quarta-feira, 17 de julho de 2013

Bons motivos para um otimismo à esquerda

Escola itinerante do MST

   
        O período que se estende do final dos anos 1970 à primeira metade da década de 1990, abrangendo os ministérios chefiados por Margaret Thatcher no Reino Unido (1979-1990), os dois mandatos presidenciais de Ronald Reagan nos EUA (1981-1989) e a dissolução da União Soviética em 1991, frequentemente é comparado a um terremoto político do qual nenhuma fração da esquerda mundial pôde escapar. O triunfalismo neoliberal permitiu a um Francis Fukuyama, por exemplo, vender milhões de livros anunciando o que as classes médias conservadoras do Hemisfério Norte mais gostariam de ouvir: séculos de disputas sociais, econômicas e políticas estavam baixando à sepultura com a vitória definitiva do capitalismo e dos valores burgueses.
       Já me referi em outros textos ao derrotismo que dominou de pronto numerosos comunistas, socialistas e trabalhistas.  Não poucos marxistas reentraram em cena como fervorosos convertidos ao liberalismo, em alguns casos movendo guerra sem trégua contra seus antigos companheiros.  Outros optaram pela tática de trocar a crítica global do sistema pelo investimento em uma agenda mínima que poderíamos traduzir na fórmula "capitalismo com face humana". 
       Não tratarei hoje dos que "mudaram de lado" por conveniências como nomeações para cargos governamentais, nem dos que se resignaram a ver, em definitivo, as sociedades dominadas pelo empresariado como único mundo possível.  Pretendo convidar os "desanimados", assim como os que não possuem recordação direta daqueles processos, a algumas reflexões baseadas na História.           
       O reagano-thatcherismo, sem dúvida, trouxe diversos efeitos danosos aos setores progressistas no mundo inteiro: enfraquecimento do sindicalismo, erosão de direitos sociais e trabalhistas, asfixia dos movimentos de libertação antioligárquicos, retomada do moralismo conservador em suas versões mais intolerantes e hipócritas.  Entretanto, devemos considerar que os avanços sociais nunca seguiram uma lógica linear: o ciclo revolucionário iniciado em 1789 desembocou, após as guerras napoleônicas, na ultrarreacionária política da Santa Aliança; o sufrágio universal conquistado pelos franceses em 1848 logo sofreu limitações em prejuízo dos mais pobres e não deixou de abrir caminho para o caricato império de Napoleão III; a vitória do abolicionismo na Guerra de Secessão (1861-1865) foi sucedida, após o fim da administração militar nortista, de violentas restrições aos direitos dos negros norte-americanos do Sul; a transformação dos socialistas italianos e dos comunistas alemães em alternativas reais de poder forneceu combustível para a ascensão de Mussolini e de Hitler; para cada Lumumba da Era das Descolonizações, houve um Mobutu na fase posterior.   
       As esquerdas, portanto, precisam abandonar a perspectiva imediatista, uma das características mais típicas e ao mesmo tempo mais estúpidas da pós-modernidade.  Nenhum historiador, até os dias atuais, se mostrou bom futurólogo, mas uma breve excursão pelos últimos dois séculos torna evidente que a tendência dominante no cenário mundial tem sido a expansão do igualitarismo, e não a consagração das aristocracias.  Nada nos prova que os retrocessos elitizantes podem ser mantidos.
      Percorramos  um punhado de estações, escolhidas com certa pressa entre um número de possibilidades virtualmente infinito: 


1-Há 172 anos (maio de 1841), um Alexis de Tocqueville (1805-1859) pregava abertamente, na Argélia ocupada por tropas francesas, a adoção de leis separadas para europeus e árabes:


"A fusão dessas duas populações é uma quimera que pode ser sonhada só por quem não conhece o lugar.  É, portanto, possível e necessário que na África haja duas legislações nitidamente distintas porque estamos diante de duas sociedades claramente separadas.  Quando lidamos com os europeus, absolutamente nada impede tratá-los como se fossem únicos, as regras elaboradas para eles devem ser sempre aplicadas unicamente a eles".
(citado em LOSURDO, Domenico.  Contra-história do liberalismo.  Aparecida: Ideias & Letras, 2006, p. 249)


2- Há 160 anos, traficantes ainda tentavam introduzir africanos escravizados no Brasil, mais precisamente no litoral da província vizinha à Corte, e escapavam das sanções judiciais:

"Também no desembarque de Bracuí, ocorrido em 1853 em Angra dos Reis, é possível descobrir o que ocorreu aos africanos livres apreendidos.  Os réus indiciados neste episódio foram absolvidos e o encarregado do inquérito se afastou do caso, que não teve maiores consequências do ponto de vista legal.  Os africanos apreendidos foram levados para a Casa de Correção da Corte e colocados sob a responsabilidade direta da Coroa".
(Ver RODRIGUES, Jaime.  O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil.  Campinas: Unicamp; Cecult, 2000, p. 190-191. 


