sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Desconstruindo uma "celebridade" (III)

                Prossigo nos meus comentários, ou tréplicas, se preferirem, sobre a série que Olavo de Carvalho me dedica no site Mídia sem Máscara, naturalmente com o único objetivo de expor os malefícios da mentalidade esquerdizante e da propaganda terceiromundista!!

http://www.midiasemmascara.org/artigos/cultura/13297-criando-uma-celebridade--4.html

                Mais de uma vez o cidadão já se queixou da minha suposta pressa em responder a tudo, sem lhe dar tempo para concluir suas críticas.  Concedo-lhe o benefício da dúvida, e hoje me limito a cinco passagens relevantes.  Elas são o bastante para comprovar que na ânsia de salvar uma tese central estapafúrdia ("O Islã é a cultura mais escravagista de todos os tempos"), Olavo recorre a contorcionismos de natureza diversa, além de jogar com o elemento emocional de seus seguidores e, visivelmente, mentir:

1- Os árabes não só introduziram ali a escravidão em larga escala, mas criaram todo um sistema comercial de dimensões continentais, devastando comunidades e nações, demolindo estruturas sociais milenares e infectando de espírito escravagista, primeiro alguns indivíduos e grupos locais, depois povos africanos inteiros, que com o decorrer do tempo acabaram aprendendo, como o malfadado reino de Oyos no século XVIII, a se tornar aprisionadores e vendedores de seus irmãos.

Jamais neguei o papel dos muçulmanos no incremento à escravidão na África.  Porém, o discurso de Olavo é claramente demagógico.  Em primeiro lugar, a escravidão também se disseminou bastante, e por iniciativa estatal, em áreas totalmente alheias ao domínio islâmico, como o Congo:

Assim como no século XVI, os dois distritos urbanos não eram típicos do resto do Congo, que era menos densamente povoado, com pequenas comunidades camponesas de parentes afins.  Não obstante, um terço da população vivia perto dos dois centros, e como as linhagens camponesas possuíam alguns escravos, é possível que o total da população escrava do Congo fosse de mais de 100.000, talvez ligeiramente menor do que a população livre.  Ademais, os setores camponeses e escravos estavam ligados, pois o Estado usava a escravização como uma arma política.                                                                                                            
(Paul Lovejoy.  A escravidão na África: uma história de suas transformações.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 197)

Por falar no Congo, região na qual já atestamos a participação dos missionários europeus no tráfico, podemos ainda verificar a aliança entre a monarquia local e o reino de Portugal no sentido de ampliar a oferta de escravos em benefício de ambos os Estados: 
A aliança com os portugueses, particularmente a utilização de soldados portugueses já em 1514, acentuou a capacidade do Estado de adquirir escravos, que eram exportados em troca de bens e serviços importantes ou utilizados para suplementar a população escrava interna.  Alguns escravos tornavam-se soldados, principalmente os cativos tios do norte do rio Zaire, enquanto os nobres do Congo também mantinham escravos em seus séquitos.  (A escravidão na África, p. 80)

Mais ao sul, os holandeses introduziram o cativeiro em áreas onde ele era inexistente, escravizando pessoas originárias de várias partes do mundo: 

Na realidade, as populações locais- khoi, san e povos de língua banto-, cuja antiquíssima presença na região é confirmada por todas as pesquisas, foram progressivamente marginalizadas e submetidas pelos brancos, cuja maioria- agentes da VOC- transformou-se insensivelmente em boers (camponeses) e depois em trekboers (camponeses que praticavam o trek, deslocamento por longas distâncias imposto pela criação transumante).  A recusa das populações locais a trabalhar nas fazendas dos colonos obrigou estes últimos, de início, a importar mão de obra de outros lugares, principalmente de Madagascar, mas também da África ocidental e oriental, das Índias holandesas e do golfo de Bengala.  O número desses escravos, que era de aproximadamente 6 mil no início do século XVIII, passou a 30 mil cem anos mais tarde (19.346 homens e 10.515 mulheres em 1806).
(Elikia M'Bokolo.  As práticas do apartheid.  In: O livro negro do colonialismo/org. Marc Ferro.  Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p. 541) 

