terça-feira, 5 de agosto de 2014

Ainda sobre a Palestina: desconstruindo outras mentiras de Joseph Katz


 
         
         Retorno à crítica, iniciada ontem, de um texto de Joseph Katz, reproduzido no site de Matheus Zandona Guimarães, repleto de fraudes e distorções sobre a História da Palestina:

http://ensinandodesiao.org.br/artigos-e-estudos/historia-e-significado-de-palestina-e-palestinos/

          Fazendo uso de argumentos falaciosos, Katz pretende induzir o leitor a acreditar não apenas que toda a Palestina sob mandato britânico estaria destinada à construção de um Estado judeu, como também a vizinha Jordânia.  A instauração de um Israel ampliado, desta maneira, teria sido inviabilizada somente pela perversidade do colonialismo inglês.       

A Declaração Balfour, de 1917, confirmada pela Liga (ou Sociedade) das Nações, comprometeu o governo britânico aos princípios que “o governo de vossa majestade vê com favor o estabelecimento, na Palestina, de um Lar Nacional Judaico, e fará uso de seus melhores recursos para facilitar a materialização deste objeto (…)”. Ficou então determinado o controle britânico sobre toda a região e que a área seria aberta à criação de assentamentos judaicos. Também determinou-se que os direitos de todos os seus habitantes (já residentes na região) seriam preservados e protegidos. O Mandato Britânico na Palestina originalmente incluía tudo o que é hoje a Jordânia, bem como o que hoje é Israel e os territórios entre eles. No entanto, quando o “protégé” britânico Emir Abdullah foi forçado a abandonar seu domínio hashmaíta na Arábia, os britânicos criaram para ele uma região alternativa para seu reino, localizada ao leste do rio Jordão. Não havia nenhum nome árabe para a região, assim os ingleses a chamaram de “além do Jordão”, ou “Trans-Jordânia”; posteriormente apenas “Jordânia”. Com esta manobra política, que violava todas as regras estipuladas pela Declaração Balfour e pelo Mandato Britânico, os ingleses retiraram 75% da região destinada a ser o “Lar dos Judeus”, como havia declarado a rainha. Não foi permitido que nenhum judeu habitasse na região da Trans-Jordânia (ou Jordânia). Menos de 25% permaneceu da Palestina original do Mandato Britânico, destinado aos “assentamentos judaicos” prometidos pelos ingleses. Além disso, eles restringiram a imigração judaica na região e impuseram restrições quanto ao local onde os judeus poderiam trabalhar, viver, construir ou plantar. Na verdade, as regiões mais deploráveis da então Palestina britânica foram destinadas aos judeus, como os pântanos da Galiléia e as regiões infestadas de malária como Jafa e Tel-Aviv.
           Entretanto, Alan Palmer, em sua obra sobre a decadência do poderio turco, deixa evidente que  a ideia da unidade entre as terras situadas a leste e oeste do Jordão após a Primeira Guerra é falsa, visto que nem mesmo o controle inglês sobre ambas as partes foi determinado na mesma ocasião.   

Quando a Liga [das Nações] começou a funcionar, o Iraque, a Palestina e, mais tarde, a Transjordânia se tornaram mandatos ingleses, enquanto após renhida discussão entre Paris e Londres, a França recebeu o mandato da Síria e do Líbano¹. 

           Outro especialista na História do Oriente Médio, mencionado em meu artigo anterior, reforça a ideia de que a margem leste do Jordão não estava incluída no plano de criação do Estado judeu:
Ao sul da área do mandato francês, na Palestina e na terra a oeste dela, a Grã-Bretanha manteve o mandato.  Devido à obrigação assumida na Declaração Balfour e repetida no mandato, de facilitar a criação de um lar nacional judeu, os britânicos governavam a Palestina diretamente; mas a leste dela, estabeleceu-se um Principado da Transjordânia, governado por outro filho de Husayn, 'Abdullah (1921-51), sob mandato britânico mas sem obrigação em relação à criação do lar nacional judeu². 

        O repertório de balelas de Joseph Katz parece não conhecer limites: em um breve trecho, ele expõe duas teses no estilo que alguns reacionários gostam de rotular como "vitimismo":        
Em 1939, os ingleses decidem proibir toda imigração Judaica para a “Palestina”, algo que era constante desde o século XVIII na região. Esta proibição foi feita no momento em que os Judeus mais precisariam, uma vez que o Nazismo estava fortemente se estabelecendo na Europa e milhões de judeus estavam sendo perseguidos. Milhares que conseguiam escapar dos campos de concentração e tentaram ir para Israel, foram mandados de volta para o inferno, novamente para as câmaras de gás na Europa.
         A primeira sentença, tecnicamente falando, é  uma completa mentira: o rabino Dan Cohn-Sherbok, cuja obra também citei na matéria anterior, revela que, apesar da imposição de certas restrições, a administração britânica não suspendeu a imigração judaica para a Palestina; ao invés disto, foram estabelecidas cotas bastante significativas, se considerada a população total da região naquela época:    

Em 17 de março de 1939, dois dias depois de Hitler ocupar Praga, a conferência terminou sem que houvesse acordo entre as várias partes.  Em maio de 1939, um outro Documento Branco foi publicado, o qual designava as regras da separação e da criação de um Estado judaico.  Todavia, ele decretava que um Estado palestino seria criado em dez anos e que após cinco anos a imigração judaica não seria mais permitida, a não ser que os árabes palestinos aprovassem.  Apesar dessa tendência antijudaica, o Documento Branco permitia que mais 75 mil judeus se estabelecessem na Palestina durante o período de cinco anos e que a independência de um Estado palestino dependia de salvaguardas para a comunidade judaica³. 

