emblemáticas.

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  2. Faço alguns retoques:
    .Afirmar que Geisel era antiamericano soa como dizer que José do Patrocínio foi um monarquista ferrenho pelo ano e meio em que o jornalista cultuou a personalidade da princesa Isabel, para depois voltar ao movimento republicano. Releia, por favor, o parágrafo sobre os estudos de Geisel na maturidade.
    .A comparação com Nasser é inaceitável. Geisel jamais montaria uma agenda comum com a União Soviética, e Nasser nunca sairia do poder vivo para passá-lo a um Figueiredo egípcio. Penso ainda que Geisel se isolaria do mundo para não subscrever a agenda social do Velasco Alvarado da fase inicial de governo.
    .Os governos militares foram cinco! Você deve ter se esquecido do Costa e Silva. Tudo bem: eu era um recém-nascido na época, e você não estava em idade de se ocupar de política.
    .Não sei se Geisel é maior hoje do que em 1978. O mandato dele foi bem longo, e me lembro de ter a impressão, aos dez ou onze anos, de que ele era presidente eterno. Percepção distorcida à parte, não vejo apologistas de Geisel que se comparem, no número ou no entusiasmo, às viúvas de Vargas e JK.

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  3. Gustavo Moreira, novamente falando sobre o que não sabe. Sua desatualização é tão vergonhosa, que eu fico com pena. Não sei se é preguiça sua ou pura cegueira ideológica, porque neste caso, nem tem desculpa de não ler em outro idiota.

    Provavelmente você não leu o livro de Sylvio Frota, "Ideais Traídos" e fica falando besteira em todo o post.

    Geisel, se não era comunista, era MUITO burro, porque os ajudou em diversos momentos. Inclusive ajudou Cuba a matar angolanos e a infiltrar comunistas no governo.

    Acorda, cara...vai estudar antes de ler alguns livros e achar que sabe tudo.

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    1. Eu mentiria se dissesse que os humoristas involuntários me desgostam de todo. Note bem o que você me propôs:

      "ler em outro idiota"

      Neste caso, não há como escapar da preguiça, de fato. Para que fazer esforço na busca por mais idiotia, se já tenho os "idiotas" da minha própria estante?
      Mas tentando falar sério, digo que não há saída, a não ser o anonimato, para quem constrói um dilema do tipo "ou Geisel era comunista, ou era burro". Pior é pretender que a última palavra sobre uma determinada personalidade seja dada por seu inimigo mais encarniçado, em obra que ficou sem contradita devido ao falecimento da "parte difamada". Para arrematar, você ainda se alinha com um fascista, deixando no ar a impressão de que a linha dura dos anos 70 era a melhor opção no cenário político nacional. Cara, continue a se embriagar de Veja, MSM e discursos de Bolsonaro e acabará pastando, no sentido literal do termo.

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    2. Esta me escapou, não sabia que a extrema direita delirante já englobava o Geisel nas fileiras comunistas. Caramba este pessoal anda usando o que em suas reuniões ? O General Figueiredo então era quase um novo Fidel ?

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    3. Eles andam usando Mídia sem Máscara, Veja e biblioteca politicamente incorreta. Alguns chegam a usar tudo isso e ainda gravam os programas do Luís Carlos Prates e da Rachel Sheherazade.

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