quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

A juventude Mezzo Cérebro

       

     Os programas humorísticos da segunda metade dos anos 70 figuram entre as melhores lembranças da minha infância e do começo da adolescência.  Jô Soares sobressaía, na época, como o mais talentoso criador de personagens que muitas vezes serviam como instrumento para uma sátira desconcertante da ditadura.  Recordo-me hoje de um tipo burguês arrogante, interpretado por Jô, que ridicularizava em festas, perante seus amigos, as falas de garotos supostamente desinformados.  A cada rodada de "pérolas", seguia o bordão "A ignorância da juventude é um espanto!".  Entretanto, a graça do quadro estava em constatar que o homem de meia idade que se julgava culto proferia asneiras em grande quantidade para "desmontar" as afirmativas corretas dos jovens.
      Encontro uma situação diametralmente oposta ao visitar a página do Facebook e o blog do grupo intitulado "Meu professor de História mentiu para mim", que segundo investigações independentes conta com três editores, um dos quais já razoavelmente conhecido no mundo virtual pela alcunha de Daniel Mezzo Cérebro.  Muito jovens, eles se distinguem pela algo divertida pretensão de humilhar diante de não poucos seguidores uns 90% da sociedade, em particular a militância de esquerda e os professores de História maduros, que consideram os agentes disseminadores, por excelência, de lugares comuns "progressistas" e multiculturais.  Não satisfeitos em reproduzir em grande escala a literatura de tipo narlochiano e todos os clichês da propaganda reacionária contemporânea, alimentam a ambição de construir seu próprio conteúdo, como vemos neste link:       

http://meuprofessordehistoriamentiupramim.blogspot.com.br/2013/11/tudo-que-seu-professorzinho-do-mequi.html

       Não discutirei por ora a lamentável tentativa de banalizar ou descaracterizar os preconceitos de origem e etnia.  A Internet está superpovoada de elementos cínicos ou desequilibrados o suficiente para sustentar que a melhor alternativa para o cidadão chamado quase diariamente de paraíba, crioulo e termos equivalentes, servindo ainda de alvo preferencial da polícia e de quadrilhas neonazistas, é juntar uma tonelada de dinheiro e passar do time dos discriminados para o dos discriminadores.  Podemos criticá-los a qualquer instante, coisa que continuarei fazendo, mas meu foco neste momento é a quantidade de disparates e dados inventados que Mezzo Cérebro e seus sócios reúnem em tão pouco espaço.  Para não tornar a matéria longa demais, e digo isto sem ironia, decidi fracioná-la em dois blocos.  Vamos, então, ao primeiro, composto por quatro citações.        

      Apesar de todo o entusiasmo do trio politicamente incorreto, simples dados factuais arrasam a fábula.  Constatamos que na Inglaterra do século XI, há muito cristianizada, os escravos continuavam desempenhando um papel significativo na produção: 
Pela metade do século XI, o governo escandinavo havia sido derrubado e um reino anglo-saxão recentemente unificado fora restaurado.  O campesinato por esta época consistia geralmente de rendeiros semi-dependentes, exceto nas áreas de antiga colonização dinamarquesa mais a nordeste, onde havia muitos lotes alodiais de proprietários jurisdicionais.  Os escravos ainda existiam, compreendendo uns 10 por cento da força de trabalho; eram mais importantes economicamente nas regiões ocidentais mais remotas, onde a resistência céltica à conquista anglo-saxônica fora mais demorada, e os escravos compreendiam um quinto ou mais da população.
(Perry Anderson.  Passagens da Antiguidade ao Feudalismo.  São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 155)
     Descartemos da Europa, talvez, esta Inglaterra excessivamente "bárbara".  Os civilizadíssimos bizantinos, na mesma época e até mais tarde, reduziam ao cativeiro, em elevada proporção, populações cristãs dos Bálcãs. 
A ocupação bizantina [na Bulgária] durante os séculos XI  e XII levou a um rápido aumento das grandes propriedades e à intensificação das extorsões sobre o campesinato.  Pela primeira vez foi introduzida na Bulgária a instituição da pronoia e  multiplicadas as comunidades ekskousseia.  Números crescentes de antigos camponeses livres caíam na situação de paroikoi dependentes, e a escravidão se expandia contemporaneamente graças ao cativeiro de prisioneiros de guerra. 
 
(Passagens da Antiguidade ao Feudalismo, p. 277) 
           Muito além dos limites da Idade Média, John Locke poderia ensinar a Mezzo Cérebro & Cia., através das Constituições Fundamentais da Carolina, que o fato de um escravo frequentar a igreja de sua preferência em nada afetava os direitos do senhor sobre sua pessoa:   
(...) no plano civil, os escravos, como todos os outros, podem legitimamente se registrar e aderir à igreja ou confissão que cada um deles julgue a melhor e dela se tornar membros, tão plenamente como acontece com qualquer homem livre.  Entretanto, nenhum escravo deixa por isso de se submeter ao poder civil que seu dono exerce sobre ele e, em todos os aspectos, cada um permanece no mesmo estado e na mesma condição de antes.
(Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos: ensaio sobre a origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil.  Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco; Petrópolis: Vozes, 2006, p. 315. 

