quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Mais seis coisas que todo brasileiro deveria e pode saber sobre a monarquia



      Em duas matérias do segundo semestre de 2013, me empenhei na desconstrução da mitologia relacionada ao Império do Brasil, alinhando alguns de seus arcaísmos, sua essência elitista e discriminatória, sua visceral relação com o escravismo.    

http://gustavoacmoreira.blogspot.com.br/2013/07/nove-coisas-que-todo-brasileiro-deveria.html

http://gustavoacmoreira.blogspot.com.br/2013/08/algumas-coisas-que-todo-negro.html

      Embora não haja, como já ressaltei, um partido monarquista ou uma forte corrente de opinião neste sentido, a exaltação do passado imperial  continua a servir, para numerosos conservadores, como um importante recurso ideológico.  A tentativa de apresentar o Segundo Reinado, em especial, como uma época de prosperidade, honestidade e "bons costumes", se faz acompanhar pela nostalgia de uma sociedade ultra-hierárquica, cujos integrantes tinham seus lugares bem marcados, ficando sujeitos a pesadas sanções caso os questionassem.  Difunde-se, desta maneira, o conformismo social, e legitima-se indiretamente o uso da força, inclusive letal, contra os que lutam por mais cidadania e mais direitos, que nesta visão são enquadrados como nocivos perturbadores da ordem.
    Como meus propósitos são diametralmente opostos, dou sequência à mencionada série, trazendo à tona mais elementos inconvenientes para os monarquistas e demais reacionários "nostálgicos".           
    
1- Furioso com a Assembleia Constituinte de 1823, que pretendia restringir seus poderes, sobretudo quanto ao direito de veto, D. Pedro I atirou a tropa contra os representantes eleitos, prendendo alguns e exilando outros.  Em consequência, o país teve, durante 65 anos, uma Constituição imposta por um imperador autoritário, que se investiu de amplos e variados privilégios: nomear e promover funcionários civis, militares e eclesiásticos, outorgar títulos de nobreza, escolher ministros sem consulta ao Parlamento, dissolver a Câmara.

(Cf., entre muitas possibilidades, Emília Viotti da Costa.  Da monarquia à república: momentos decisivos.  São Paulo: UNESP, 1999, 139-140)  

2- O Exército brasileiro foi constantemente acionado, até os anos finais do regime, para funcionar como capitão do mato, perseguindo escravos fugidos.  Quando o general Deodoro da Fonseca, presidente do Clube Militar, solicitou que os soldados ficassem dispensados daquela função, em outubro de 1887, recebeu resposta negativa do governo.  Na prática, entretanto, os militares, com boa dose de apoio popular, se recusaram a cumprir missões deste gênero, contribuindo para o colapso do escravismo.

(Cf.  Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves e Humberto Fernandes Machado.  O Império do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 435)  

3- As eleições, em regra, eram decididas com o emprego da força bruta: os governos provinciais mobilizavam esquadrões da Guarda Nacional e autoridades policiais para garantir a vitória de seus candidatos, intimidando a oposição.  Um caso célebre foi o do padre José de Cêa e Almeida, subdelegado da vila fluminense de Saquarema, que expediu em 1845 uma ordem autorizando até o assassínio dos eleitores que não aceitassem as listas do Partido Liberal.  Em contrapartida, os chefes conservadores da região reuniram suas próprias "forças armadas" para salvar seus protegidos da ação do padre.  Sete anos mais tarde, Paulino José Soares de Souza, futuro visconde do Uruguai, elaborou o seguinte depoimento sobre a política imperial:

A oposição disputou aqui a eleição com grande fúria, e com grandes meios.  Batemo-la completamente porque estamos no Governo.  Se ela estivesse no Governo teria vencido completamente.  Assim está o país, e assim é o sistema.  Ando muito enjoado do tal sistema, à vista do que se passa entre nós, e do que tem passado e passa na Europa.  Não se conclua daí que sou absolutista, não senhor, o que aborreço é uma cloaca a que chamarei parlamentarismo, excelente coisa para os ambiciosos, turbulentos, faladores, audazes, sem-vergonhas, trapalhões, etc., etc.

