segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Falácias sobre a Palestina

O autor do blog, em foto de 2007, expressa seu apoio à causa palestina

       
       Eu começava a alinhar os argumentos que formariam este artigo, em minha sala de jantar, quando me deparei com a figura de Heraldo Pereira, do Jornal Nacional, repetindo em horário nobre frases visivelmente traduzidas do noticiário "metropolitano" sobre o "grupo radical Hamas". Não pude deixar de recordar, com certa dose de ironia e também de  irritação, que há cerca de duas décadas "nossa" mídia burguesa classificava o atual chefe de governo de Israel, Benjamin Netanyahu, como um político extremista, partidário da colonização israelense na Cisjordânia. Netanyahu mudou, desde então? Compreendi, naqueles instantes, a motivação dos arroubos retóricos de Paulo Henrique Amorim contra Pereira, em episódios relativamente recentes que tiveram desdobramentos na Justiça.
     Paremos, agora, de perder tempo com o entediante jornalista conservador, que na verdade apenas cumpre à risca o que lhe ordenam os Marinhos, com prováveis ajustes pontuais de autoria de Ali Kamel, para encontrar nosso foco na detestável orientação seguida por todos os grandes jornais impressos e televisivos do país no que diz respeito ao Oriente Médio.  Não obstante as atrocidades que venha a cometer, qualquer governo israelense é tratado como uma entidade responsável e respeitável que reage de pronto às agressões de "extremistas", "radicais" e "terroristas"; mesmo que propósitos segregacionistas ou genocidas embutidos nas ações militares israelenses sejam condenados por uma maioria esmagadora da comunidade diplomática internacional, milhões de salas de jantar de todos os municípios brasileiros são quase diariamente invadidas por versões em que prevalecem as cínicas desqualificações do governo norte-americano contra os protestos árabes, europeus, africanos, asiáticos e latino-americanos. Com frequência, tais matérias são encerradas com informações que remetem a uma mensagem bastante óbvia: não importando o mérito de suas políticas contra os palestinos, Israel contará com o apoio dos Estados Unidos e sempre vencerá.
          Levando em consideração a correlação de forças vigente, é válido perguntar o que pode um blogueiro de esquerda, ou ainda todo o conjunto dos blogueiros de esquerda, atuando de maneira coordenada, contra interesses tão claramente hegemônicos no hemisfério ocidental.  Um artigo no História & Política, diria um detrator ou um simples observador desinteressado, não tem contra os ecos do Jornal Nacional sequer o impacto de um míssil Qassam; é algo como uma pequena pedra atirada contra uma divisão de tanques.  Entretanto, digo eu que é uma pedra que merece ser atirada, mesmo que alerte somente algumas centenas de pessoas contra a desinformação predominante.               
       Partindo da percepção do caráter tendencioso da cobertura midiática, devo destacar que em diversos espaços da Internet o respaldo a Israel, muitas vezes associado a uma visão religiosa "guerreira", assume feições ainda mais selvagens. Estabeleço, em um primeiro momento, contraponto a um artigo que localizei no site de Matheus Zandona, cuja redação é atribuída a Joseph E. Katz, que combina uma série de balelas e distorções da realidade para convencer os leitores de que os israelenses são os legítimos donos de toda a Palestina, e até de outras regiões vizinhas, e os palestinos intrusos sem identidade:        
http://ensinandodesiao.org.br/artigos-e-estudos/historia-e-significado-de-palestina-e-palestinos/

       Katz e seu divulgador Zandona tentam, a princípio, difundir a noção de que após a Diáspora judaica a Palestina se transformou em uma espécie de "terra de ninguém", pronta a receber de volta, em lugar indeterminado do futuro, seu "povo escolhido":      
           
“Palestina” nunca foi o nome de uma nação ou estado. É na verdade um termo geográfico utilizado para designar uma região abandonada ao descaso desde o século II d.C. 