Entre muitas fontes possíveis, Jaime Rodrigues, um dos maiores especialistas brasileiros no tema, ratifica o papel nada secundário dos europeus na expansão do comércio de escravos, inclusive fomentando guerras:  

Um meio eficaz de os traficantes conseguirem cativos em grande quantidade era promover conflitos entre os africanos, nos quais os derrotados seriam transformados em escravos.  Esses conflitos- nos quais as armas de fogo introduzidas pelos europeus eram fundamentais- representavam um elo importante de um circuito que envolvia ainda trocas comerciais e acordos entre europeus e africanos de diversas etnias e hierarquias sociais, e que resultava na reunião de um contingente de cativos para exportação. Uma carta escrita em meados do século XVIII pelo traficante inglês George Hamilton, atuante na África Ocidental, reconhecia que o tráfico institucionalizava o sistema de guerras entre os africanos como fonte de abastecimento de escravos.
(Jaime Rodrigues.  De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860).  São Paulo: Companhia das Letras, 2005, pp. 83/84)

2-Dos escravos negros que vieram para a América, a quase totalidade não foi aprisionada por europeus, mas por muçulmanos. O escravo, quando é vendido, simplesmente troca de dono. A condição de escravo lhe advém desde o instante mesmo da sua captura. Antes de ser escravos de portugueses, espanhóis ou franceses, os africanos que eles compraram foram escravos de árabes. O total de escravos aprisionados e vendidos por muçulmanos sobe, portanto, para a casa dos 25 milhões, na mais branda das hipóteses. O equivalentismo numérico do sr. Moreira é, em toda linha, uma trapaça.

            O argumento tem um vício de origem: culpar preferencialmente os muçulmanos pela demanda por escravos do Ocidente é simplesmente ridículo.  Algo como defender a tese de que o verdadeiro assassino é quem puxa o gatilho para matar um desconhecido, sendo o mandante e principal interessado um mero coadjuvante.  Além disto, trata-se de uma mentira descarada.  Ao longo dos quatro séculos em que perdurou o tráfico, a região que abasteceu europeus e americanos de cativos em maior quantidade foi a África Centro-Ocidental, mais precisamente a área Congo/Angola, cujas rotas na maior parte do tempo estiveram sob o controle de Portugal.  Isto não significa, obviamente, que todas as demais rotas eram monopolizadas por muçulmanos, visto que a penetração do Islã na África encontrava mais barreiras do que nos tempos atuais.       

Durante os séculos XVI e XVII, a principal fonte de escravos para a venda aos europeus era a África Centro-Ocidental, principalmente as terras ambundas ao sul do Congo, e a área ao redor do lago Malebo e do rio Zaire.  Provavelmente três quartos de cerca de 1,7 milhão de escravos embarcados da África para as Américas entre 1500 e 1700 vieram da região.  No século XVIII, cerca de 2,3 milhões de escravos foram exportados somente da África Centro-Ocidental; de modo que o total do comércio de 1500 a 1800 provavelmente excedeu a 3.300.000 escravos.

(Lovejoy, A escravidão na África, p. 128) 

                Devemos ainda ressaltar que as pressões britânicas pela abolição do tráfico, no século XIX, começaram coibindo a atividade ao norte do equador.  Os portugueses, nesta altura os maiores traficantes, foram se limitando cada vez mais às feitorias do centro-sul que controlavam diretamente:  

A 28 de julho de 1817, após um grande receio e hesitação, o Conde de Palmella, à época embaixador de Portugal em Londres, foi forçado a assinar uma Convenção Adicional ao tratado de 1815.  Definia mais precisamente a parte do tráfico português de escravos que permaneceria legal, ou seja, o tráfico feito em barcos lusos entre portos dentro dos domínios da coroa portuguesa ao sul do equador e território português  no litoral africano, ao sul da linha, especificamente "entre o cabo Delgado e a baía de Lourenço Marques" no litoral oriental e as áreas compreendidas entre 5o 12' e 8o S (Molembo e Cabinda) e 8o a 18o S, na costa ocidental.

