segunda-feira, 7 de julho de 2014

Para que mesmo estudar História?



            O jornal Folha de São Paulo, em 20 de dezembro de 2011, anunciou que o governo Alckmin reduziria as cargas horárias de História e Geografia, para os alunos do Ensino Médio, em 25% e 14%, respectivamente.  Seriam também extintas as aulas de aprofundamento, destinadas à preparação dos interessados em fazer exames vestibulares. (Ver http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/15993-sp-reforca-sociologia-filosofia-e-artes-mas-corta-aula-tradicional.shtml)  A notícia, que provocou forte indignação entre o professorado, não deve ter surpreendido em grande proporção os bons conhecedores de um político cuja característica mais saliente é o conservadorismo rançoso.  Só não me atrevo a rotulá-lo como o pior quase-presidente que o país já possuiu pelo risco de cometer injustiça contra os demais candidatos de peso a este título, a exemplo de Júlio Prestes e Juarez Távora. 
           Atitudes como a do atual governo paulista prosperaram em outras fases de nossa era republicana.  A reestruturação do ensino implantada pelo ditador Médici, através da Lei nº 5692 de 1971, fundiu as matérias escolares História e Geografia em uma nova, os Estudos Sociais, cuja ênfase na memorização de dados factuais ocasionou um severo esvaziamento dos conteúdos.  Lembro-me bem, ainda que não tenha localizado referências na Internet, que Fernando Collor, no início de sua gestão, lamentou a preferência, entre os estudantes brasileiros, pelas Ciências Humanas, declarando algo como "a universidade no Brasil não produz riqueza".  
           Não devo me restringir à acusação tão velha quanto verídica de que a direita tende a desvalorizar as disciplinas que favorecem a crítica do status quo, ou a desconstrução de seus valores.  As declarações dos dirigentes citados, e de muitos outros, além, é claro, de suas diretrizes para o setor educacional, formaram e continuam a formar opinião. Com notável frequência, encontramos pessoas completamente apartidárias e desinteressadas pelo jogo eleitoral que veem historiadores, geógrafos, cientistas políticos, antropólogos, sociólogos e filósofos como cultivadores de uma erudição vazia, sem qualquer efeito prático na vida cotidiana. É com aqueles "homens comuns", na verdade, que desejo dialogar sobre a utilidade da História, e não com os agentes intencionais da alienação.
           Evitarei o expediente de construir um texto retórico pontuado por termos-chave como conscientização, politização e cidadania.  Embora isto seja possível, provavelmente seria entediante ao extremo.  Prefiro, então, resgatar para os leitores três processos históricos repletos de diferenças, mas suscetíveis de gerar longas e importantes reflexões.  
                              
                                                                     (...)                         

           Entre julho e setembro de 1683, exércitos turcos que somavam 200 mil homens mantiveram sob cerco a cidade de Viena, capital do Império da Áustria, governado pela dinastia Habsburg.  Os atacantes eram comandados pelo grão-vizir Kara Mustafá, amigo pessoal do sultão Mehmed IV, credenciado por uma notável vitória sobre as tropas polonesas de Jan Sobieski, onze anos antes, em batalha às margens do Rio Dniester.


                          

          
         O imperador austríaco Leopoldo I, abrigado na localidade de Passau, pediu ajuda a outros governantes cristãos.  Recebeu auxílio financeiro do Papa, voluntários do norte da Itália e da Alemanha, soldados dos reinos germânicos da Baviera e da Saxônia.  Contava igualmente com a vinda de Jan Sobieski, agora rei da Polônia, que marchava para o sul a partir da região montanhosa dos Cárpatos.  
        As forças de resistência foram beneficiadas pela ambição de Kara Mustafá, que preferia esperar por uma rendição da cidade, para se apossar de seus tesouros, do que entrar numa Viena em ruínas que pouco teria a oferecer.  Somente no final de agosto, quando os poloneses já haviam chegado ao Danúbio, o grão-vizir ordenou o ataque geral.  A 12 de setembro, os turcos conseguiram explodir parte da muralha vienense, mas àquela altura precisavam lutar corpo a corpo com a infantaria germânica que fustigava seu acampamento.  Quando a cavalaria polonesa atingiu a "cidade de tendas" construída por ordem de Kara Mustafá, o grão-vizir teve que fugir às pressas em direção a Buda, na Hungria, e depois Belgrado, na Sérvia. 
       Para não arcar com o custo político de uma derrota desastrosa, Mehmed IV orientou seu braço direito a devolver os símbolos de sua autoridade civil e militar e, em seguida, "entregar a alma a Alá".  Em 25 de dezembro de 1683, Kara Mustafá foi executado por estrangulamento, com uma corda de arco e flecha, em Belgrado. Os austríacos, por sua vez, recuperaram a estratégica cidade de Esztergom, quebrando o controle turco sobre o médio Danúbio e lançando a base para futuros avanços territoriais¹.
          Decorridos mais de dois séculos e meio, o alemão Alfred Rosenberg, em novembro de 1941, foi promovido a ministro dos territórios orientais ocupados pelo III Reich.  Sua proposta de criar Estados independentes na região, para mobilizar seus povos contra o comunismo, não contou com a aprovação de Adolf Hitler.  O Führer, embora nascido em Braunau am Inn, na Áustria outrora salva por Jan Sobieski, considerava todos os eslavos como seres subumanos, cuja única utilidade seria a de servir às necessidades da raça superior. Assim, houve o fechamento das escolas da Polônia, pois o país deveria se limitar a fornecer trabalhadores braçais.  O Plano Geral do Leste, elaborado pelo comissário Himmler, previa que todos os poloneses, além dos habitantes das nações bálticas e da parte ocidental da União Soviética, sofreriam remoção, dando lugar a colonos germânicos ou "regermanizáveis"².  