         Tamanha falácia provocaria, logo de entrada, a fúria de qualquer especialista no estudo dos impérios Romano e Bizantino.  A ideia de que uma região tão estratégica do Mediterrâneo Oriental, limítrofe com Egito e Síria e aproximada por mar da Grécia e da Ásia Menor, tenha ficado abandonada ou despovoada após a destruição da autonomia dos judeus por Roma é no mínimo ridícula.  Avançando um pouco mais na linha do tempo, percebemos através destas linhas de Albert Hourani que, ao ser conquistada pelos árabes, a Palestina cedo se converteu em uma área de enorme importância para o Islã:            

Os lugares santos dos judeus e cristãos ainda tinham poder sobre a imaginação dos novos governantes: 'Umar visitou Jerusalém depois que ela foi capturada, e Mu'awiya ali foi proclamado califa.  Então, na década de 690, ergueu-se a primeira grande edificação a afirmar que claramente que o Islã era distinto e ia perdurar.  Foi o Domo da Rocha, construído no local do Templo judeu em Jerusalém, agora transformado num haram muçulmano; seria o ambulatório para peregrinos em torno da rocha onde, segundo a tradição rabínica, Deus intimara Abraão a sacrificar Isaac¹.

         Pela narrativa do cristão árabe Amin Maalouf, pesquisador das Cruzadas, fica claro que, no início daquele processo histórico, o território palestino era regularmente povoado por comunidades muçulmanas que identificavam os europeus como invasores: 

Na Palestina, a maioria das cidades e das aldeias é evacuada pelos seus habitantes antes mesmo da chegada dos franj.  Em nenhum momento estes encontram uma verdadeira resistência, e na manhã de 7 de junho de 1099, os habitantes de Jerusalém já os podem ver aparecer ao longe, sobre a colina, perto da mesquita do profeta Samuel².

           Retornando a Hourani, somos informados de que no período sob domínio mameluco (após a expulsão dos cruzados) Jerusalém constituía um importante centro educacional do mundo islâmico: 

(...) a madrasa de Tankiziyya em Jerusalém, dotada durante o período mameluco, tinha quatro salões (iwan) que se abriam para um pátio central, um para o ensino do Hadith, outro da lei hanafita, outro do sufismo, enquanto o quarto era uma mesquita.  A dotação mantinha quinze estudantes da lei, vinte do Hadith e quinze do sufismo, e professores de cada assunto; os estudantes deviam dormir na madrasa, e havia também um asilo para doze viúvas³.

        Joseph Katz invoca, como se isto sustentasse o seu delírio, um parágrafo atribuído ao romancista Mark Twain, que aponta para a existência de uma Palestina quase desabitada em pleno século XIX:

“Não há sequer uma vila em toda a extensão do vale chamado Jezreel, nem mesmo em um raio de 50 Km. Viajamos quilômetros sem encontrar uma alma sequer. Nazaré está abandonada, Jericó é uma ruína que se desfaz; Belém e Betânia, na sua pobreza e humilhação, não é desejada por qualquer criação (…). Um país desolado cujo solo é bastante rico, mas é dado inteiramente a ervas inúteis (…) uma expansão silenciosa, pesarosa (…) uma desolação (…). Nunca vimos um ser humano durante todo o caminho. A Palestina encontra-se vestida em pano de saco e cinzas…”.
Mark Twain, “The Innocents Abroad”, 1867.

           Real ou fictícia, a narrativa de Twain não se mantém diante do quadro exposto por Alan Palmer, um dos maiores estudiosos do Império Otomano, a respeito da Palestina do século XIX, ainda sob controle turco: 


Em contraste com outras terras árabes no Levante e a despeito do perfil cosmopolita de Jerusalém, na virada do século [XX], a Palestina era invulgarmente homogênea, o povo com esmagadora maioria de fé sunita.  De modo geral, eram bons e e leais otomanos, e o sultão Abdulhamid se dispunha a ouvir seus representantes com especial simpatia, admitindo alguns árabes mais preparados em cargos de confiança em Yildiz.  Na Terra Santa, os árabes também eram um povo antigo, como os judeus.  Podiam alegar a descendência de comunidades que lá viviam por dez ou mais séculos, remontando, talvez, aos cananeus da Bíblia.  O governo otomano temia que, se milhares de aldeões judeus pobres da Rússia convergissem para aquela região tão sensível, provocariam um conflito permanente com os árabes e seriam um ônus para as colônias judias já existentes, algumas lá instaladas havia mais de trinta anos.  Portanto, quando, em 1891, Abdulhamid recebeu o primeiro pedido de notáveis árabes de Jerusalém para que acabasse com a imigração judia e a compra de terras, dispensou ao pedido atenta consideração4.  