(Leslie Bethell.  A abolição do tráfico de escravos no Brasil.  Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: Edusp, 1976, pp. 30/31) 

                Notemos que a presença portuguesa na África, durante séculos, se manteve basicamente em função do tráfico negreiro em partes do continente não sujeitas à influência muçulmana, como Angola, ou arrebatadas pelos lusos aos muçulmanos, como parte da atual República de Moçambique:       

Além disso, os territórios dominados e reclamados pelos portugueses, ao sul do Equador- o Congo e Angola- constituíam uma das maiores áreas de suprimento de escravos, e São Paulo de Luanda e São Filipe de Benguela (ambos em Angola), dois dos maiores portos de escravos, na costa ocidental da África.  Angola não correspondera às suas promessas econômicas e, desde meados do século XVII, suas exportações tinham sido quase que exclusivamente de escravos; na verdade, o tráfico de escravos tornara-se a única atividade de importância comercial da colônia e o imposto de exportação sobre os escravos propiciava quatro quintos da receita pública.  Desde meados do século XVIII, um número crescente de escravos fora também transportado ao redor do Cabo e através do Atlântico, das feitorias portuguesas em Moçambique, no litoral leste da África- principalmente de Quelimane, Inhambane, Ibo e da própria ilha fortificada de Moçambique.  Lá, também, o tráfico de escravos se tornara o mais bem sucedido ramo do comércio e a maior fonte de receita pública.
(Bethell, pp. 15/16)     



3-É de fato uma crueldade abjeta jogar pessoas no fundo de um porão de navio, para que atravessem o oceano deitadas num chão de madeira, em condições de higiene abaixo de deploráveis. Mas que é isso, comparado ao crime hediondo de fazê-las caminhar milhares de léguas entre florestas e desertos, atravessar às vezes um continente inteiro com os pés sangrando, atadas umas às outras por ferros e cangas, sob o chicote do feitor, para chegar ao porto onde o porão da caravela portuguesa ou espanhola, uma vez atingido esse paroxismo de sofrimento, era ao menos uma promessa de descanso?

             Aqui temos mais uma tentativa de Olavo de mobilizar emocionalmente sua plateia, mas sem nenhuma base factual.  A alusão ao descanso chega a ser pueril, se pensarmos que o "descanso" do escravo era uma estadia em um armazém de engorda, nu e submetido a uma dieta estranha, seguida em muitos casos por uma nova marcha de semanas rumo às fazendas do Vale do Paraíba ou de meses rumo a Minas Gerais.  Além disto, as caminhadas intermináveis também eram características do tráfico sob gestão ocidental, como vemos em Florentino:      
Após semanas ou meses deslocando-se pelas savanas e florestas, as centenas de pequenos traficantes angolanos (pumbeiros, aviados, funantes ou sertanejos) e seus carregadores, de posse das mercadorias europeias e americanas, se defrontavam com o monopólio de cativos exercido pelas autoridades interioranas.  Estas, por sua vez, não estocavam escravos, o que lhes permitia evitar gastos com a sua manutenção.  Esperava-se pela chegada dos sertanejos para se acordar um determinado número de peças em troca de mercadorias- que se recebia adiantadamente- e só então se enviavam agentes em busca de escravos nas áreas fronteiriças.  Transferidos para a responsabilidade dos sertanejos, que deveriam mantê-los, pelo menos em parte, os grupos de cativos (libambos ou quibucas) iam crescendo até atingir o número requerido pelos mercadores dos portos angolanos.  Meses se passavam até que, de posse da mercadoria viva, os sertanejos retornassem às cidades costeiras.
(Manolo Florentino.  Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro: séculos XVIII e XIX.  São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 109)  

                 As condições destas marchas não deveriam causar inveja aos escravos destinados ao Oriente Médio: 

