quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Da usina de mentiras da direita: a farsa da "farsa yanomami"

        
        Não é desconhecida das pessoas que trafegam pelas páginas políticas brasileiras, impressas ou virtuais, a ação de uma certa parcela da direita que, em conluio com o ruralismo, contesta sistematicamente as identidades étnicas ou culturais dos povos indígenas, das comunidades quilombolas e/ou dos trabalhadores sem terra.  No caso dos índios, em particular, verifica-se a intenção recorrente de deslegitimar os laudos favoráveis emitidos pelos antropólogos que participam, a serviço do governo, das atividades de demarcação das reservas.  Quando a disputa pelo solo se estende a áreas de fronteira, sobretudo na Amazônia, juntam-se ao argumento da proteção ao agronegócio protestos contra uma suposta alienação da soberania nacional.
       Este discurso está longe do ineditismo.  Já na época da minha adolescência, nas distantes décadas de 1970 e 1980, circulavam a partir dos meios da direita nacionalista informações "acima de qualquer suspeita" sobre a presença, nos estados amazônicos, de instituições transnacionais cujo objetivo seria o desmembramento de partes do território brasileiro para a criação de nações indígenas independentes.  Entre as etapas que antecederiam este desfecho, estaria a difusão de línguas estrangeiras entre os índios, por meio da atuação de catequistas norte-americanos ou europeus.  Mesmo que em mais de trinta anos não haja ocorrido qualquer iniciativa comprovada de secessão, a teoria conspiratória continua prosperando.
         Os Yanomami, que habitam partes do estado de Roraima e do sul da Venezuela, são talvez o alvo mais frequente das campanhas que se destinam a lançar a opinião pública contra os índios em geral, com ganhos exclusivos para o poder econômico.  O motivo, sem dúvida, é o fato de terem obtido, em 1992, a maior área demarcada entre todos os povos indígenas do Brasil.  Em 1995, o coronel Carlos Alberto Lima Menna Barreto, que comandou um batalhão de fronteira em Roraima no governo Médici, publicou um livro intitulado A farsa Ianomâmi.  Não possuo a obra, mas seu argumento central é seguidamente reproduzido em numerosos sites de viés conservador: a etnia em questão nunca teria existido, constituindo obra da "imaginação interessada" de uma fotógrafa ora identificada como suíça, ora como húngara ou romena.  Apresento apenas dois exemplos, para não entediar os leitores com a transcrição de notícias repetidas de maneira uniforme.  Um deles consta do portal Mídia sem Máscara, coisa que dificilmente surpreenderá os conhecedores de tão notório depósito de spams que desinformam à direita.      
          
http://www.bancadamilitar.org.br/abm-AMZ-06.htm


Em 1973, em noticiário bombástico, Cláudia Andujar se referiu pela primeira vez aos índios ianomâmis, os quais, no entanto, nunca haviam sido identificados pelos exploradores que passaram pela região. E olha que foram muitos, tanto do Brasil, quanto do exterior. No capítulo 3, A Ianomamização dos Índios, diz Menna Barreto: "Manoel da Gama Lobo D'Almada, Alexandre Rodrigues Ferreira, os irmãos Richard e Robert Schomburgk, Philip von Martius, Alexander von Humboldt, João Barbosa Rodrigues, Henri Coudreau, Jahn Chaffanjon, Francisco Xavier de Araújo, Walter Brett, Theodor Koch-Grünberg, Hamilton Rice, Jacques Ourique, Cândido Rondon e milhares de exploradores anônimos cruzaram, antes disso, os vales do Uraricoera e do Orenoco, jamais identificaram quaisquer índios com esse nome" (pg. 29). Com a autoridade de quem foi o primeiro comandante do 2º Batalhão Especial de Fronteira e do Comando de Fronteira de Roraima, diz Menna Barreto: "É preciso ficar claro antes de tudo que os índios supostamente encontrados por Cláudio Andujar são os mesmos de quando estive lá, em 1969, 1970 e 1971. (...) eles continuam a ser os xirianás, os uaicás, os macus e os maiongongues de sempre, ficando essa história de 'ianomâmis' só para brasileiros e venezuelanos" (pg. 33).

http://www.midiasemmascara.org/artigos/globalismo/13517-a-farsa-ianomami-e-a-cobica-internacional-sobre-a-amazonia.html- Roberto Gama e Silva


Menna Barreto e outras fontes fidedignas afirmam que coube a uma jornalista romena, Claudia Andujar, mencionar, pela primeira vez, em 1973, a existência do grupo indígena por ela denominado “ianomâmi”, localizado em prolongada faixa vizinha à fronteira com a Venezuela.


         A militância direitista, com o ímpeto habitual, propaga em larga escala a denúncia do falecido coronel sem jamais averiguar sua autenticidade.  Poderia escapar de mais um vexame, caso se desse ao trabalho de consultar, ao menos, fontes de fácil acesso na Internet.  Um dos jornais de maior circulação do Rio de Janeiro, no final de 1972, publicou uma entrevista com o padre João Batista Saffirio, que na ocasião declarou ter vivido cinco anos entre os Yanomami.  A reportagem foi ilustrada com imagens produzidas pela mencionada Claudia Andujar.      





      
                  
          Um crítico apressado poderia declarar que faço barulho por quase nada.  A tramoia atribuída a Claudia Andujar começaria alguns meses antes, não por iniciativa da fotógrafa, e sim através de religiosos de origem italiana.  Esta hipótese, contudo, também não se sustenta.  Em 1971, o antropólogo francês Jacques Lizot escreveu um artigo, hoje digitalizado, sobre a cultura Yanomami, resultado de trabalhos de campo realizados entre 1968 e 1970.    


          Antes de Lizot, a área Yanomami foi percorrida, principalmente na parte venezuelana, pelo americano Napoleon Chagnon, cuja tese de doutorado, defendida em 1966, recebeu o título de Yanomamö Warfare, Social Organization and Marriage.  Os estudos de Chagnon também se materializaram em livros que podem ser encontrados nas bibliotecas de Antropologia das universidades brasileiras. 






            
       Fica provada, portanto, a má fé dos criadores da acusação fraudulenta, que evidentemente não ignorariam tantas referências que nada tiveram de secretas.  O pior de tudo, entretanto, é vermos dezenas ou centenas de pequenos formadores de opinião, iludidos pela demagogia reacionária, proporcionando eco à mentira.  
               Prosseguirei com o tema, mais complexo do que parece à primeira vista.    
                   

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