          Ainda sobre o período otomano, é relevante esta nota de Albert Hourani a respeito de Solimão, O Magnífico, que reinou durante o século XVI: 

Também na cidade santa de Jerusalém, o sultão Suleiman deixou sua marca, nos azulejos das paredes externas do Domo da Rocha, e nos grandes muros que cercavam a cidade5.

           O mesmo autor fornece alguns dados sobre a inclusão da Palestina na administração formal dos territórios turcos:

As províncias sírias de Alepo, Damasco e Trípoli tinham de ser controladas diretamente, devido às suas receitas, ao lugar de Alepo no sistema internacional de comércio, ao de Damasco com um dos centros a partir dos quais se organizava a peregrinação, e ao de Jerusalém e Hebron como cidades santas (Jerusalém, lugar de onde se acreditava que o Profeta ascendera ao Céu em sua viagem noturna; Hebron, o túmulo do patriarca Abraão)6.

      O palestino Dawoud El-Alami nos revela o perfil demográfico da região em uma determinada altura do século XIX: o percentual de judeus, nativos e/ou emigrados, era inferior até ao dos cristãos de língua árabe: 

Por volta de 1888, a Palestina estava dividida em três Sanajek (distritos) principais.  O Sanjak de Jerusalém, que compreendia a metade sul do país e era, por causa de sua importância, governado diretamente por Constantinopla.  Os outros dois Sanajek, Nablos e Akka, eram parte da Vilayet de Beirute.  A Jordânia constituía uma parte da Vilayet da Síria, com Damasco como capital.  Nessa época, a população da Palestina nesses três distritos era de aproximadamente seiscentos mil habitantes, dos quais cerca de 10% eram cristãos, 4% judeus e a maioria era de muçulmanos sunitas7.


       Os números de El-Alami são compatíveis com as cifras indicadas por Alan Palmer para um período imediatamente posterior:

Na época em que o Kaiser Wilhelm II visitou os três vilayets [províncias] que geograficamente constituíam a Palestina, a população árabe superava a judia na proporção de dez para um8.

                                                                        (...)

Na Palestina, a população judia cresceu de apenas 24 mil em 1880 (quase metade do número de judeus em Londres) para 49 mil em 1903 e 90 mil na eclosão da Primeira Guerra Mundial, quando, na mesma região, se admitia existirem 500 mil árabes.  Em 1882, tão logo começou a imigração em larga escala, as autoridades otomanas adotaram medidas para impedir a entrada de judeus vindos da Rússia e doutras partes da Europa pelos portos de Latakia, Beirut, Haifa e Jaffa9.


        Mesmo se expondo a fáceis desmentidos, Katz e seu papagaio brasileiro prosseguem no falseamento da História:   

O mito atual é que estes árabes há muitos séculos já estavam estabelecidos na Palestina, até que vieram os judeus e os “desalojaram” em 1948. Mas na verdade a imigração recente de árabes para a Palestina foi que “desalojou” os judeus. 

           Contra isto, basta o depoimento do rabino Dan Cohn-Sherbok, cujos argumentos em livro já referenciado nas notas formam um contraponto aos do palestino El-Alami: 


Simultaneamente, povoamentos judeus continuavam a ser criados na Palestina.  Em 1914, um grupo do Hovevei Zion da Rússia fundou Nahalat Yehuda (A Herança de Yeruda), ao norte de Rishon le-Zion. Nessa fase, havia aproximadamente noventa mil judeus vivendo na Terra Santa, dos quais 75 mil eram imigrantes. Nos anos que se seguiram à criação do Fundo Nacional Judeu no início do século, quarenta e três colônias tinham sido criadas com uma população de 120 mil.  A maioria dessas pessoas que tinha emigrado para a Palestina era da Rússia e da Romênia- eles trabalhavam a terra como fazendeiros ou como trabalhadores agrícolas ou eram empregados como lojistas, artesãos ou operários.  Em contraste, o número de árabes na Palestina era de cerca de meio milhão10.