Alguns pombeiros jamais voltavam a Luanda- morriam de enfermidades, em ataques de salteadores ou em revoltas dos escravos, ou decidiam estabelecer-se para sempre nos sertões, onde se africanizavam, ou fugiam para outras bandas, com a carga que lhes fora confiada.  Os desertores eram, contudo, exceções.  Até os escravos mandados pelos senhores a mercadejar no interior costumavam regressar, pois se tinham tornado cúmplices de ofício altamente lucrativo.  Nos caminhos que costumavam percorrer, os pombeiros tinham os seus pousos.  Na ida, iam deixando com os associados, os escravos que compravam pelo caminho, para que cuidassem deles.  Na volta, recolhiam-nos, grupo após grupo, e, em longas fieiras, uns ligados aos outros por corda ou libambo, os mais fortes levando à cabeça um cesto de mantimentos, ou uma pipa de água, ou uma presa de elefante, ou um fardo com os produtos necessários para pagar os direitos de passagem, os conduziam até o litoral.  Lá, os desgraçados ficavam, à espera do embarque, presos em grandes barracões ou, o que era mais comum, dentro de amplas paliçadas, com parte da área sob cobertura de palha.  A mortalidade durante o demorado percurso , com suas paradas, desde o interior até a costa, devia ser grande- de cansaço, de maus tratos, de doenças de que já sofriam ou que contraíam pelo caminho.  Os mais fracos, que atrasavam a marcha, eram mortos.  Bem assim os que se rebelavam.  As perdas aumentavam o preço dos demais, um preço em cuja formação a maior parcela cabia ao custo do transporte para o litoral.    
(Alberto da Costa e Silva.  A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, p. 840)

                Estrategicamente, Olavo inclui no passivo dos muçulmanos as mortes das pessoas escravizadas que não chegaram ao destino final, o que é justo, mas se "esquece" de traçar um paralelo com o tráfico por iniciativa ocidental:                    

Os comerciantes europeus tinham o cuidado de comprar os escravos mais saudáveis e fortes; os rejeitados presumivelmente eram vendidos em mercados locais a preços reduzidos, de modo que as mortes a bordo dos navios que podem ser atribuídas a doenças adquiridas em terra constituíam uma proporção significativa do total de falecimentos- talvez uma proporção esmagadora.  Como esses índices variavam de 9 a 15 por cento, parece razoável atribuir cifras semelhantes para as mortes em terra, as quais resultavam de causas similares.  Deve-se observar, entretanto, que Miller estima que 40 por cento dos escravos comprados no interior de Angola morriam antes de alcançar a costa, nos seis meses entre a compra e a entrega.

(Lovejoy, A escravidão na África, p. 111)

                    
4-Sendo impossível contestar a quase completa ausência de europeus nas investidas para captura de escravos, o sr. Moreira procura minimizar a diferença moral entre ocidentais e islâmicos explicando aquela ausência por meras dificuldades materiais. 

                   Lamento frustrar Olavo de Carvalho em suas pretensões de onisciência.  Ele determina categoricamente que não posso apontar o papel dos europeus na captura direta de africanos.  Imagino, então, o que eu faria se pudesse!!!

A escravidão no interior de Serra Leoa estava relacionada com a guerra.  No século XVI, uma série de invasões do interior desalojou muitas pessoas, algumas das quais foram escravizadas.  Na década de 1560, pelo menos alguns desses cativos eram utilizados nos trabalhos agrícolas.  O traficante de escravos e pirata John Hawkins, que estava lá nessa época, ficou sabendo da importância da escravidão em primeira mão; de uma base insular, Hawkins liderou grupos de ataque ao continente com o objetivo de capturar escravos, o que mostra que o comércio ainda não tinha se firmado como parte do mecanismo de abastecimento de escravos que posteriormente caracterizou o comércio transatlântico de Serra Leoa.  De outra maneira, os comerciantes europeus teriam simplesmente comprado escravos, o que geralmente levava menos tempo e envolvia menos riscos do que capturá-los.
(Lovejoy, A escravidão na África, p. 82)   

