sábado, 11 de agosto de 2012

Desconstruindo uma "celebridade" (IV)

http://les.traitesnegrieres.free.fr/38_esclavage_code_noir_fr.html

Article 38. - L'esclave fugitif qui aura été en fuite pendant un mois à compter du jour que son maître l'aura dénoncé en justice, aura les oreilles coupées et sera marqué d'une fleur de lis sur une épaule ; et s'il récidive une autre fois à compter pareillement du jour de la dénonciation, aura le jarret coupé 
et il sera marqué d'une fleur de lis sur l'autre épaule ; et la troisième fois il sera puni de mort.

           As linhas que reproduzo acima fazem parte do Code noir (Código Negro), nome pelo qual ficou conhecido um edito real de 1685 que tinha como finalidade padronizar as regras da escravidão nas colônias francesas.  Inicio desta forma a postagem de hoje para indicar que a fabricação de hierarquias de crueldade entre sistemas escravistas constitui em regra um exercício de etnocentrismo.  Ninguém contestaria que castrar um menino núbio de nove anos e treiná-lo para ser guarda do harém de um paxá do Cairo é um abominável crime contra a humanidade.  Porém, é necessário muito contorcionismo para enxergar benevolência numa sociedade da mesma época que estabelecia em seu ordenamento jurídico o corte das orelhas de um escravo em sua primeira tentativa de fuga (além da marcação a ferro quente no ombro), a amputação de uma perna na altura do joelho após a segunda e a execução na terceira. 
             Feitas estas observações, retorno ao link que expus ontem para analisar mais algumas balelas do doutrinador eurocêntrico e americanófilo Olavo de Carvalho:

                 
1-Ora, a simples prioridade temporal e ampla disseminação social do racismo antinegro nos países islâmicos já bastaria para demonstrar, mesmo sem os dados suplementares aqui fornecidos, que “o Islam foi a cultura mais escravagista dos últimos dois milênios”.

         A afirmativa carece tanto de lógica que até surpreende o fato de vir de alguém que se julga um grande conhecedor da Filosofia.  Ninguém diria, por exemplo, que os antigos romanos foram mais escravagistas do que os fazendeiros do Sul dos Estados Unidos porque escravizaram primeiro e durante mais tempo.  Além disto, a vinculação forçada entre racismo antinegro e escravidão não faz sentido.  O cativeiro no mundo muçulmano foi incomparavelmente menos racializado do que o da América colonial.  Nos mercados de Istambul tanto poderiam ser encontrados negros africanos quanto russos e poloneses alvíssimos.  Não há como comparar, por fim, as hierarquias étnicas do Islã com o racismo institucionalizado e consagrado socialmente que existiu na África do Sul do apartheid e nos Estados Unidos das leis segregacionistas da primeira metade do século XX, quando obviamente não havia mais escravidão.  
        Mas já que se falou de dados suplementares, retornemos às tabelas de Lovejoy, não mais com os cálculos da década de 1970, e sim com as suas (ligeiras) atualizações dos anos 1990.  Percebe-se que no período entre 1500 e 1800, no qual o comércio de escravos era bastante ativo tanto no mundo islâmico quanto nas Américas, mais de 72% dos cativos reconhecidamente traficados haviam feito a travessia do Atlântico, e não a viagem rumo ao Império Otomano e demais Estados islâmicos.  Voltaremos aos números, pois estimativas são aperfeiçoadas e novos registros são descobertos, mas é evidente que apenas a propaganda islamófoba poderia, num passe de mágica, inverter as proporções.       

(Lovejoy, A escravidão na África, p. 90)

2-A pesquisa mais recente reconstituiu com bastante minúcia as trilhas por onde os mercadores islâmicos conduziam escravos, e dizer que elas atravessavam o continente não é de maneira alguma uma figura de expressão.

                 Estamos diante de mais um truque barato.  Olavo de Carvalho, sempre jogando para a plateia, tenta deixar a impressão de que todos os escravos encaminhados para terras muçulmanas realizavam uma travessia completa do Saara, talvez até pela parte mais larga do deserto.  Não satisfeito em "se esquecer" de que uma parte nada desprezível deste tráfico incidia contra as populações costeiras do litoral índico e do Mar Vermelho, também deixa de lado a existência de rotas terrestres mais curtas que, sempre que possível, deviam ser as escolhidas pelos traficantes.  Afinal, não interessava a homens cujo objetivo era o lucro submeter sua mercadoria humana a um maior risco de perda.    
                 Vemos, por exemplo, que regiões sudanesas abasteciam de escravos o vizinho Egito:
O escravo era o primeiro produto de exportação do Darfur.  Do Cairo, a crer-se num testemunho de 1663, saíam frequentes caravanas para o sultanato, com o fim precípuo de adquirir cativos.  Traziam de volta plumas de avestruz, presas de elefante e tamarindo (possivelmente em forma de passas), mas a principal mercadoria era gente- mulheres, crianças pequenas e também homens, que eram em parte reexportados pelos portos de Alexandria e Damietta para o resto do Mediterrâneo.
(Alberto da Costa e Silva.  A manilha e o libambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, p. 564) 