(Ver Ilmar Rohloff de Mattos.  O tempo saquarema: a formação do Estado imperial.  São Paulo: Hucitec, 1990, p. 106-107 e 189) 

4-Para reforçar as tropas em serviço no Paraguai, D. Pedro II determinou em novembro de 1866, com a aprovação de seu Conselho de Estado, o alistamento de escravos, que em virtude de sua condição jurídica, obviamente, não possuíam qualquer treinamento militar.  Como fazendeiros e eclesiásticos resistiram à perda de seus cativos, a maior parte daquele recrutamento caiu sobre os escravos do Estado e da Casa Imperial. Em outros termos, o imperador enviou uma parcela de seus próprios servidores pessoais para o cenário de guerra.  Ficariam livres SE conseguissem retornar.

(Cf. Vitor Izecksohn.  A Guerra do Paraguai.  In: O Brasil imperial, vol. II: 1831-1870/org. Keila Grinberg e Ricardo Salles.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 406-407) 

5- Durante muitos anos, a capital do Império esteve sujeita a um conjunto de normas de exceção baixadas em 1825 pelo intendente de polícia Francisco Alberto Teixeira de Aragão.  Foi instituído um toque de recolher a partir de 22h no verão e 21h no inverno.  Após este horário, a polícia deveria revistar qualquer pessoa que ainda estivesse nas ruas em busca de qualquer objeto que pudesse funcionar como arma, inclusive pedaços de pau.  Aragão deliberou que "não se abuse nem se adote para com as pessoas notoriamente conhecidas e de probidade".  Em contrapartida, escravos armados seriam imediatamente açoitados, ocorrendo o mesmo se fossem encontrados em armazéns, tavernas, botequins e casas de jogo.  As proibições impostas a eles, que incluíam até os assovios após a hora do toque, se estendiam explicitamente aos "negros e homens de cor" libertos ou livres.

(Ver Thomas Holloway.  Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX.  Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997, p. 58-59)           

6- Mesmo após a proibição efetiva do tráfico negreiro, ocorrida em 1850, muitos dos chamados africanos livres (introduzidos no país ilegalmente e apreendidos pelas autoridades competentes) continuaram a ser espoliados de sua liberdade e obrigados a prestar serviços ao Estado ou a particulares.  É o que podemos ver no Relatório do Ministério da Justiça de 1868:   

http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1861/000133.html





            Compartilhem bastante.  Vacinemos a sociedade brasileira, com os meios que temos a nosso alcance, contra o reacionarismo e o regresso a relações sociais abomináveis.



7 comentários:

  1. crie uma página no face pra divulgar melhor Gustavo!

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    1. Já existe, Carlos: https://www.facebook.com/groups/historiaepolitica/
      Grande abraço!

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  2. Excelente post, Gustavo. Tive oportunidade de ler na minha graduação Ilmar de Mattos e Emilia Viotti, escritos essenciais para se compreender o Periodo Imperial no Brasil, vendido como um tempo lúdico pela nação reaça em geral.

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    1. Você tocou no ponto essencial: por mais que a historiografia desconstrua esta "Idade do Ouro", na mídia e entre os leigos continuam a predominar as versões laudatórias. Mas prossigamos desmistificando. Obrigado por prestigiar.

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  3. Estou adorando ler seu blog, professor. A informação é uma arma contra apologias que buscam no militarismo e na hierarquia as soluções para o Brasil.

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  4. Gustavo, você se aventuraria a fazer um texto sobre o liberalismo, tocando em suas bases filosóficas e econômicas? Fico agoniado sempre que vejo um liberal evocar um "verdadeiro capitalismo" quando criticado, remontando a um mundo naturalmente sem monopólios. Eu não tenho senão um domínio superficial do assunto, só acho essa retórica muito conveniente.
    Obrigado

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