sexta-feira, 27 de julho de 2012

Tréplica ao True Outspeak de 25 de julho (II)


          Conforme o prometido, sigo com a exposição das novas imposturas de Olavo de Carvalho, iniciada ontem.  Apenas mudo ligeiramente a programação: como o filósofo do Mídia sem Máscara, à maneira de Paulo Francis, ainda que com muito menos graça, fabrica em série dados estapafúrdios para mobilizar emocionalmente seus seguidores, percebo que será necessária uma terceira rodada.  Agradeço antecipadamente pela paciência que me for dispensada. Ouvimos em 12:22 a seguinte pérola:


"[O Islã] Chegou a escravizar 17 milhões de africanos, três vezes mais do que veio para o Ocidente."

       Olavo, décimos de segundo antes, quase disse "o quíntuplo", o que tornaria a situação ainda mais grotesca.  Voltemos rapidamente à minha bibliografia "mumificada".   Quando recitava sua lista do Dr. Google, o auto-exilado me recomendou a leitura de Le génocide voilé, de Tidiene N'Diaye.  Como um quadril operado por ora me impede a busca, recorro a um "genérico", Pap Ndiaye, que se debruça sobre temas semelhantes (Os escravos no sul dos Estados Unidos, in: O livro negro do colonialismo/org. Marc Ferro.  Rio de Janeiro: Ediouro, 2004).  As estimativas que o autor apresenta na página 122 atribuem ao tráfico de iniciativa europeia, entre os séculos XVI e XIX, 12,1 milhões de vítimas, enquanto o comércio de almas muçulmano, no mesmo período, teria atingido 4,1 milhões.  Ndiaye denuncia, efetivamente, o silêncio acerca do tráfico islâmico e seus horrores, inclusive a produção em série de eunucos.  Isto não impede que, na página 120, haja registro do seguinte juízo de valor:

"No século XIX, na era das reformas e sob a influência ocidental, os otomanos tentaram extinguir o tráfico, mas tais práticas se perpetuavam no Hedjaz e em torno de Trípoli.  Negócio 'interno', a escravidão continuava a grassar, mas era bem menos cruel do que a praticada pelos europeus, quando estes comboiavam além-Atlântico os negros provenientes de Angola, do Congo e da África Ocidental". 

      Retorno agora a Paul Lovejoy (A escravidão na África: uma história de suas transformações.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002).  A tabela da página 76, baseada em Elbl (1977), Curtin (1969) Palmer (1976) e Vila Vilar (1977), nos informa que, entre 1450 e 1600, cerca de 205.800 escravos africanos foram introduzidos na Europa e nas ilhas atlânticas, 50.000 no Brasil e 108.000 na América Hispânica, o que perfaz um total de 363.800.  Em duas tabelas da página 92, fundamentadas na base de dados Du Bois, menciona-se mais 1.348.000 cativos no tráfico transatlântico entre 1601 e 1700 e 6.091.000 de 1701 a 1800.  Somados aos 3.313.600 estimados para 1801-67 (página 222), chega-se a uma cifra global ligeiramente superior a 11,1 milhões.  Admitamos este número menor e a estatística inflada de Olavo de Carvalho sobre o Islã.  Que malabarismo aritmético fará 17 ser o triplo de 11?                 
         Adiante: nas tabelas sobre o tráfico islâmico localizadas nas páginas 61, 108 e 235 temos: 4.820.000 escravos levados através do Saara entre 650 e 1600, 2.400.000 através do Índico e do mar Vermelho de 800 a 1600, mais 2.200.000 pelas três rotas entre 1600 e 1800 e, na fase final da atividade, 347.000, incluindo os cativos exportados para a Índia, de 1801 a 1896, totalizando, desta forma, 9.767.000.  Como falta à obra uma estimativa sobre o Saara no século XIX, o quadro comparativo pode ser definido enquanto um tenebroso empate técnico.  Não há como negar que tanto o Ocidente quanto o Islã desagregaram numerosas sociedades africanas por meio do comércio de escravos.  Registremos, entretanto, que em nenhum momento o volume do tráfico muçulmano se aproximou da torrente de escravização que os europeus promoveram nos séculos XVIII e XIX.  É lícito ao menos suspeitar que o impacto negativo da presença ocidental tenha sido mais violento e não o contrário, como pretendem os revisionistas de direita. 
          Em 12:34, Olavo vai ao delírio, ao declarar que, entre os escravos do Islã, havia "90% de homens castrados, coisa que não aconteceu no Brasil".  Leiamos então Alberto da Costa e Silva, que o filósofo tem em tão boa conta:

"Cada eunuco representava o investimento de vários cativos, pois eram poucos os que sobreviviam à operação.  Gustav Nachtigal, que viajou pelo interior da África entre 1869 e 1874, soube que, de 100 rapazotes castrados, só 30 continuaram vivos, mas há estimativas ainda mais drásticas, que dão uma sobrevivência de apenas 20% ou até menor: de 2 a 3%, taxa que, por tão diminuta, se pode ter como improvável". (A enxada e a lança: a África antes dos portugueses.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Edusp, 1992, p. 626) 

            Uma capacidade mínima de cálculo econômico evidencia que a castração de 90% dos cativos resultaria na falência do circuito do tráfico, a não ser que se acredite que escravos nascem por geração espontânea.  Afronta igualmente a inteligência de qualquer um a ideia de que comandantes militares e proprietários rurais do mundo muçulmano fizessem questão absoluta de receber soldados e agricultores negros castrados.  Sobre o tema, vale também a lembrança de que, durante séculos, existiram na Itália os  tenori castrati, cuja atividade se estendeu até o início do século XX.  Prestarei muita atenção caso Olavo decida me convencer que há diferença moral entre as situações de arrancar os testículos de um garoto destinado a ser guarda de harém e fazê-lo para ter prazer com uma bela voz feminina.
       Fica claro que as balelas aqui exibidas não passam de grosseiras peças de propaganda, cuja finalidade é insuflar a animosidade dos brasileiros contra muçulmanos em geral, levando-os a encarar como justa toda e qualquer intervenção militar da OTAN no Oriente Médio e no norte da África.  O sonho de Olavo, a submissão completa dos povos islâmicos diante da aliança ocidental, pode facilmente se transformar no pior dos mundos para a América Latina.  Com as mãos liberadas pela falta de adversários árabes, norte-africanos e iranianos, os Estados da OTAN certamente investirão no disciplinamento de brasileiros, argentinos, venezuelanos e congêneres.  Não é impossível, se recordarmos as ironias do chamado "fogo amigo" e a voracidade das multinacionais de armamentos, que bombas inteligentes  ainda venham a ser testadas sobre as cabeças de algumas das próprias olavetes.
              Amanhã, sem falta, finalizo.

Obs: Os transitórios desconfortos físicos me levam a transcrever os trechos dos livros, evitando acrobacias em torno do scanner para produzir as "cópias fotostáticas" que Olavo tanto apreciou.             
   


2 comentários:

  1. Caro Gustavo:

    Meus parabéns, e aproveito para ressaltar o seguinte:

    O que resulta da comparação das estatísticas do Lovejoy é que, se o tráfico islâmico parece espalhar-se uniformemente por toda a época considerada, e ter por fim satisfazer certas necessidades tradicionais desta sociedade (como os eunucos, que eram procurados como funcionários porque não tinham suas lealdades divididas entre seus superiores e sua descendência, e que como tal eram utilizados na China Imperial e no Império Romano tardio e em Bizâncio - estes dois últimos cristãos, aliás) o tráfico colonial ocidental estava ligado a necessidades de acumulação CAPITALISTA - e exatamente por isso quase que sextuplica no século XVIII em comparação com o século XVII. Conclusão esta, que deixa muito mal na fita ideólogos liberais, neoliberais, libertários e assemelhados que identificam capitalismo e livre mercado com a liberdade individual tout court....

    Melhoras, e minhas saudações

    Carlos

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  2. Obrigado, amigo. Já estou melhor, inclusive ontem tirei os pontos.

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