3-Há 102 anos, o ministro brasileiro da Marinha, Joaquim Marques Baptista de Leão, em seu relatório publicado em maio de 1911, admitia explicitamente a existência de castigos corporais nas Forças Armadas do país.


4-Há 100 anos, o governo brasileiro ameaçava os imigrantes que atuavam no meio sindical, em regra espanhóis e italianos adeptos do anarquismo, com a expulsão do país.

"A multiplicação das greves, que já havia provocado a reação do governo nos anos subsequentes ao aparecimento da COB, levou as autoridades a constatarem que a presença do imigrante nas lideranças operárias era a razão para tamanha agitação.  Assim, nasceu a Lei Adolfo Gordo, em janeiro de 1913.  Por esta lei, os militantes operários de origem estrangeira seriam expulsos do país".
(Ver PENNA, Lincoln de Abreu.  República brasileira.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 128)


 
5-Há 85 anos, as mulheres britânicas ainda precisavam lutar em várias esferas para exercer o direito de voto em sua plenitude.
"Também Lord Robert Cecil, indo em defesa do voto da mulher, culpou então o governo pelo atraso, mas o governo alegava ser cedo para uma modificação tão radical.  E os anos foram passando, os debates recomeçando; os adeptos aumentaram, a diferença de idade não fora mais exigida, a não ser por minoria, havendo como defensor o próprio Lord Chanceler e culminando com o voto favorável e o assentimento real em 2 de julho de 1928.  As mulheres obtiveram o direito de voto aos 21 anos".
(Ver RODRIGUES, João Batista Cascudo.  A mulher brasileira: direitos políticos e civis.  Brasília: Senado Federal, 1993, p. 45)

6-Há 66 anos, sob um regime constitucional que admitia eleições para todos os níveis do Executivo e do Legislativo, o governo Dutra podia banir arbitrariamente os comunistas do cenário político formal.

"A verdadeira cruzada contra o comunismo teve seu início já em 1946, quando em abril o governo, com o apoio dos pelegos, suspendeu as eleições sindicais, numa clara demonstração de que não toleraria o avanço dos comunistas do movimento sindical.  Além disso, impugnou o registro do MUT, intensificando a repressão nas ruas, com extrema violência policial, contra os trabalhadores.  Em 1947, cresce a pressão governamental contra o PCB, e em maio deste ano o partido foi declarado ilegal, tendo seus principais militantes passado a atuar na clandestinidade".
(Ver PENNA, Lincoln de Abreu.  República brasileira.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 128)

7- Há 63 anos a dominação colonial direta ainda tinha defensores no campo diplomático e se estendia a enormes parcelas do planeta.  Neste mapa da África de 1950, notamos que só havia quatro países formalmente independentes: Marrocos, Libéria, Etiópia e África do Sul.

8- Há cinquenta anos foi possível que capitalistas em atuação na região amazônica brasileira promovessem o extermínio quase completo de uma população indígena e desfrutassem de impunidade total.
9- Há 44 anos, era inaceitável que um ator negro protagonizasse uma telenovela no Brasil.  A produção A cabana do Pai Tomás, exibida pela Rede Globo entre julho de 1969 e março de 1970, teve o personagem principal, um escravo norte-americano, vivido por um ator branco, Sérgio Cardoso (1925-1972), cuja pele foi toscamente pintada para as gravações.



10- Há 34 anos, Raul Fernando (Doca) do Amaral Street, depois de ter matado a tiros em dezembro de 1976 a socialite Ângela Diniz, com quem vivia há meses, era absolvido no primeiro julgamento apelando para a estapafúrdia tese da legítima defesa da honra.  Somente no segundo julgamento, em novembro de 1981, ele seria condenado a 15 anos de detenção. 


     Os ideólogos e publicistas de direita, sobretudo os mais cultos, não se iludem com o predomínio do capitalismo em quase todos os países ou com a força militar incontrastável da OTAN.  Eles sabem que a memória das vitórias dos operários e dos povos colonizados, em particular as ocorridas no século XX, está viva e à disposição de quem desejar buscá-la nas bibliotecas de concreto ou virtuais. Mais do que isto, têm plena consciência de que é praticamente impossível convencer as classes trabalhadoras que direitos obtidos nos parlamentos ou no calor das lutas de rua, à custa de seu sangue, são excessivos.  Sabem que seria mais fácil reconstruir a União Soviética do que fazer mulheres e negros retrocederem às posições sociais às quais estavam relegados há quarenta ou cinquenta anos. Em suma, são portadores de um pessimismo que por vezes assume uma feição histérica, mas na verdade é refletido e bem fundamentado.  Oponhamos a eles um otimismo também fundamentado, não só pelos ventos históricos, que mudam constantemente, mas também pela busca da igualdade e da justiça.               


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