  

                      Mais ao sul, o grande entreposto escravista de Zanzibar, o maior do Oceano Índico, recebia cativos do lago Malawi e de áreas situadas nos atuais territórios da Tanzânia e de Moçambique.  Voltando o olhar para a costa atlântica, percebemos que estes trajetos seriam comparáveis ou até menores do que as travessias forçadas dos sertões angolanos promovidas ou encomendadas pelos portugueses:

A maioria dos escravos que terminava em Zanzibar e Pemba vinha de Quíloa, que era o principal ponto de recebimento de caravanas do lago Maláui e de outros portos mais abaixo da costa.  Escravos vindos do interior de Quíloa constituíam uma parcela significativa do comércio até 1811.  Na década de 1840, a importância dessa fonte tinha aumentado ainda mais; em 1860, 75 por cento dos escravos de Zanzibar chegaram através de Quiloa.
(Lovejoy, A escravidão na África, p. 236)




3-Um de seus dogmas principais é justamente a acusação de racismo, atirada genericamente ao rosto de toda a cristandade por incontáveis exércitos de intelectuais ativistas e, nas últimas décadas, por todos os porta-vozes do radicalismo islâmico. Imbuído da crença na inferioridade congênita dos negros, o homem branco europeu teria sido, segundo essa doutrina, o escravagista por excelência, dizimando a população africana e financiando, com a desgraça do continente negro, a Revolução Industrial que enriqueceu o Ocidente.

                    
             Olavo cai em lamúrias injustificáveis.  Para não nos perdermos nas inúmeras provas que podem ser exibidas de que o racismo nas sociedades ocidentais é um elemento estrutural, o que não significa dizer, evidentemente, que todo ocidental é um linchador de negros incubado, relembremos dois processos de domínio público, ao alcance de qualquer criança que tenha em casa um manual de oitavo ano do Ensino Fundamental.

I- A escravidão e o tráfico sob direção inglesa forneceram uma parte considerável do capital que tornou possível a Revolução Industrial:   

O uso de escravos africanos permitira à Grã-Bretanha alcançar a primeira posição como potência colonial americana e desenvolver suas possessões na América até que suas exportações ultrapassaram as da América Espanhola.  Na década de 1770, as colônias escravistas das Antilhas Francesas lutavam para superar as Índias Ocidentais britânicas.  O valor anual da exportação colonial do início da década chegou a 5,6 milhões de libras nas colônias britânicas, 5,2 milhões nas colônias francesas, 1,8 milhão no Brasil e 4,9 milhões em toda a América Espanhola.

(Robin Blackburn.  A queda do escravismo colonial: 1776-1848.  Rio de Janeiro: Record, 2002, pp. 17/18)   

II- Os sistemas escravistas montados no sul dos Estados Unidos e em outras partes do continente americano forneceram uma parte indispensável das matérias primas que possibilitaram a expansão da economia industrial:

O número de escravos nos Estados Unidos crescia rapidamente.  Em 1790 eles eram 698.000, e no final do século este número chegava a 893.000.  Em data tão tardia ainda existiam 35.900 escravos no Norte, porque em geral as Leis de Emancipação libertaram os filhos de escravos em vez dos escravos propriamente ditos.  Enquanto a escravidão declinava suavemente no Norte, no Sul apresentava novo vigor, e não apenas demográfico.  Os donos das plantations do Sul começavam a reagir à demanda crescente de algodão.  No primeiro momento a maior parte do algodão era cultivada no litoral do Sul, mas a invenção da descaroçadeira de algodão de Whitney em 1793 permitiu que o produto fosse plantado e processado também no interior.  A exportação de algodão bruto dos Estados Unidos cresceu de meio milhão de libras (226 toneladas) em 1793 a 18 milhões de libras (8.100 toneladas) em 1800 e 83 milhões de libras (38.000 toneladas) em 1815.  Entre 1801 e 1805, 40% da importação britânica de algodão vinham dos Estados Unidos.
(Blackburn, p. 296)

                 
           Como também tenho direito a chutar cifras, tal qual Olavo, eu diria que os europeus se beneficiaram quatrocentas e oitenta e sete vezes mais destes eventos do que seus contemporâneos da África.  Em suma, a expressão "desgraça do continente negro" é apelativa, mas não mentirosa.  

