sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Carta ao pregador do terceiro turno




                        Nota publicada no site do Clube Militar sobre a última eleição presidencial


Desafortunado coxinha,

          Quando você proclamou, em 27 de outubro, a nulidade das eleições presidenciais a partir da montagem de quinta categoria que simulava uma zerésima impressa com 400 votos para Dilma, conseguiu me causar um pouco de tédio e irritação, ainda que sua atitude fosse até certo ponto previsível.  Seria possível que alguém não percebesse os números mal alinhados, o zero único conferido a Aécio (enquanto todas as outras cifras tinham quatro algarismos), a discrepância entre os tais 400 votos e a falta de registro dos votos nominais?  Estaríamos diante de um caso de paralisia temporária das atividades mentais, provocada pelo choque com a derrota do PSDB, ou de mera desonestidade, apesar do seu habitual discurso moralista?      


            

         Opto pela primeira alternativa, pois na sequência dos acontecimentos nem você, nem o produtor da canalhice, nem qualquer dos seus divulgadores voltou para explicar como os componentes da mesa eleitoral, diante de um golpe tão primário, deixariam de exigir a troca da urna, mesmo que todos fossem petistas roxos escolhidos por um TRE de igual cor. Algum presidente de seção, funcionário público de carreira (com rara exceção), seria desmiolado o suficiente para subscrever a zerésima viciada e enviá-la ao tribunal?  Imaginemos por dois minutos que sim.  Calculemos que a seção tivesse 450 eleitores habilitados e que 370 houvessem comparecido, apenas 150 deles votando em Dilma Rousseff. Concedo-lhe o handicap porque, conforme a sua versão, Aécio ganhou e foi roubado!  Desta maneira, encerrada a votação Dilma estaria com 550 votos computados, contra 370 votos nominais.  Que grande gênio, dentro da junta encarregada pela totalização, realizaria o milagre do fechamento das contas absurdas?             Tentando reforçar uma tese que já era delirante, você, nos dias que se sucederam, espalhou pelas redes sociais depoimentos gravados de um punhado de pessoas que em princípio não conseguiram votar, apresentando-os como prova irrefutável de que a eleição foi corrompida. Encarei o fato, desta vez, como parte do seu completo desconhecimento do que seja o processo eleitoral em um país com mais de 200 milhões de habitantes.  Desde os tempos de Pedro I, eventualmente Souza chega ao local determinado para a votação, assina como se fosse Sousa e vota inadvertidamente em seu lugar. Meia hora depois vem Sousa, em carne, osso e documentos diversos, e não exerce seu direito constitucional porque, para todos os efeitos formais e legais, já o fez.       
         Eu mesmo, numa das vezes em que exerci a presidência de uma seção eleitoral na Região dos Lagos fluminense, passei pela desagradável experiência de impedir por acidente o voto de uma eleitora. Logo antes dela, outra mulher votou e, ao invés de sair da área demarcada pelo lado oposto ao que tinha entrado, permaneceu no mesmo lugar, admirando a máquina branca e seus botões.  Sem notar, digitei o número do título da próxima da fila e liberei o acesso à urna. A antecessora, achando que seu voto ainda não havia sido registrado, reprisou-o e apertou a tecla "confirma", gerando de imediato uma confusão. Pensei que poderia enfrentar complicações judiciais, até que funcionários do TRE, comparecendo ao local, explicaram para mim e para a cidadã lesada que aquele tipo de erro era bastante comum, que não havia nada a ser feito e que a votação deveria prosseguir normalmente.  Embora estivéssemos no interior, onde os fiscais dos partidos costumam ser mais desconfiados e aguerridos, ninguém me lançou a suspeita de tirar voto de X para dá-lo a Y.
       É lógico que não estou afirmando que o "nosso" sistema eleitoral funciona inteiramente à prova de fraudes, mas nem uma criança esperta acreditaria que trambiques esparsos envolvendo troca de identidades, impugnação de eleitores e outras situações excepcionais resultariam na diferença de mais de 3,4 milhões de votos imposta por Dilma a Aécio.  Aceite, portanto, até para deixar de se expor à chacota geral da nação, a obviedade de que a coligação de interesses e ideias materializada na candidatura de Dilma Rousseff obteve mais apoio popular do que a outra, formada em torno da figura de Aécio Neves. 
      Talvez nem valesse a pena escrever os cinco parágrafos anteriores se o problema estivesse limitado à eleição propriamente dita.  Entretanto, você decidiu ir além, e por caminhos tortos. Ofertou-me, e ao país inteiro, um precipício com três bordas: pela primeira, retornaríamos a um regime como o que foi estabelecido em 1964; pela segunda, o Exército entraria em cena somente para derrubar Dilma, cassar os direitos políticos dos integrantes da esquerda e, dois ou três meses depois, gerenciar um pleito "democrático" em que Aécio não enfrentaria concorrentes reais; pela terceira, que indica a medida da sua generosidade, ocorreria apenas o afastamento de Dilma e a posse de Michel Temer, devidamente intimado a governar com o programa econômico tucano debaixo do braço; em suma, tudo menos o PT: até as demais forças que, ao longo dos últimos doze anos, sustentaram os governos petistas. 
        Sabendo de antemão que a democracia, no seu entender, tem como pré-requisitos básicos a subordinação de elementos "inferiores" aos "superiores" e a resignação de todos à influência do Capital, não cairei na ingenuidade de gastar retórica para desconstruir ideias tão arraigadas. Mas quero, apesar de tudo, trazer para sua reflexão certos dados de realidade.
        Os coronéis e generais de hoje, que eram jovens nos tempos das presidências de Figueiredo e Sarney, viram toda a responsabilidade moral sobre as torturas, assassinatos e cassações praticados pelos agentes da ditadura ser depositada nos ombros de seus predecessores e chefes. É verdade que vários historiadores especialistas em Brasil República se referem aos anos compreendidos entre 1964 e 1985 como o período da "Ditadura Civil-Militar".  Todavia, para minha infelicidade (e dos demais), historiadores não costumam alcançar muito êxito na dissolução de lugares comuns repetidos exaustivamente em toda parte, ao longo de décadas. O cidadão pouco escolarizado, nas ruas e nos bares, e o cidadão letrado, nos jornais e nas revistas, continuam a empregar a expressão Ditadura Militar, pura e simplesmente. Enquanto isso, muitos dos filhos dos civis que participaram da articulação do golpe, contribuíram com dinheiro e logística para a eficácia do aparato repressivo e doaram milhões para as campanhas eleitorais da ARENA, recebendo em troca vantagens de toda natureza, constroem para seus pais, na mídia, a aura póstuma de bons democratas, defensores da liberdade e filantropos.
     Não desconheço que oficiais militares, em determinado gênero de piadas, são submetidos a caricaturas que desqualificam sua inteligência, mas quase todos, e sobretudo os que ascendem aos postos mais altos, ingressam na carreira através de concursos disputados e realizam estudos de nível universitário, sendo obrigados a uma constante atualização de conhecimentos.  Torna-se difícil, "meu" iludido coxinha, crer que eles queiram servir como massa de manobra para gente como você, que reproduz nas redes sociais as teorias conspiratórias do Lobão, admira Danilo Gentili como campeão dos direitos individuais, dorme tarde para se solidarizar com o canto do exílio de um Diogo Mainardi e identifica em Olavo de Carvalho a maior liderança intelectual do século vigente. Mesmo que você, acompanhado por vinte ou trinta dos seus correligionários, desenhe tarjas pretas com guache na própria cara e grite ridículas palavras de ordem noite e dia, durante meses, perto da entrada de algum quartel, a tropa não sairá da caserna, exceto talvez para enxotá-lo.  Ninguém em sã consciência pretende se tornar, na velhice, alvo da execração pública e vilão solitário em manual escolar.  Este filme eles já conhecem.
      Para finalizar, faço meus pedidos: cerre seus ouvidos quando meus correligionários mandarem-no apreciar uma gestão de direita no Paraguai ou uma intervenção militar em Burkina Faso.  Confesso que já sugeri, no calor de mais de uma briga, que reacionários e deslumbrados fossem lavar pratos e privadas em Miami, mas ignore até as minhas palavras, se qualquer dia sobrar para você.  Uma eleição nacional não pode dispensar a sua presença.  Que graça terá a disputa presidencial de 2018 sem um coxinha de estimação fazendo eco aos planos infalíveis de Merval Pereira para devolver Brasília ao tucanato?  Que será da nossa combatividade se faltarem os seus compartilhamentos das carrancas de um Arnaldo Jabor próximo dos oitenta anos? Como vamos nos animar a bater em um saco de pancadas tão roto quanto o PSDB sem você para nos dizer que Geraldo Alckmin é a reserva moral do Brasil e único homem capaz de salvá-lo?  Fique.            
                  
