sexta-feira, 7 de março de 2014

Brevíssimas notas sobre as origens do fascismo


            Um dos expedientes mais desonestos de um determinado conjunto de intelectuais de direita é a tentativa de ocultar do público o viés elitista e pró-capitalista dos movimentos nazifascistas do Período Entreguerras.  Entre os recursos empregados nesta tarefa, figura a contínua lembrança de que Benito Mussolini, na juventude, militou com destaque no Partido Socialista Italiano.  Embora ele fosse um autodidata cuja formação intelectual não excluiu a incorporação de ideias de autores totalmente estranhos ao socialismo, como Nietzsche e Pareto (este último nomeado senador na Itália fascista), tenta-se, com base em certas passagens da trajetória política de Mussolini e em suas leituras, sacralizar a balela de que o fascismo constituiu, na verdade, um concorrente do marxismo no campo da esquerda.  Não nos custa, como de hábito, apresentá-los a mais alguns episódios "inconvenientes".                  
       Emilio Gentile, especialista em fascismo e professor de História Contemporânea da Universidade La Sapienza, em Roma, ressalta o fracasso do projeto mussoliniano de envolver um grande número de socialistas na Primeira Guerra Mundial, então em curso.  Insatisfeito, Mussolini deixou seu cargo de diretor do Avanti! (órgão oficial do Partido Socialista Italiano) para fundar um outro periódico, destinado à defesa de suas posições belicistas.  Foi, na época, expulso do partido e qualificado como "traidor das massas socialistas".  
            Ainda segundo Gentile, a experiência nos campos de batalha contribuiu decisivamente para que Mussolini trocasse os princípios marxistas e internacionalistas por um outro programa, "que afirmava o primado da nação sobre as classes sociais e combatia os partidários de uma revolução socialista sustentando a vitalidade do capitalismo produtivo e a necessidade de uma colaboração entre as classes para aumentar a riqueza e a potência da nação".             






       Martin Blinkhorn afirma que o jornal de Mussolini, sustentado pelos intervencionistas (indivíduos adeptos da guerra), afastou-se de uma linha editorial socialista para assumir a função de "voz dos produtores [o empresariado rural e urbano, obviamente] e soldados".




        Donald Sassoon põe em relevo o fato de que os industriais italianos, em sua maior parte favoráveis ao ingresso do país no conflito europeu, também financiaram, em pequena escala, Il Popolo d'Italia.  Flertando com o liberalismo no campo da economia, Mussolini começou a dissolver a desconfiança que ainda despertava entre os empresários por seu passado socialista. Luigi Einaudi, citado no texto, esteve longe de ser o único liberal a simpatizar com o líder fascista.




           Robert Paxton informa que o evento de fundação do movimento fascista ocorreu na sala de reuniões da Aliança Industrial e Comercial de Milão.  Haja contorcionismo retórico, portanto, para nos convencer de que a burguesia lombarda abriu com alegria sua sede para patrocinar o surgimento de uma nova corrente política de esquerda! 
  



           
         A estrutura desta matéria convida os leitores à colagem das fontes, nos incontáveis locais em que os reacionários despejam suas insanidades "históricas".  Estejam, como sempre, à vontade!  

Referências:

.BLINKHORN, Martin.  Mussolini e a Itália Fascista.  Lisboa: Gradiva, s/d. 

.GENTILE, Emilio.  Qu'est-ce que le fascisme? Histoire et interprétation.  Paris: Éditions Gallimard, 2004.

.PAXTON, Robert O.  A anatomia do fascismo.  São Paulo: Paz e Terra, 2007.

.SASSOON, Donald.  Mussolini e a ascensão do fascismo.  Rio de Janeiro: Agir, 2009.

6 comentários:

  1. Uma boa postagem essa, professor. Fico impressionado com os malabarismos feitos pela galera da Direita política sob o Fascismo. O fardo deles é imenso e o papo furado de colocar fascismo e esquerda na mesma panela, usando como argumento o "tamanho do Estado", é de uma desonestidade gritante. Abraço :)

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  2. Texto excelente Gustavo, percebe - se como é difícil competir com a criatividade da direita em provocar, intencionalmente, uma grande confusão na cabeça das pessoas. E o pior é que grande parte de mal intencionados da direita corrobora com essas distorções. Adoro esses seus achados históricos. Parabéns.