 

           A família Mezzo Cérebro, cujos integrantes não são formados em História, está obviamente desobrigada de saber que o Cristianismo chegou ao reino de Axum, situado em terras dos atuais Etiópia e Sudão, ainda na Antiguidade, transformando-se em religião oficial.  Também podem ignorar à vontade que as terras da Núbia "medieval" estiveram repartidas entre os Estados cristãos da Nobácia, Macúria e Alódia, que tiveram certo êxito, por alguns séculos, na contenção da expansão islâmica.  Mas, sobretudo, devem aliviar o mundo virtual da sua fábrica de balelas!!!

            
         Quanta bobagem em tão poucas linhas!  Alguns colegas maliciosos dizem que na verdade foi o próprio professor de História que desistiu desta turma.  Vou adiante e assinalo que Mezzo Cérebro & Cia. brigaram também com o professor de Português, como se nota no trecho "dO norte da África, que tinha sido aculturadA", a não ser que retruquem afirmando que toda a África foi "aculturada" por muçulmanos, sepultando de vez a realidade para retocar a gramática. 
      Não me atrevo a adivinhar qual é o conceito de tecnologia dos prodigiosos jovens conservadores, mas caso tivessem lido superficialmente qualquer manual de História para crianças da antiga quinta série (sim, daqueles aprovados pelo MEC!) saberiam que o trabalho do homem com os metais antecedeu em muito a feitura dos primeiros sinais cuneiformes na velha Mesopotâmia.  Em outras palavras, um bom Mario Furley Schmidt iria salvá-los de uma opinião estúpida como a de que não há tecnologia sem escrita. 
        Para arrematar a obra, o autor do "texto" nos garante que nenhuma língua da África Subsaariana possuía representação escrita antes da expansão do Islã, empregando ainda caixa alta para dar mais destaque à asneira.  Vou poupá-lo de bibliografia vinda do MEC, mas preciso apresentá-lo à escrita meroíta, usada na antiga Núbia, que já possuía uma versão alfabética quando boa parte dos habitantes do norte europeu sequer imaginava o que era um alfabeto. 


 
 
  

 
     
         Temos aqui novos chutes, tão ruins quanto os anteriores e com o agravante das referências absurdas.  A África de Mezzo Cérebro brota, sem dúvida, de filmes da série Indiana Jones ou das reprises de Allan Quatermain.  Sobre um dos mencionados impérios de "primitivos que dançavam em volta da fogueira", escreveu João Carlos Rodrigues que

O principal governante do Mali foi Kankan Mussa, ou mansa Mussa (1312-1332), irmão e sucessor de Abubakar que alcançou celebridade internacional ao empreender, em 1324, uma peregrinação a Meca.  Sua estada no Cairo causou rebuliço pela quantidade de ouro que distribuiu e pela suntuosidade do seu séquito.  O historiador Al-Omari escreveria dele em 1336 na sua obra África sem o Egito: "É o mais importante dos reis negros muçulmanos; seu reino é o maior, seu Exército, o mais numeroso; é o mais poderoso, o mais rico, o mais temido pelos inimigos e o mais capaz de boas ações".  De volta da Arábia, Mussa trouxe consigo numerosos teólogos, cientistas e artistas- entre eles o quase lendário arquiteto andaluz Al-Saheli, autor da mesquita Djinger-Ber, em Timbuctu, e outras obras características do esdrúxulo [!] estilo sudanês.  Seu reino marcou o apogeu do Mali. 

(Pequena História da África Negra.  São Paulo: Globo; Brasília: Biblioteca Nacional, 1990, p. 34)     

      Para seguir  com a esdrúxula (sem exclamação) tese da família Mezzo Cérebro, precisaríamos conceber o mito do rei que importava intelectuais e técnicos qualificados para ... nada, já que seus súditos eram todos selvagens!
       Sobre o "Dahomey", atual Benin, o mesmo Rodrigues relata que durante o reinado de Agajá (1708-1727) havia uma organização de governo bastante elaborada, em que "cada funcionário administrativo tinha como correspondente ou duplo uma mulher encarregada de controlá-lo e denunciá-lo ao Estado em caso de irregularidades" (Pequena História da África Negra, p. 94).  Não muito longe dali, na cidade de Bigu, em território que hoje corresponde à República de Gana, Alberto da Costa e Silva informa que existia, já em meados do século XV, "um importante centro têxtil, de produção de ferro e trabalho no marfim e no cobre". ( Ver A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, p. 195) 

       Apesar do estilo, e dos outros defeitos da página, um público superior a 50 mil pessoas manifesta aprovação a "Meu professor de História mentiu para mim".  Não cultivo a ilusão de ser o único que enxerga em um mundo de cegos: é evidente que muitos dos que "curtem" identificam as invenções, distorções e generalizações primárias dos editores.  Todavia, quando se trata de defender o indefensável, uma mentira a favor vale mais do que uma verdade contrária.  Concluo em breve...
          