                                                                          (...)

            O corsário David Jewett, comandante do navio Heroína, chegou às Ilhas Malvinas em 27 de outubro de 1820, a mando de Manuel de Sarratea, governador de Buenos Aires.  Jewett tomou posse do arquipélago, abandonado pelos espanhóis há nove anos, em nome da autoridade portenha.  Ali foi estabelecida uma pequena colônia argentina, que se dedicou à criação de ovinos. Nomeado comandante militar da localidade de Puerto Soledad em 1829, o comerciante franco-alemão Luis Vernet proibiu a caça da baleia nas Malvinas, medida que não funcionou, pela falta de homens e barcos para efetuar a repressão.  Dois anos depois, o presidente Rosas revogou a proibição, criando em seu lugar um imposto que deveria ser pago pelas embarcações pesqueiras. Os capitães dos baleeiros, porém, passavam ao largo de Puerto Soledad ignorando o fisco argentino. Confrontado com a ampliação das atividades ilegais, Luis Vernet apreendeu três navios norte-americanos que carregavam peles de foca.





             A revanche não tardou: em 28 de dezembro de 1831, a fragata Lexington, da marinha dos Estados Unidos, atacou Puerto Soledad, destruiu a artilharia e a munição da guarnição argentina e capturou seis de seus oficiais.  Rosas, através do ministro Maza, das Relações Exteriores, apresentou um protesto oficial e expulsou de Buenos Aires o cônsul norte-americano Slacum e seu compatriota Bayles, encarregado de negócios.  Antes de sair do país, a dupla alertou a representação britânica a respeito da vulnerabilidade das ilhas.  Um ano mais tarde, exatamente a 2 de janeiro de 1833, a corveta inglesa Clio, sob o comando do capitão John James Onslow, desembarcou nas Malvinas. Impossibilitado de resistir, o governador provisório Pinedo se curvou à ordem de expulsão e retornou a Buenos Aires.  Os britânicos simplesmente deixaram sem resposta as reclamações subsequentes de Rosas³. 
         Cento e cinquenta anos após o ataque norte-americano a Puerto Soledad, ascendeu à presidência da Argentina o general Leopoldo Fortunato Galtieri, homem afinado com as metas de Ronald Reagan a ponto de conseguir, no início de sua administração, o fim das sanções impostas a Buenos Aires pelas violações dos direitos humanos.  Galtieri ordenou a retomada das Malvinas, realizada em 2 de abril de 1982, sob os aplausos da comunidade latino-americana em geral, mas enfrentando a reprovação do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que declarou a Argentina como "nação agressora".  Os militares argentinos tentaram em vão pressionar o governo Reagan, que adotou a princípio a posição de mediador do conflito, a ficar do seu lado, invocando o TIAR (Tratado Interamericano de Assistência Recíproca).  Quando uma força-tarefa britânica chegou à região das Malvinas, em fins de abril, o governo dos Estados Unidos abandonou a mediação.  O Senado de Washington votou novas sanções econômicas contra a Argentina e ofereceu apoio logístico à Grã-Bretanha.  As tropas argentinas se renderam incondicionalmente, em 14 de junho, e a renúncia de Galtieri foi exigida por seus próprios companheiros de generalato4.  Tal como no século XIX, os norte-americanos tomaram partido de sua ex-metrópole contra os portenhos.  

                                                                        (...)