         Honestamente, Cohn-Sherbok admite que as migrações impulsionadas pelo sionismo não apenas incomodavam o governo otomano, como provocavam a reação articulada, inclusive no plano institucional, dos árabes da Palestina: 

Ansiosa com o influxo de colonos judeus, a população árabe começou a se engajar em atividades políticas.  Dois árabes de Jerusalém foram eleitos para o parlamento otomano em Constantinopla como anti-sionistas.  No verão de 1914, o governo turco impôs medidas rígidas para impedir a imigração judaica11.


          Ainda segundo Cohn-Sherbok, apesar do forte fluxo migratório era este o panorama demográfico da Palestina em 1918:

Por causa da guerra [A Primeira Guerra Mundial], toda a população da Palestina, inclusive os judeus, muçulmanos e cristãos, sofreu consideravelmente.  A população total caiu de cerca de oitocentos mil, em 1914, para 640 mil, sendo constituída de aproximadamente 512 mil muçulmanos, 66 mil judeus e 61 mil cristãos12.

       As fantasias da dupla Katz/Zandona parecem chegar ao ápice neste trecho, em que a imigração dos judeus europeus é apresentada como um grande benefício aos próprios árabes: 

A restauração da terra “desolada” e “não desejada” começou na segunda metade do século XIX, com os primeiros pioneiros judeus. O trabalho realizado por estes pioneiros criou novas e melhores condições e oportunidades, o que acabou por atrair outros imigrantes de várias partes do Oriente Médio, tanto árabes quanto outros.
            A propaganda falaciosa não resiste a cinco linhas de Albert Hourani:


Apesar da oposição do governo otomano e da crescente ansiedade entre parte da população árabe local, em 1914 a população judia da Palestina tinha aumentado para aproximadamente 85 mil, ou 12% do total. Cerca de um quarto deles assentara-se na terra, parte dela comprada por um fundo nacional e declarada propriedade inalienável do povo judeu, em que não se podiam empregar não judeus13.

            Os limites do progressismo dos colonos judeus, aliás, são reconhecidos por Dan Cohn-Sherbok: 


Durante os anos de 1920-21, houve graves dúvidas sobre a possibilidade de se fundar uma Pátria judaica conforme proposta na Declaração Balfour.  Embora [Herbert] Samuel buscasse criar instituições representativas na Palestina, a população judaica temia essas instituições, uma  vez que os judeus constituíam apenas 11% da população palestina.  Além disso, a taxa de natalidade dos árabes era mais alta do que a dos judeus.  Nessas condições, parecia certo que os árabes seriam maioria em qualquer instituição que fosse criada- e essa situação inevitavelmente prejudicaria o programa sionista14.

          Retomarei, o mais breve possível, reflexões que não podem ser desenvolvidas por completo no espaço de uma só postagem.  Peço aos fãs do blog que continuem divulgando, nesta fase em que a visibilidade das páginas virtuais não pagas permanece bastante reduzida.            


Notas
1- Albert Hourani.  Uma história dos povos árabes.  São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 46.
2- Amin Maalouf. As Cruzadas vistas pelos árabes.  São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 54.
3- Hourani, p. 175. 
4- Alan Palmer.  Declínio e queda do Império Otomano.  São Paulo: Globo, 2013, p. 194/195.
5- Hourani, p. 246. 
6- Idem, p. 234.
7- Dawoud El-Alami.  Uma perspectiva palestina.  In: O conflito Israel-Palestina: para começar a entender... /Dan Cohn Sherbok e Dawoud El-Alami. São Paulo: Editora Palíndromo, 2005,  p. 122.
8- Palmer, p. 193.
9- Idem, p. 194.
10- Dan Cohn-Sherbok.  Uma perspectiva judaica.  In: O conflito Israel-Palestina: para começar a entender... /Dan Cohn Sherbok e Dawoud El-Alami. São Paulo: Editora Palíndromo, 2005,  p. 37-38.
11- Idem, p. 38.
12- Ibidem, p. 40.
13- Hourani, p. 292-293.
14- Dan Cohn-Sherbok, p. 43.


2 comentários:

  1. cara, seu blog é incrível. nada melhor do que uma boa dose de história para quebrar alguns mitos que os conservadores adoram construir e espalhar através da mídia.
    abraço

    ResponderExcluir
  2. Excelente texto! Otima oportunidade de entender um pouco da historia por tras de todo esse conflito eterno! Aguardando mais textos! Abracos!

    ResponderExcluir