           



                

11 comentários:

  1. Tens algum texto em crítica à Marco Antonio Villa?

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  2. Não conheço nenhum historiador que tenha se dedicado à desconstrução do Villa, mas você pode pesquisar entre os autores da chamada História do Tempo Presente. Algum assunto perturba em especial?

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    1. O espaço que o é dado e discursos que não são necessariamente mentiras, mas nem inteiramente verdades.

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    2. Agradeço se me fizer entender melhor.

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    3. Não tem nada muito especial nem profundo, não. Só aquela tristeza por ver muitos discursos serem colocados de maneira descontextualizada, à là Narloch, como o regime militar e a luta armada da época, corrupção etc. Como não sou da área, tava procurando uma crítica mais especializada

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    4. Não desanime: produções de má qualidade, mas com um grande aparato propagandístico por trás, dificilmente deixarão de existir. Só nos resta ler e/ou produzir de maneira inversa.

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  3. Gustavo, essa notícia procede?
    http://www.paulopes.com.br/2014/11/pastores-usam-chefes-do-trafico-para-acabar-com-terreiros.html#.VGa2kfnF8Wk

    Você teria links, nomes, de materiais/pesquisas sobre? Obrigado

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    1. Não tenho nenhuma bibliografia, mas este tipo de denúncia é extremamente comum, o suficiente para presumirmos que em muitos casos realmente acontece.

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  4. Gustavo, expresse, de maneira rápida e eficaz, sua opinião sobre o jornalista Paulo Eduardo Martins. É o 'grande coxinha' da televisão brasileira?
    Obrigado.

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    1. Amigo, devo confessar que jamais li ou ouvi qualquer coisa de Paulo Eduardo Martins. Incorporo à lista de sugestões. Abraços.

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  5. Paulo Martins é apresentador de um jornal paranaense, da emissora do Ratinho, filiada ao SBT. O tal Paulo, mais parece a Rachel Sheherazade barbado, do que um real jornalista.
    PS: Ele tem vídeos no YouTube.
    Abraço

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