16 comentários:

  1. A desonestidade intelectual do Jeguiel Montedemerda chega a ser criminosa.

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  2. Comentários críticos são válidos, mas levarei a sério a diretriz de não publicar mais aqueles que se destinam a plantar spams dentro do blog.

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  3. Gustavo, acho que o post foi mais do que uma crítica. Se vc postar algo tão completo quanto foi esse texto, quem sabe não demonstre o que vc disse.

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  4. Aquela página é uma verdadeira porcaria. Além de falarem asneiras de História, sem serem formados em História, tentam ser críticos econômicos, atrelando todos de esquerda ao comunismo; o que demonstra a falta de compreendimento e entendimento sobre o assunto que tentam atacar. Sequer devem ter lido teóricos como Keynes, que por sinal suas teorias foram usadas pelos EUA na década de 30, aderindo ao Estado intervencionista para saírem da crise... E saíram. Mas na cabeça desses amebas, Estado intervencionista é sinônimo, vá se saber lá porque, de comunismo, quando o comunismo sequer concebia a ideia desse Estado de hoje existir em um modelo comunista. Aliás, Keynes não era comunista e defendia o Estado intervencionista justamente por saber que o mercado é imperfeito e, portanto, não daria para deixar ele agindo livremente. Mas, na cabeça dos Mezzo cérebros, só existe comunista na esquerda e intervencionismo é coisa de comunista ¬¬

    Sabe, se querem dar uma de críticos econômicos, pelo menos saibam do que estão falando, mas nem disso eles tem conhecimento algum. Isso o que dá ser papagaio de Olavo, outro que não deve ter lido nem 10% dos teóricos economistas.

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  5. Esse blog se faz cada dia mais necessário. Obrigado Gustavo, por renovar minha pouca esperança na humanidade e parabéns pelo seu ótimo trabalho.

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  6. Ótima postagem, cara. Nada como a senhora História pra bater na cabeça da desonestidade e da pretensão desses senhores. O que me entristece é a quantidade de gente que acredita nos contos da carochinha do Daniel Montedemerda... da última vez que olhei, eram uns 50 mil.

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  7. "Não cultivo a ilusão de ser o único que enxerga em um mundo de cegos: "

    Pena que o Mezzo Cérebro e seus seguidores cultivam, posam se únicos seres sãos numa sociedade que cada vez mais se aproxima do marquissimo cultural- gramsciano-cubista-gayzista-nazista-stalinista-chavista-pretista-ateu. Caras veem gramscianisno até nas novelas da Globo, sério mesmo.

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  8. Sou formado em Ciências Sociais e acho que poderei dar uma contribuição para análise dessa pérola. Os termos que eles usam para classificar as etnias africanas eram utilizados por antropólogos do séc. XIX, antropólogos evolucionistas que classificavam as sociedades em selvagens, bárbaros e civilizados, e claro os europeus estavam no topo da escala, são antropólogos a muito tempo refutados, que deram sua contribuição, claro, mas estudados apenas para saber até onde pode chegar a cientifização do discurso dominante. Interessante o ar intelectual que eles tentam dar ao texto.

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    1. Por falar em século XIX, eles andaram copiando trechos do historiador Cesare Cantù (1804-1895) para defender a Inquisição. Parece que estão revirando fontes das épocas não contaminadas pelo "marxismo cultural". A coisa resulta no que você viu.

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    2. Defendem a inquisição??? Eu li direito?

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    3. Leu. Eles juram pela mãe morta que a Inquisição representou um avanço jurídico.

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  9. Adorei, é bom ver alguém usar argumentos verdadeiros para lavar as mentiras e invenções mal intencionadas.

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  10. Parabéns pelo excelente trabalho. Há alguns meses, Luís Domingues, professor da Universidade Federal Rural de PE, refutava as asneiras da página. Entretanto, já faz um certo tempo que não o vejo por lá (talvez os proprietários da mesma não aguentaram lidar com a verdade e o bloquearam), de qualquer forma, penso que seria interessante se pessoas esclarecidas como o dono deste blog e o Luís Domingues, articulassem-se para desmascarar as ideias (criminosas em alguns casos) dessa equipe desonesta de "redatores".

    Link onde o tal Mezzo Cérebro faz uma postagem revoltadíssimo com o professor Luis Domingues: http://meuprofessordehistoriamentiupramim.blogspot.com.br/2013/09/o-ataque-do-professor-aloprado.html

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  11. Calma aí, gente, eu sei de onde surgem as ideias deles: do Olavo de Carvalho, Lobão, Pondé e similares. Creio que a simples menção lá do primeiro nome já diz tudo para vocês que parecem saber o que significa a palavra "estudar", caso contrário eu explico qual é a desses caras.

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  12. A página de Mezzo Cérebro já era, professor.

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