sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Quilombolas de São Paulo



"O escravo teve um papel autonômico na crise terminativa da escravidão. Abaixo da propaganda multiforme, cuja luz lhe abriu os olhos ao senso íntimo da iniquidade, que o vitimava, ele constitui o fator determinante na obra de redenção de si mesmo. O não quero dos cativos, esse êxodo glorioso da escravaria paulista, solene, bíblico, divino como os mais belos episódios dos livros sagrados, foi, para a propriedade servil, entre as dubiedades e tergiversações do Império, o desengano definitivo". 

(Ruy Barbosa, citado em Jacob Gorender. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1991, p. 182)

     O relevante papel desempenhado pelos escravos na destruição do sistema escravista foi, até um passado recente, negligenciado em nossos livros didáticos, que salientavam apenas a atuação dos filhos abolicionistas da classe senhorial, quando não incorriam na secular apologia à princesa Isabel.  Este quadro, felizmente, tem se modificado.  Transcrevo da obra A escrita da História, de Flavio Campos e Renan Garcia Miranda (São Paulo: Escala Educacional, 2005, p. 369), destinada ao Ensino Médio, o seguinte trecho:

Na década de 1880, grupos mais radicais, descontentes com as medidas parlamentares, organizaram associações que auxiliavam a fuga de escravos.  Estudantes, advogados, comerciantes e ex-escravos formaram um grupo abolicionista denominado caifazes, que incitava e promovia fugas de fazendas em São Paulo.  Retirados do cativeiro, a maior parte se dirigia ao quilombo do Jabaquara, em Santos, que chegou a reunir cerca de 10 mil pessoas.  Além das fugas, tornaram-se cada vez mais frequentes as insurreições, os assassinatos, os atentados e as sabotagens no decorrer da década de 1880, evidenciando a irreversível desestruturação do regime escravista.  A rebeldia tomou conta das senzalas e levou muitos proprietários a tentar estabelecer acordos com seus escravos. 

       Encontro colocações semelhantes no livro História: volume único (Ronaldo Vainfas, Georgina dos Santos, Jorge Luiz Ferreira e Sheila de Castro Faria.  São Paulo: Saraiva, 2010, p. 501):

Algumas lideranças abolicionistas chegaram a estimular publicamente a fuga de escravos e a formação de quilombos- o quilombo de Jabaquara, em Santos, e o do Leblon, na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, formaram-se com o incentivo de grupos abolicionistas. Depois de muita discussão parlamentar, foi votada e aprovada a Lei dos Sexagenários, em 28 de setembro de 1885, que libertava todos os escravos com mais de 60 anos.  Mas em vez de minimizar os conflitos, a Lei estimulou ainda mais o movimento, aumentando as fugas em massa e levando muitos senhores a alforriar coletivamente seus escravos, com a condição de continuarem a trabalhar em suas terras.           

       Em Vontade de saber História, 8o ano (Marco César Pellegrini, Adriana Machado Dias e Keila Grinberg.  São Paulo: FTD, 2012, p. 206), podemos ler que

Enquanto na cidade os abolicionistas organizavam manifestações contra a escravidão, nas fazendas milhares de escravos se rebelavam e fugiam.  Muitos deles se refugiavam nos quilombos abolicionistas, que eram organizados pelos caifazes.  Os caifazes eram pessoas que participavam do Movimento Abolicionista e davam proteção aos escravos, procurando agilizar seu processo de libertação.

      Malgrado a persistência, no imaginário de boa parte da população, dos velhos mitos, difundem-se nas salas de aula versões mais críticas do processo que resultou na Abolição.  Para ilustrá-las, recorro mais uma vez aos programas de digitalização de documentos brasileiros da Biblioteca Nacional e da Universidade de Chicago.  Nas imagens apresentadas abaixo, ganham vida, apesar do anonimato, homens que decidiram conquistar ativamente sua própria liberdade.      

O periódico Correio Paulistano, ligado ao Partido Conservador, noticiou na edição de 11 de janeiro de 1887 que um grupo de quilombolas da região de Campinas opôs séria resistência ao destacamento policial encarregado da sua captura.  Apesar de algumas baixas, a maioria conseguiu escapar. 



O Paiz, jornal da Corte, menciona em 13 de junho de 1887 a fuga em massa de escravos rumo ao município de Santos, processo que suscitava uma mobilização militar por parte do governo.




No Correio Paulistano de 15 de setembro de 1887 temos o testemunho do senador Antônio Prado a respeito da evasão contínua dos cativos campineiros.



Em 19 de outubro de 1887, O Paiz reproduzia matéria de outro jornal acerca de um grande levante, no qual elevado número de escravos derrotou uma força policial e se apoderou de suas armas.  




Pela edição do dia seguinte, ficamos sabendo que o mesmo grupo afugentara também uma força de cavalaria.




O Correio de 13 de dezembro de 1887 narra a rebelião contra o barão da Serra Negra, várias vezes assinalada na historiografia acadêmica, e outros episódios da resistência escrava.






O futuro presidente da República Francisco de Paula Rodrigues Alves, que então administrava a província de São Paulo, registrou no relatório apresentado em 10 de janeiro de 1888 o iminente colapso do escravismo. 

http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/1032/000019.html


      A recordação destas lutas, ocorridas há bem mais de cem anos, nos remete à necessidade constante da mobilização dos setores populares, sem a qual os avanços sociais se tornam impossíveis.  A antiga coalizão entre elementos dos mais diversos contra a instituição do cativeiro nos sugere, sobretudo neste começo de século tão áspero para os partidários do socialismo, a união das forças progressistas contra uma direita que se mostra cada vez mais enfurecida e próxima do fascismo.    

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