            Mais deplorável ainda é o intuito de utilizar o Holocausto como apelo emocional para reforçar as razões que lhe faltam.  Os judeus perseguidos pelo nazismo em 1939 não poderiam ser devolvidos às câmaras de gás, simplesmente porque tais instalações não existiam.  Entraram em operação somente no segundo semestre de 1941, como notamos pela narrativa de Roderick Stackelberg (logo abaixo). É certo que, para qualquer observador europeu sensato que vivesse em 1939, um eventual genocídio dos judeus pelos nazistas seria uma possibilidade real, e até esperada.  Porém, carece de sentido insinuar que uma possível culpa das autoridades inglesas pelo extermínio de judeus praticado por alemães deveria ser reparada com a cessão de territórios habitados por árabes!     
Ao final do verão de 1941, experimentos com gás venenoso foram realizados pela SS em vários locais da Europa Oriental.  O monóxido de carbono já fora usado no programa clandestino de eutanásia, que tinha o codinome de T-14, dirigido por Philip Bouhler, da chancelaria do Führer, a partir de outubro de 1939.  Em diversas instituições para deficientes físicos e mentais, as mortes por gás ocorriam em câmaras especialmente construídas, com a aparência de chuveiros.  A experiência adquirida no programa de eutanásia foi aproveitada na guerra contra os judeus.  Câmaras de gás móveis, instaladas em caminhões fechados, foram usadas para matar as esposas e filhos de reféns judeus na Sérvia, em outubro de 1941.  No mesmo mês, começaram os preparativos para o uso de câmaras de gás móveis em Chelmno (que os nazistas chamavam e Kulmhof), 65 quilômetros a noroeste de Lodz, no território ocidental polonês, incorporado ao Reich como Warthegau.  Chelmno foi o primeiro dos seis centros nazistas de extermínio na Polônia a entrar em operação.  Mais de 150.000 judeus, a maioria do gueto de Lodz, foram mortos por gás em Chelmno, em 1942 4.  

         Adiante, Katz se queixa de que o rápido aumento da população árabe, por ele compreendida, sem dúvida, como intrusa, derivaria de uma suposta imigração ilegal.  Poderíamos, a princípio, contestar seus juízos de valor, quando tenta estabelecer o que seria imigração ilegal em uma área sujeita a relações de protetorado.  Por que, afinal, a vinda de judeus da Rússia, da Polônia e de outras partes da Europa para a Palestina seria mais justificável do que a simples mudança de árabes de um lado para o outro do Jordão?  Esta reflexão se torna mais oportuna na medida em que sabemos que para Katz a identidade palestina é um engodo!  Além disto, se projetássemos, talvez, uma taxa de crescimento demográfico em torno de 3% para os árabes palestinos ao longo da primeira metade do século XX, nada incompatível com sua alta natalidade, chegaríamos a um resultado final até superior ao do histriônico propagandista!     
Mas ao mesmo tempo em que os britânicos proíbem a imigração judaica, eles permitem ou ignoram a imigração ilegal de milhares de árabes da Jordânia (chamada de Palestina Oriental), Síria, Egito e de várias partes do norte da África. Em 1939, Winston Churchill declara que “…longe de serem perseguidos, os árabes invadiram a região e se multiplicaram…!” Estatísticas exatas da população da região na época são problemáticas, mas sabe-se que em 1947 o número de árabes ao oeste do Jordão triplicou em comparação a 1900.
         Calculo, em contrapartida, o que pensavam os palestinos já engajados na luta contra o sionismo desde os tempos do esfacelamento do Império Otomano, a respeito da possibilidade de se converterem numa minoria em consequência de um processo migratório deflagrado a partir da Europa e contra a sua vontade, conforme depreendemos destas informações de Albert Hourani:

Na Palestina, a aquisição de terra para imigrantes judeus europeus, que começara durante fins do século XIX, continuou dentro do novo sistema de administração estabelecido pela Grã-Bretanha como governo mandatário.  A imigração judia foi encorajada, dentro de limites determinados em parte pela estimativa governamental do número de imigrantes que o país podia absorver num dado momento, e em parte pelo volume de pressão que os sionistas ou árabes podiam aplicar sobre o governo em Londres.  A estrutura da população do país mudou muito nesse período.  Em 1922, os judeus contavam cerca de 11% de uma população total de três quartos de milhão, sendo o resto sobretudo muçulmanos e cristãos de língua árabe; em 1949, formavam mais de 30% de uma população que duplicara5. 
        Associando dados de Hourani e Dan Cohn-Sherbok, concluímos que os judeus, no curto intervalo de menos de uma geração, compreendido entre 1926 e 1948, quintuplicaram seus efetivos na Palestina.  Só nos resta, assim, formular a pergunta: que mal houve na multiplicação dos árabes por três, salvo a adoção de uma perspectiva francamente racista?    
Depois da imigração maciça da Polônia e da Rússia em 1925, relativamente poucos judeus chegaram à Palestina.  Entre 1926 e 1931, a população judaica aumentou apenas de 149.640 para 174.606.  Ao mesmo tempo, a população árabe saltou de 675.450 para 759.700  [6]. 
Contra isso [a diminuição do número de estrangeiros em países árabes], houve uma grande movimentação de judeus tanto da Europa quanto do Oriente Médio e Magreb para o novo Estado de Israel, cuja população judia aumentou de 750 mil em 1948 para 1,9 milhão em 1960  [7]. 
      Merece registro, igualmente, a tentativa desastrada de mostrar as nações árabes como irmãs desprovidas de solidariedade, explícita em um parágrafo que beira a estupidez: 
Após o término da Guerra [de 1948] e a vitória de Israel, os árabes que permaneceram se tornaram cidadãos de Israel, e os que abandonaram suas casas esperando a destruição dos judeus foram rejeitados pelos países árabes das fronteiras onde estavam refugiados. Egito, Jordânia, Síria e Líbano fecharam suas portas para seus irmãos árabes, dando início ao que conhecemos hoje como os “Refugiados Palestinos”.
     O naufrágio cognitivo é berrante: se todos os vizinhos tivessem fechado as fronteiras aos palestinos expulsos, como eles teriam se transformado em refugiados? Não importando o juízo que façamos da "inteligência" de Katz, o fato é que as estatísticas mais uma vez insistem em desmenti-lo.   Albert Hourani lembra que os palestinos se abrigaram na Jordânia em quantidade tão grande que suplantaram a própria população do país fronteiriço, o que, aliás, não representa novidade para os leitores e telespectadores de jornais que acompanham as notícias do Oriente Médio. Dan Cohn-Sherbok confirma que a Jordânia foi o refúgio principal dos palestinos desalojados.         

Na Jordânia, havia uma situação semelhante, de um regime ansioso por ajuda contra perigos externos- dos vizinhos árabes, e também de Israel- mas sob pressão da opinião pública nacionalista.  Depois de 1948, o país ficou com uma maioria de palestinos, que encaravam Israel como seu principal inimigo e vigiavam para ver algum sinal de que o país fazia concessões aos israelenses8. 
Quando a segunda trégua foi estabelecida [1948], mais de meio milhão de refugiados árabes tinha fugido do território israelense.  Embora alguns tivessem sido expulsos, um grande número, inclusive a liderança palestina árabe, partiu por conta própria.  A maioria dos refugiados foi para a Jordânia9.  Outros escaparam para a Faixa de Gaza. 

          Ainda por intermédio de Cohn-Sherbok, constatamos que havia mais de três milhões de palestinos na década de 1960, para frustração dos lunáticos que insistem em negar a existência de uma nação palestina.  Daquele contingente, quase a metade vivia, por efeito dos deslocamentos forçados em maior ou menor grau, em  outros países árabes. 
Depois da Guerra dos Seis Dias, havia quase o mesmo número de palestinos vivendo sob o domínio israelense (1,6 milhão), quanto os que viviam fora do Estado de Israel (1,5 milhão).  Desses que viviam fora de Israel, 644 mil residiam na Jordânia (Margem Oriental); 288 mil, no Líbano; 183 mil, na Síria; 39 mil, no Egito; 194 mil, no Kuwait; 59 mil, na Arábia Saudita; 35 mil no Iraque; e 67 mil, em outros países10. 

            Prosseguirei no tema, avaliando algumas de suas repercussões na política brasileira. 

Notas:

1- Alan Palmer.  Declínio e queda do Império Otomano.  São Paulo: Globo, 2013, p. 247.
2- Albert Hourani. Uma história dos povos árabes.  São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 321.  
3- Dan Cohn-Sherbok.  Uma perspectiva judaica.  In: O conflito Israel-Palestina: para começar a entender...  São Paulo: Editora Palíndromo, 2005, p. 54.  
4- Roderick Stackelberg.  A Alemanha de Hitler: origens, interpretações, legados.  Rio de Janeiro: Imago, 2002, p. 311.
5- Albert Hourani.  Uma história dos povos árabes.  São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 325.
6- Cohn-Sherbok, p. 54. 
7- Hourani, p. 377. 
8- Idem, p. 367  
9- Cohn-Sherbok, p. 66.
10- Idem, p. 79.






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