No início do século XVIII, estrangeiros em Cabina, baía ao norte do Zaire, haviam explorado o Congo, o vale do Kwanza, e outras fontes remotas de escravos, servindo Luanda e movendo-se mais para o sul ao longo da costa para a captura de cativos nos rios Loje e Mbrije.  Alguns começaram a atuar próximos de Luanda, em Dande, Bengo e outros rios nas imediações da capital da colônia.  Outros até se deslocaram para portos portugueses sob o pretexto de tratar de questões de urgência.  Os luso-africanos em Golungo e Ambaca tinham apenas que desviar suas caravanas de escravos um pouco para o norte para vendê-los aos estrangeiros, em troca de mercadorias de origens europeia e asiática, a preços bem mais baixos do que o dos contratadores monopolistas oferecido em Luanda.  Os britânicos, e cada vez mais os franceses, também contratavam os guerreiros do Ovimbundu e os colonos luso-africanos nos planaltos do sul.
((Joseph C. Miller.  A economia política do tráfico angolano de escravos no século XVIII.  In: Angola e Brasil nas rotas do Atlântico Sul.  Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, pp. 24/25)       

Do ponto de vista dos luso-africanos, o novo comércio era o mais livre que conheceram, desde os decretos do "livre comércio" de 1758.  Eles também se recobraram do colapso do crédito comercial provocado pelos últimos anos do governo de Sousa Coutinho.  Na época do governador Coutinho eles tiveram que enfrentar grandes campanhas militares, especialmente a partir de 1720, na busca de escravos no interior.  Mas a situação, para os luso-africanos, tornou-se cada vez mais tensa, já que a estratégia agressiva de captura de escravos terminou por matar a galinha dos ovos de ouro. 
 (Miller, p. 35)

                Como informação nunca é demais, recorro mais uma vez a Lovejoy para apontar a parcela que cabe ao Ocidente na expansão do tráfico e na manutenção da escravidão dentro da própria África:

Missionários, reformadores e alguns círculos econômicos induziam a mística de que a África seria elevada pela civilização, o cristianismo e o comércio, os três "Cs".  O comércio, como já vimos nos capítulos anteriores, teve o efeito contrário: aumentou o número de escravos dentro da África.  Os outros dois "Cs"- a civilização na forma da conquista colonial europeia e o cristianismo através das ações dos missionários- tiveram um impacto mais profundo, apesar de nem sempre intencional.  A retórica europeia impelia na direção da abolição e da emancipação; mas a experiência europeia encorajava a cumplicidade e muitas vezes apoiava abertamente a escravidão sob o disfarce de que a "escravidão interna" era diferente da escravidão em outros lugares.
(Lovejoy, A escravidão na África, p. 365) 

5-Pelo menos sete séculos antes que idéias semelhantes ocorressem aos europeus, os muçulmanos foram os primeiros a criar e disseminar, em todas as classes sociais, da intelectualidade ao povão, teorias da inferioridade racial dos negros para justificar a escravização em massa dos povos africanos. 
(...)
Em contrapartida, teorias que afirmavam a inferioridade racial dos negros não se disseminaram na Europa culta senão a partir do século XVIII (cf. Eric Voegelin, The History of the Race Idea. From Ray to Carus, vol. III das Collected Works, Baton Rouge, Louisiana State University Press, 1998).

                Infelizmente para Olavo, Voegelin esteve ligeiramente equivocado no aspecto cronológico.  Que o diga o padre dominicano Jean-Baptiste Du Tertre, que viveu nas Antilhas Francesas entre 1640 e 1658:

Os escravos nascidos nas ilhas, em sua maioria, só aprendiam a falar o francês e demonstravam grande disposição e capacidade para dominarem o catecismo.  Se Du Tertre não apresentou de forma explícita juízos de valor acerca do comportamento senhorial no tópico do casamento entre escravos, ele fez uma dura crítica ao crescimento "indecoroso" do número de mulatos nas ilhas, fruto dos cruzamentos (muitas vezes sob coação) entre brancos e negras.  A crítica tinha bases morais e racistas: "dois animais de diferentes espécies", pontificou Du Tertre, não poderiam cruzar-se sem trazer graves consequências.
(Rafael de Bivar Marquese.  Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860.  São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 28) 