4-Mesmo atentando só para o aspecto quantitativo da coisa (há outros aspectos até mais graves, que veremos adiante), não há como refutar a conclusão de Tidiene N’Diaye:
“Podemos sustentar, sem risco de erro, que o comércio negreiro arábico-muçulmano e as jihads provocadas por esses impiedosos predadores para obter cativos foram, para a África negra, bem mais devastadores que o tráfico transatlântico.”


                  Juízo de valor por juízo de valor, alguém poderia repetir compulsivamente o de Jean-Suret Canale.  Afinal, a obra de N'Diaye (ou pelo menos o seu uso) não é menos propagandística do que O livro negro do capitalismo

Nenhum investigador, nos nossos dias, procura minimizar a extensão da catástrofe que foi para a África o seu encontro com o capitalismo balbuciante das metrópoles da Europa que só conseguiu atingir a maturidade graças aos extraordinários lucros gerados pela invasão de um continente- a América- e proporcionados por populações arrancadas a um outro, a África.  Em números redondos, dez milhões de deportados africanos atingiram o Novo Mundo entre 1510 e 1860.  Mais de dois milhões pereceram durante a travessia.  Oito milhões desapareceram entre o local da sua captura na África e os entrepostos costeiros, onde os sobreviventes destes ataques foram embarcados.  Chegamos, pois, a um mínimo de vinte milhões de pessoas retiradas da população africana.
(Jean-Suret Canale.  As origens do capitalismo (séculos XV a XIX).  In: O livro negro do capitalismo/org. Gilles Perrault.  Rio de Janeiro: Record, 2000, pp. 50/51) 
Apesar dos historiadores tendenciosos que atribuem ao feudalismo africano a iniciativa do tráfico, ou acusam os reis árabes de o terem perpetuado, apesar dos bajuladores do liberalismo que se recusam a contabilizar os lucros da economia servil e associá-los ao salvamento e depois ao crescimento das economias europeias, é preciso dizê-lo e não ter medo de repetir: um conjunto de fatos incontestáveis mostra que o capitalismo nascente não sangrou apenas os povos da Europa (este cálculo pode ser feito por outra via).  Ele baseou sua expansão sobre um ossário humano como a História, apesar de já sangrenta, jamais tinha visto: vinte milhões de ameríndios exterminados em três séculos e doze milhões de africanos mortos de empreitada no mesmo período.
(Canale, pp. 57/58) 

                    Para encerrar, retorno ao tema das comparações morais temerárias, quando tanto muçulmanos quanto europeus podem se acusar reciprocamente de atos da mais pura barbárie, dentro e fora da África.  Dentro dela, podemos observar alguns episódios ligados à instalação dos portugueses em Moçambique:   

A água, péssima, barrenta e turva, que [os portugueses] bebiam em Sena, estava possivelmente contaminada.  Além disso, pareciam não ter fim, à beira-rio, os mosquitos e as moscas, entre as quais a tsé-tsé.  Mas os padres jesuítas puseram a culpa nos muçulmanos que lá mercadejavam e viviam.  Acusados de por veneno nas cacimbas e nos pastos, sobre eles se desatou a raiva portuguesa.  Barreto mandou capturar todos os mouros, que foram mortos "com estranhas invenções"- repito as palavras do padre Monclaro-, uns empalados, outros despedaçados na boca das bombardas, "outros abertos pelas costas com machados", "outros entregues aos soldados que se desenfadavam neles às arcabuzadas.  Foi grande o lucro da matança: fora os panos, a contaria e as peças de ferro e cobre, a soldadesca arrancou dos depósitos dos islamitas muito ouro, do qual lhe coube a maior parte, ficando a Coroa com 15 mil miticais (cerca de 64 kg), mais do dobro, portanto, do que o feitor régio de Sofala conseguira adquirir em menos de oito meses, em 1513.  De um só desses comerciantes, tido por muito rico, levaram-se mais de 500 escravos.   
(A manilha e o libambo, pp. 629/630)

                               
           Por milhares de mentiras e distorções como as que estão sendo apresentadas, Olavo de Carvalho já foi definido como o Walter Mercado da política.  Depois teremos mais.



Um comentário:

  1. Um certo aristocrata do Pará tomou nota do debate:

    http://cavaleiroconde.blogspot.com.br/2012/08/dando-perola-aos-porcos.html

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