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  3. Os paralelos com o marxismo abrangem apenas táticas políticas, então? Aquela frase atribuída a Mussolini ("tudo para o Estado, nada contra o Estado", sei lá) é hipócrita?

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    1. A premissa é inteiramente viciada: em primeiro lugar, é ponto mais ou menos pacífico entre os marxistas que o Estado é uns instrumento de opressão de classe. Logo, nenhum marxista subscreveria a sentença "tudo para o Estado". Em segundo, o fascismo italiano esteve longe, a muitos anos-luz, de retirar a propriedade dos meios de produção das mãos dos empresários. Sobre Mussolini, vale relembrar o quanto mudou sua retórica econômica ao longo do tempo, sem jamais prescindir do apoio da burguesia.

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  4. É claro que afirmar que fascismo e comunismo são "farinha do mesmo saco" é desonestidade intelectual, mas que essa ideologia tem a ver com a idolatria ao Estado, e particularmente, com o tamanho do Estado no Brasil atual, basta acompanhar a História a partir da chegada de Vargas ao poder em 1930. Ninguém discordará que foi com Vargas que o Estado brasileiro começou a crescer e a centralizar-se, e essa providência foi considerada progressiva no contexto da época, afinal ninguém queria continuar governado por coronéis do sertão que só tinham olhos para suas fazendas e cidadezinhas do interior. Mas terá sido coincidência que Vargas tenha emulada parte da retórica e da simbologia fascista ao mesmo tempo em que fundava o Estado brasileiro? Terá sido coincidência que a Consolidação das Leis do Trabalho, obra magna de Vargas, tenha sido uma cópia descarada da Carta Del Lavoro de Mussolini?

    Outro subterfúgio comum é apontar exemplos de banqueiros e industriais que apoiaram regimes fascistas como prova de que o fascismo seria um regime ligado ao grande capital. É um equívoco típico do enfoque marxista, que vê as classes sociais como meras construções ideológicas - os indivíduos oriundos de uma determinada classe supostamente agem movidos unicamente por razões ideológicas em prol dos interesses de classe. No mundo real não é assim: os indivíduos agem por motivos particulares, muitas vezes inconfessáveis. O apoio dados pelos capitalistas italianos a Mussolini não significava que todos eles fossem fascistas, assim como os empréstimos que Lenin recebeu durante a NEP não significavam que os banqueiros houvessem se convertido ao comunismo! Nem tampouco os empresários que apoiaram João Goulart eram de esquerda - eles só queriam vencer as concorrências e obter vantagens do governo. Questão de lucro.

    Filosoficamente, tanto o fascismo quanto o comunismo descendem do positivismo de Comte, a primeira doutrina de engenharia social da História, e que fez adeptos principalmente entre os militares. Na época do tenentismo eles começaram a por essas ideias em prática, e dividiram-se entre o comunismo e o fascismo, com predominância deste último, mas mesmo assim é notório que grande número de comunistas históricos brasileiros tenha se originado das fileiras do exército - Luís Carlos Prestes, Gregório Bezerra, Estillac Leal, Miguel Costa, Carlos Lamarca. O regime de 1964 foi um eco longínquo do positivismo, e seus próceres estudaram junto e compartilharam muitas ideias com o grupo citado acima. Será coincidência? Não acho, assim como não acho coincidência que, além de Mussolini, muitos outros notórios direitistas tenham sido esquerdistas em sua juventude - Carlos Lacerda, Reinaldo Azevedo, Olavo de Carvalho, às vezes acontece o caminho inverso, como dom Hélder Câmara, mas é mais raro.

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  5. O pior é que essas pessoas que adotam uma postura reacionária acusam, sem fundamento, a "esquerda" (PT?) de distorcer as informações na educação brasileira, falam, inclusive, que a Ditadura de 64 não foi tão ruim quanto dizem os livros influenciados pelos "esquerdopatas". Como se vê, é uma guerra de ideias. Mesmo com extensos registros históricos bastante verossímeis, alguns teimam em dizer que a Ditadura não foi tão cruel. Livros como o Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, escrito não por um historiador, mas por um jornalista da VEJA e com a capa bonitinha tem a intenção de distorcer, de lobotomizar seus leitores. Aliás esse livro deveria ter um outro título...

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