                 Identificamos na mesma obra que o reverendo anglicano Morgan Godwin, que publicou em Londres, no ano de 1680, um livro no qual defendia a cristianização dos escravos, lutava contra a mentalidade dominante em seu tempo:

Todavia, a ideia defendida pelos senhores escravistas ingleses era exatamente a da inumanidade dos negros e, por consequência, a da impossibilidade de cristianizá-los.  Nisto os planters do Caribe não estavam sozinhos: era prática corrente entre as classes proprietárias e os letrados ingleses dos séculos XVII-XVIII classificar os negros, os índios, os irlandeses, os pobres e em alguns casos extremos até mesmo as mulheres e as crianças como animais destituídos de razão e, portanto, inumanos.  No caso dos proprietários do Novo Mundo, a comparação mais recorrente era a do negro com o macaco.
(Marquese, p. 43)   

                 Dificilmente poderíamos absolver o poeta Gregório de Matos da difusão de uma mentalidade francamente racista, que incorporava muitos estereótipos negativos sobre as características físicas dos negros:  

Talvez expressando um sentimento geral, Gregório de Mattos louvava o corpo e os encantos da mulata, que, como a índia no século XVI, virara objeto sexual dos portugueses, mulher ideal para os amores profanos, especialmente se brancarona.  Mas o mesmo poeta não ousava brincar com a honra das brancas às quais só escrevia em tom cortês, ao passo que às negras d'África ou às ladinas referia-se com especial desprezo: "anca de vaca", "peito derribado", "horrível odre", "vaso atroz", "puta canalha".

(Ronaldo Vainfas.  Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 73)

                  De resto, Olavo incorre no risco de fazer uma genealogia das ideias que nem sempre lhe favorecerá: 

Pela mesma época [século X], Al-Masudi recorria a Galeno, o mestre grego da medicina, para se fortalecer na ideia de que o negro possuía cérebro defeituoso, daí derivando a debilidade de sua inteligência.

(Alberto da Costa e Silva.  A manilha e o libambo, p. 56)

                 Volto a Charles Boxer.  O autor nos demonstra que, além do preconceito racial generalizado contra as populações de origem extra-europeia, prevalecia entre os ibéricos do período das navegações e colonizações, inclusive entre os letrados, a crença de que os defeitos se transmitiam pelo sangue:  

A convicção dos cristãos e missionários de sua superioridade moral e intelectual, por sua vez, apoiava-se na importância atribuída entre os ibéricos à "pureza de sangue" (limpeza de sangue, como se dizia em Portugal na época, ou limpieza de sangre na Espanha.) como requisito essencial para o exercício de um cargo eclesiástico ou municipal.  Essa convicção, que originalmente pretendia criar uma barreira religiosa e racial contra os chamados "mouros" (isto é, muçulmanos) e os judeus, logo se estendeu para incluir os negros africanos devido à sua associação com o regime da escravidão e, mais tarde, foi aplicada à maioria dos outros povos não europeus.  Pessoas de sangue mestiço eram geralmente vistas com desconfiança, aversão e desdém, em virtude da crença equivocada de que o "sangue de cor" (sic) contaminara o "sangue branco", como revela a história dos "mestiços" no império português e dos "mestizos" no império espanhol..  Houve, sem dúvida, exceções em todas as épocas e em todos os lugares.  Mas os dois impérios permaneceram essencialmente "pigmentocracias" (para usar a expressão de Magnus Morner), convencidas da superioridade racial, moral e intelectual do branco- tal como acreditaram seus sucessores holandeses, ingleses e franceses.
(Charles R. Boxer.  A Igreja militante e a expansão ibérica, 1440-1770.  São Paulo: Companhia das Letras, 2007) 

             Continuo em breve, sempre mostrando que o pretenso sábio multidisciplinar, visto de perto e fora das lentes de suas tietes, é uma espécie de tigre de papelão.



2 comentários:

  1. http://cavaleiroconde.blogspot.com.br/2012/08/dando-perola-aos-porcos.html

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  2. O Conde Rachel, além de não me esquecer, não perde uma chance de babar ovo de Olavo de Carvalho.

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