         O sertanista baiano Fernão Carrilho, agindo sob as ordens do governador da capitania de Pernambuco, Dom Pedro de Almeida, comandou uma expedição que, entre setembro de 1677 e fevereiro de 1678, causou graves danos aos quilombolas de Palmares. As investidas contra vários mocambos possibilitaram a captura de mais de cem pessoas, entre elas vinte parentes do rei Ganga Zumba. Nesta conjuntura vantajosa para as autoridades coloniais, um novo governador, Aires de Souza de Castro, que assumiu a administração da capitania em abril de 1678, firmou um tratado de paz com Ganga Zumba.
         O chefe palmarino, com uma comitiva de quarenta pessoas, chegou a Recife em novembro, sendo nomeado "mestre de campo de toda a sua gente".  Dois de seus filhos foram adotados pelo governador.  Quatrocentos seguidores de Ganga Zumba rumaram para a área do Cucaú, situada a 32 quilômetros de Serinhaém, onde ficavam terras que lhes caberiam segundo o tratado. Embora os quilombolas tenham recebido a liberdade e o perdão da Coroa, este critério não se aplicava a todos: os fugitivos dos engenhos deveriam ser devolvidos aos proprietários.  Enquanto isso, a região da Serra da Barriga, na qual antes se concentravam os palmarinos, foi dividida entre soldados e senhores que tinham apoiado a expedição de Carrilho.
           O Conselho Ultramarino, instalado em Lisboa, aprovou as cláusulas do tratado em parecer datado de 26 de janeiro de 1680.  Contudo, Cucaú se revelou uma experiência política fracassada. Apesar de terem prestado auxílio a diversas expedições punitivas contra Zumbi, que colocara sob sua liderança os mocambos insubmissos, os ex-quilombolas eram alvo dos mesmos soldados e sertanistas que pouco antes tinham forçado sua rendição.  Eles entravam em Cucaú em busca de fugitivos, destruíam roças e, nos termos de Silvia Hunold Lara, "punham em risco as trocas comerciais com os moradores da vizinhança".  Como o acordo que "pacificou" os adeptos de Ganga Zumba não passara pelo crivo das câmaras municipais, certos proprietários se queixavam de que os negros haviam ficado com as melhores terras.
      As disputas internas ocorridas em Cucaú resultaram numa conspiração e no envenenamento de Ganga Zumba.  Um dos filhos do líder morto, que tomava parte nas negociações com Zumbi, atuou também na repressão das tropas coloniais aos amotinados.  Após três meses de combate, a resistência acabou sufocada: os quase 200 prisioneiros sofreram a pena de servidão perpétua, sendo repartidos entre grandes fazendeiros. Um alvará emitido em Lisboa no dia 10 de março de 1682, com o intuito de solucionar as pendências jurídicas geradas pelo processo de reescravização, sequer mencionava o nome Cucaú5. 
      Os episódios relacionados a Palmares e Cucaú são quase inteiramente ignorados pelos brasileiros, que em sua maioria retêm apenas a imagem construída no Ensino Fundamental de Zumbi como um guerreiro meio mítico que foi decapitado, ou, numa perspectiva inspirada por Luiz Mott e Leandro Narloch, um cruel homossexual escravagista que precipitou o fim do maior quilombo das Américas.  Não é de espantar, portanto, que a submissão completa aos interesses dos ricos e poderosos, dos quais se espera uma improvável benevolência, ou apenas um pouco de migalhas e de sossego, seja a opção política preferencial de milhões. 
          O estudo da História, além de bastante útil, é vital.      
                                          
                          
Notas
1-Ver Alan Palmer.  Declínio e queda do Império Otomano.  São Paulo: Globo, 2013, p. 8 a 14.  
2-Cf. Roderick Stackelberg.  A Alemanha de Hitler: origens, interpretações, legados.  Rio de Janeiro: Imago, 2002, p. 270.             
3- Ver Felipe Pigna. Los mitos de la historia argentina 2.  Buenos Aires, Planeta, 2004, p. 197 a 199. 
4- Ver Luis Alberto Romero.  História contemporânea da Argentina.  Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 217 a 223. 
5- Cf. Silvia Hunold Lara.  Marronage et pouvoir colonial.  Palmares, Cucaú et les frontières de la liberté au Pernambouc à la fin du XVIIe siècle.  Annales, 67 n. 3, p. 639-662.
           


4 comentários:

  1. Olá! Achei importante o seu texto - gostei muito - e queria postar em meu blog, se autorizar. O nome do Blog é 'História e Ciências' - (historcien.blogspot.com). Obrigado!

    ResponderExcluir
  2. Quem é Gustavo Moreira?

    ResponderExcluir